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reportagem cultural

- Publicada em 09 de Abril de 2020 às 03:00

Cultura do slam ganha cada vez mais espaço no Estado

Suspensas após a pandemia de coronavírus, batalhas de poesia levam multidões a espaços públicos

Suspensas após a pandemia de coronavírus, batalhas de poesia levam multidões a espaços públicos


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Se pudessem, poetas de todos os cantos estariam se aglomerando nas praças. Protagonizariam batalhas líricas, acompanhadas e julgadas por um público espontâneo. Seus versos denunciariam desigualdades sociais e ecoariam nos prédios em volta. Mas as aglomerações estão suspensas. Em tempos de isolamento social, devido às medidas de prevenção à pandemia do novo coronavírus, não há poesia que se permita em via pública. Nada de agrupamentos, nem mesmo os poéticos, em quaisquer ágoras do Brasil.
Se pudessem, poetas de todos os cantos estariam se aglomerando nas praças. Protagonizariam batalhas líricas, acompanhadas e julgadas por um público espontâneo. Seus versos denunciariam desigualdades sociais e ecoariam nos prédios em volta. Mas as aglomerações estão suspensas. Em tempos de isolamento social, devido às medidas de prevenção à pandemia do novo coronavírus, não há poesia que se permita em via pública. Nada de agrupamentos, nem mesmo os poéticos, em quaisquer ágoras do Brasil.
Parece um devaneio pensar que, se a circulação de pessoas voltasse hoje à normalidade cotidiana, haveria alguém fazendo poesia na rua. Recitando versos ali na Praça XV, por exemplo, no Centro de Porto Alegre.
No entanto, se observarmos a cena de slam poetry que vinha tomando conta das grandes cidades, principalmente desde 2017, pode-se apostar que sim. Basta retomar a agenda do mês de março na capital do Rio Grande do Sul. Havia no mínimo um encontro de slam a cada final de semana. Mas foram todos adiados, sem previsão de novas datas.
Entre eles estavam o Slam (uni)verso, que realizaria sua primeira edição no dia 21 no Largo dos Açorianos, e o Slam Poetas Vivos, no dia 28 na escadaria da Borges. O último a ser realizado foi o Slam RS, em 14 de março, na Praça XV. Naquele dia a poesia ainda se permitia circular convidativa, embora as aglomerações já estivessem começando a ser impedidas.
Nesta reportagem especial para o Jornal do Comércio, trazemos a cobertura desse último slam realizado em 2020 antes das medidas de isolamento social que vigem. Contamos a história desta cultura urbana emergente, por meio de depoimentos de seus atores, os poetas. De anônimos, que tomam a iniciativa de mostrar pela primeira vez os seus escritos em público, e de nomes que construíram trajetórias legitimadas nas comunidades e até nos meios literários mais tradicionais do País e do mundo.

O ritual do slam

Com poesias de pertencimento à América Latina, Xiru venceu a batalha de 14 de março

Com poesias de pertencimento à América Latina, Xiru venceu a batalha de 14 de março


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Três poesias autorais são requeridas para performances de até três minutos. Apresenta-se uma por vez, caso o poeta vá sendo classificado. Não pode acompanhamento musical, e não pode usar adereços. Essas são as regras básicas do slam. Assim, o foco permanece na palavra e na voz. Alguns leem na tela do celular, outros decoram e passam o recado com o corpo todo.
A cada edição, esse ritual se repete. Logo que os slammers vão chegando ao lugar marcado, a partir das 19h, inscrevem-se para se apresentar. Quando chega a 16 inscritos, terminam-se as vagas. Às 20h, o público é convocado a formar um círculo. Convidam-se os integrantes do júri, entre três e cinco pessoas, alegadamente descomprometidas com os artistas participantes. Explicam-se as regras para todos. Faz-se o sorteio da ordem de apresentação.
Falam de preconceito, da vida na periferia. Às vezes mixam referências do cinema, da música brasileira - "tristeza não tem fim, felicidade sim", conforme Jango, primeiro a se manifestar na noite de 14 de março no Slam RS. Depois Mariele se apresenta, enquanto o filho de dois anos assiste na plateia. Vem outro vulgo e revela sua taquicardia de estreante, antes de rimar periferia com referências ilustradas. Enova protesta: "Brancas na internet começaram a achar que preto é hype, fazendo trança no cabelo". Pacheco confidencia: "Tô nervosa", e invoca: "Resista, irmão". Chega o codinome Xiru e brada pelos direitos dos povos. Com suas três poesias de pertencimento à América Latina, vence a batalha daquela noite.
Intensos momentos vividos naquele centro metropolitano, naquele exato e pretérito dia, que ficarão na memória dos participantes e na ata dos organizadores que anotaram a classificação do vencedor para a etapa regional. Boa parte das batalhas de slam são assim, efêmeras. Porém, muitas das performances acabam sendo registradas em vídeo pela plateia ou por produtores independentes. Assim ganham a internet, conectando outras audiências. Exemplo disso está na performance da poeta Gabrielly Nunes, registrada na final do Slam do Grito em 2017, na Praça Mauá, no Rio de Janeiro, que já passou de 1,8 milhão de visualizações no YouTube.

Rio Grande do Sul já tem entre 20 e 30 slams

Batalhas do Slam RS ocorrem em frente ao Chalé da Praça XV, junto ao Mercado Público

Batalhas do Slam RS ocorrem em frente ao Chalé da Praça XV, junto ao Mercado Público


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Estima-se que há entre 20 e 30 slams em atividade hoje no Estado, sendo a maioria na Capital. O Slam Conexões é a junção de todos na etapa regional (os classificados concorrem no campeonato nacional). O pioneiro é o Slam das Minas, criado em 2016. O primeiro longe do Centro é o Slam da Tinga, de 2018. O mais novo é o (uni)verso, que não conseguiu estrear por causa do novo coronavírus. Com auxílio das fontes consultadas nesta reportagem, listamos 18 slams ativos na Região Metropolitana e mapeamos seis no interior gaúcho. Mas a forma espontânea como proliferam torna difícil estabelecer exatamente quantos há.
No Interior, novas cenas vêm se constituindo. Em Caxias do Sul, há dois grupos ativos, o Slam Poetiza e o Slam das Manas. Canela promove o Slam Desperta. Pelotas tem a suas edições locais do Slam das Minas. Já em Ijuí, o Levante Popular da Juventude organiza o Slam Nós por Nós. No ano passado, o Sesc apoiou pela primeira vez a realização de batalhas de poesia em Passo Fundo. A final ocorreu na feira do livro da cidade. Foram 17 poetas em três etapas classificatórias. O organizador do Slam Sesc Passo Fundo, Cássio Borges, afirma que a iniciativa aproximou os coletivos de hip hop dessa linguagem. "Apareceram temas relacionados à adolescência, feminismo, racismo e preconceito de um modo geral", relata.
Esse apoio institucional do Sesc é comum no Rio e em São Paulo. Mas a característica da cena gaúcha, de acordo com Tiatã (22 anos), slam master do Slam RS, é mais independente. Os slams daqui ocorrem nas ruas, organizados de forma colaborativa. O Slam RS, por exemplo, começou em 2017 a partir da iniