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reportagem cultural

- Publicada em 16 de Abril de 2020 às 20:04

Acesso à arte na infância conecta o ser humano a um novo mundo

Ilustração para o Museu Sinistro, do artista Vinicius Goulart, na exposição Museu Desmiolado

Ilustração para o Museu Sinistro, do artista Vinicius Goulart, na exposição Museu Desmiolado


DELRE VIVAFOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Uma das experiências mais marcantes que Alexandre Brito guarda na memória trata de quando ele se deparou, ainda criança, com a "bota do gigante", exposta no Museu Julio de Castilhos, em Porto Alegre. "Foi algo tão intenso ver aquela bota descomunal, solitária, vazia de seu dono. E, depois, recriar, a partir daquele que foi o seu companheiro de tantas caminhadas, o homem colossal que a calçou. Desconfio que todo poema que escrevo, de certa forma, é uma bota do gigante."
Uma das experiências mais marcantes que Alexandre Brito guarda na memória trata de quando ele se deparou, ainda criança, com a "bota do gigante", exposta no Museu Julio de Castilhos, em Porto Alegre. "Foi algo tão intenso ver aquela bota descomunal, solitária, vazia de seu dono. E, depois, recriar, a partir daquele que foi o seu companheiro de tantas caminhadas, o homem colossal que a calçou. Desconfio que todo poema que escrevo, de certa forma, é uma bota do gigante."
O poeta e músico não se refere apenas ao calçado de Francisco Ângelo Guerreiro (1900-1926), que sofria de gigantismo e media 2,17 metros de altura. Ele revive o deslumbramento sentido ao se deparar com o objeto. Décadas depois, Brito publicaria, entre outros, o livro de poemas Museu desmiolado (Editora Projeto, 2011, 48 págs.), com ilustração de Graça Lima, em que brinca com a ideia de museus divertidos e absurdos. Em 2018, a obra foi mote da exposição de mesmo nome, sediada no então Santander Cultural, hoje Farol Santander.
Esse é apenas um caso do quanto uma história, exposição, peça teatral ou espetáculo podem afetar de maneiras inesperadas uma criança. Para investigar esse impacto, a reportagem percorre os caminhos da interação e da mediação entre diferentes expressões artísticas e o público infantil. Os desafios e as transformações que ocorrem a partir dessas vivências.
Sendo assim, é preciso pensar na criança consumidora de artes visuais, por exemplo, como algo bastante contemporâneo, destaca a pesquisadora, artista plástica e professora de História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Paola Zordan. Ela diz que, no contexto global, tal aproximação começou a dar sinais entre o final do século XIX e o início do século XX. É quando a arte europeia abre-se a uma nova estética - além das belas artes clássicas - que o desenho da criança e a produção desta passam a chamar a atenção.
Paola conta que, no Brasil, é o Modernismo que passa a incluir esse público. Mario de Andrade (1893-1945), por exemplo, colecionava desenhos de crianças. Como o escritor adotava a postura multicultural do movimento antropofágico brasileiro, trouxe para o Brasil o olhar de Franz Cizek (1865-1946). O ateliê livre do pintor austríaco é tido como o primeiro do mundo orientado a crianças e jovens.
Em terras brasileiras, Paola lembra que o artigo 26 da Lei nº 9.394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), garante a obrigatoriedade do ensino de arte na Educação Básica (Educação Infantil, Ensinos Fundamental e Médio, e EJA). Em 2016, a Lei nº 13.278 passou a incluir Artes Visuais, Dança, Música e Teatro no currículo. "Isso é fundamental para os professores da área no Brasil. Se ela não existisse no currículo, a arte sofreria um apagamento", alerta a pesquisadora. "A arte - e esse é um conceito meu, que dialoga com Friedrich Nietzsche (1844-1900) - é o que nos faz pensar e o que nos desacomoda."

Do medo ao encanto, a história de cada um

Escritora Milene Barazzetti se dedica à contação de histórias há mais de dez anos

Escritora Milene Barazzetti se dedica à contação de histórias há mais de dez anos


RENATA SCHU/DIVULGAÇÃO/JC
A leitura costuma ser uma prática solitária e silenciosa. Mas é ao narrar uma história que o processo de interação tece um fio entre quem fala e quem escuta. É uma das práticas mais antigas da humanidade. Uma linha que tensiona e afrouxa, criando teias de sentidos.
A escritora Milene Barazzetti acredita que a contação de histórias - atividade à qual se dedica desde 2009 - auxilia na formação do comportamento. Ela ressalta que nem toda história serve para qualquer público. "Muitas vezes, precisamos encantar o ouvinte através de elementos específicos, o toque de um instrumento, uma música. Precisamos respeitar o que aquele público quer compartilhar, pois ele imagina junto com a gente."
Por lidar com um público heterogêneo, Milene não sucumbe à armadilha de mudar a linguagem de um texto por considerar uma palavra incompreensível. Ou ainda por conter elementos que assustem a criança. Para a escritora, os pequenos devem tomar conhecimento de enredos tristes também, pois é necessário ter acesso a tais sensações. As histórias, esclarece, em certos momentos, servirão como catarse para quem está ouvindo. "Vejo muitas adaptações, principalmente de contos de fadas, e me entristeço, pois, às vezes, se minimiza os finais que não são felizes, para poupar o leitor de algo ruim. Crianças precisam saber que não existem apenas finais felizes", analisa Milene.

Teatro é o segmento que mais apresenta produções dedicadas às crianças

Espetáculo Peteca, Pião e Pique-Pessoa, do Bando de Brincantes

Espetáculo Peteca, Pião e Pique-Pessoa, do Bando de Brincantes


GABRIELA CRISTINA DE CARLI/DIVULGAÇÃO/JC
Há muitas formas de se pensar e de se executar um evento para o público infantil. A dramaturga e produtora cultural Dedé Ribeiro trabalha há cerca de 40 anos na área, além de ministrar cursos de gestão nesse circuito. Ela pontua três eixos que devem ser levados em conta ao se oferecer uma atração aos pequenos: a estrutura, os profissionais envolvidos e o público. Se quem propõe o evento está preparado para lidar com crianças; como elas são recebidas e se o espaço a ser utilizado é adequado para essa plateia. Por exemplo, contar com cadeiras de elevação em poltronas de teatros é um diferencial.
"Tudo deve ser pensado em relação à criança", ressalta Dedé. Ela lembra, no entanto, que os pequenos não frequentam os espaços sozinhos: estão acompanhados da escola, dos pais ou de familiares. Então, os adultos precisam ser considerados, em certa medida, na construção de um espetáculo.
A propósito das atrações culturais, percebe-se que este circuito privilegia determinadas expressões artísticas, contando com uma oferta maior de atrações. É o caso do teatro. A atriz, dramaturga, diretora e doutora em Artes Cênicas (Ufrgs) Viviane Juguero concorda que, na realidade brasileira, o teatro é o setor que mais apresenta produções dedicadas às crianças. "Isso se deve ao interesse de profissionais da arte e da educação por esse trabalho específico." De outro lado, ela adverte que, apesar de o teatro para a infância ser o campo que menos recebe incentivos em editais públicos, é o setor onde existe uma maior demanda espontânea social.
O cenário, explica Viviane, gera trabalhos que podem despertar maior interesse pelo retorno financeiro e nas oportunidades de trabalho do que pelo diálogo com a criança em si. Nesse sentido, é comum encontrar discursos que ressaltam a defesa que o teatro para a infância é uma ação de formação de plateia para o teatro adulto. Ainda que tal ponto de vista seja relevante, a dramaturga diz que vale refletir sobre a motivação que leva à criação de arte para crianças.
"Qual o interesse real em aprofundar conhecimentos sobre as especificidades dialógicas do público infantil? Qual é a relação estabelecida com a criança hoje, aqui, agora, como um ser social atuante, mas que possui suas especificidades?", indaga Viviane, que é coordenadora do Bando de Brincantes, coletivo de arte que realiza espetáculos, produz livros, promove cursos e palestras.

O museu dos encontros

Mostra Museu Desmiolado propôs reflexão sobre a importância dos museus

Mostra Museu Desmiolado propôs reflexão sobre a importância dos museus


NICO ROCHA/DIVULGAÇÃO/JC
Surpresa, curiosidade, encanto, identificação. Quem, em 2018, visitou a exposição Museu desmiolado - Um lugar onde ver cabe dentro do olhar, no Santander Cultural (hoje Farol Santander), em Porto Alegre, pôde perceber o envolvimento das crianças e dos jovens ao percorrerem os diferentes espaços do prédio. Com curadoria de Ceres Storchi e Cláudia Antunes, a mostra, inspirada no livro homônimo do poeta Alexandre Brito, propunha uma reflexão sobre o papel e a importância dos museus.
Os núcleos formados partiram da seleção de 12 poemas de Brito. Ali, eram os pequenos que conduziam os adultos pelas mãos para verem de perto o Museu do Crepúsculo, o Museu do Botão, o Museu das Palavras Esquecidas ou, ainda, o Museu da Solidão. Tinha-se a nítida impressão de que o museu era apenas delas, das crianças.
Ceres conta que o público interagiu nos mais diversos níveis que foram oferecidos pela proposta curatorial, artística e museográfica. Crianças, adolescentes e adultos reagiam de forma inusitada, considerando as diferentes idades dos visitantes. "A exposição colocou essas pessoas como agentes de sua própria contemplação e interação. Uma experiência muito rica também para a equipe que propôs: curadoras, artistas e designers."
O museu é um espaço de guarda e memória, mas é, também, um local de encontros, de troca de ideias e de diálogos. Tal definição é dada pela coordenadora do Núcleo Educativo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), Carla Batista. Ela considera esses lugares espaços de construção de conhecimento, já que todos os saberes são bem-vindos e todos podem aprender e ensinar algo.
O núcleo já foi propositor de duas exposições no Margs voltadas às crianças - Infâncias: diferentes modos de ver e sentir e Livros e leitores no acervo do Margs, ambas em 2017. "Nada melhor do que termos crianças no museu, com suas indagações, curiosidades, espontaneidade, potencial de criação", afirma.
A infância é uma fase de construção, e as experiências desse período precisam ser significativas e enriquecedoras. Essa bagagem ajuda a compreender o mundo no qual ela está inserida. Carla observa que, assim como os adultos, as crianças leem as obras a partir das suas referências. "É assim que a personagem de uma gravura de Tarsila do Amaral (1886-1973) parece ser feita de slime, e o trabalho com tecidos e fitas de Luciana Knabben se transforma no fantástico mundo dos unicórnios", exemplifica.

Nise Franklin e Cláudia Braga, do projeto musical Pitocando

Nise Franklin e Cláudia Braga, do projeto musical Pitocando


CLAUDIO ETGES/DIVULGAÇÃO/JC
Em contraste a esse potencial trânsito entre museu e infância, encontra-se a baixa oferta de shows de música voltados exclusivamente aos pequenos - ou de profissionais que se dediquem unicamente a eles. É o caso do Pitocando. O projeto criado por Cláudia Braga e Nise Franklin, em Porto Alegre, desde 2006, apresenta a um público de zero a oito anos canções, lendas e ditos. No palco, são usados 40 instrumentos de origens variadas (indígena, africana, portuguesa e indiana).
Cláudia, que é cantora e instrumentista, conta que são muitos os desafios, alguns idênticos a espetáculos destinados a outros públicos, como a divulgação e a produção de material gráfico que identifique o show e que dialogue com o público-alvo. Considera-se também uma montagem que possa se adaptar a diferentes espaços com relação à dimensão de palco, luz, som, clareza no conteúdo apresentado ou ainda a contratação de técnicos de excelência para luz e som. Assim, no decorrer de 14 anos do Pitocando, a dupla adquiriu o conhecimento necessário para se apresentar a bebês, crianças e familiares.
Quanto à montagem, Cláudia fala de alguns aspectos que o Pitocando leva em conta. Entre eles, intimidade, interação, afetividade na interpretação, segurança, contrastes, intensidades e texturas sonoras e visuais - forte-fraco, alto-baixo, grave-agudo - e tempo de execução (a duração é de 45 minutos).
Tanto cuidado e afetividade na criação pressupõe que exista uma "música para criança"? A instrumentista diz que sim, pois esse estímulo já é oferecido a elas mesmo durante a gestação. No entanto, os pequenos ainda precisam de muita exposição aos diversos estímulos sonoro-musicais para poder construir a compreensão desses "objetos". "A música de adultos vai ser apreciada pelas crianças assim que esses sons fizerem sentido para elas. Crianças expostas a músicas irão conhecendo, produzindo. Lentamente, vão se interessando também pelo que o adulto aprecia, no exemplo, no afeto e no convívio."

Quando criança é verbo

Muitas vezes, pais ou responsáveis esperam que a criança adote determinada postura na plateia. Pede-se a ela silêncio, que não se movimente, que não circule pelo espaço, que não, que não, que não. Para a atriz, dramaturga e doutora em Artes Cênicas pela Ufrgs Viviane Juguero, esse tópico requer atenção e cuidado. Isso porque a criança mantém uma relação espontânea com o que assiste, e esse é um dos maiores deleites e desafios de quem trabalha com elas.
É natural a reação da criança às distintas situações e o modo como lida com elas. Por isso, Viviane alerta que "posturas repressoras antes de um espetáculo teatral podem resultar em ecos negativos na percepção da criança sobre uma experiência". No entanto, a criança também precisa de orientação. A atriz defende que tanto o acolhimento afetivo quanto a saudável apresentação dos limites são fundamentais para que a criança tenha a estabilidade emocional necessária à fruição artística.
Já a professora de dança e bailarina Fernanda Boff diz que o comportamento dos pequenos vai depender da proposta de cada espetáculo. Alguns sugerem maior participação, outros irão estimular a contemplação. "Criança é movimento. Criança deveria ser verbo. O adulto é um ser colonizado, mais castrado durante a vida toda, disciplinado, que vai ficar numa cadeira sentado, sem se mover por uma hora, uma hora e meia." Por experiência própria, Fernanda nota que, a cada nova cena ou coreografia que surge, a criança é instigada a tal ponto que se torna impossível a ela não comentar, se levantar ou até mesmo dançar em frente ao palco.
Na margem contrária dos ajustes e da colonização do comportamento, encontram-se formas de expressão que dialogam intimamente com a infância. Para Lara Rocho, professora de dança aérea em tecido, criança e circo têm muito em comum, pois "ambos padecem de um desejo genuíno de realizar o impossível". Contrariar leis - "não as do convívio em sociedade, essas vamos construindo juntos" -, mas as leis da física. O circo apresenta situações que não se vê na vida cotidiana, ou vê-se pouco: equilibrar, pendurar, cair, saltar.
A arte, diz Lara, exige coragem, demanda entrar com os dois pés na brincadeira, mergulhar no devaneio, delirar. "Vê-se de longe quem não acredita e não se entrega por inteiro. Só cria quem se permite errar. E tenho para mim que criar é coisa para toda a vida, não só para a arte."
 

Um currículo para transformar estruturas

A Arte, como um componente curricular da Educação Básica de crianças, jovens e adultos - no caso da Educação de Jovens e Adultos (EJA) -, está garantida pela Lei nº 9.394/1996. A professora de Artes Visuais da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs/Montenegro) Carmen Capra reflete que, sendo a arte uma disciplina escolar, e denominando-se "Arte", ela passa a ser assumida como algo único dentro das experiências educativas escolares.
Para Carmen, a Arte como disciplina assume a responsabilidade de contribuir para que os alunos saibam pensar e agir na sociedade também por meio do conhecimento artístico. Além de os estudantes saberem o funcionamento do mundo, a professora espera que a escola os capacite para a transformação das estruturas que o compõem. "Repetir o mundo como ele é não garante o seu aprimoramento. Queremos que tenham uma formação artística aqueles que terão a sua vez para fazer as novas perguntas à vida coletiva."
Ainda que a Arte seja componente singular no currículo, ela em si não é única, adverte Carmen. Nesse ponto, surge a primeira questão que envolve a organização escolar e a economia em relação à especificidade das artes e à formação docente. Profissionais formados em teatro, por exemplo, deveriam lecionar teatro na escola.
A docente observa, contudo, as restrições financeiras para a contratação de mais professores das artes. Há outra questão relevante: a cultura rígida de distribuição dos períodos de aula. "Sob a justificativa de que os 'futuros trabalhadores' precisam saber mais português e matemática, impede-se que a arte seja mais e melhor participante da Educação Básica", lamenta.
 

Priscila Pasko é jornalista e escritora, autora do livro de contos Como se mata uma ilha (Editora Zouk, 2019).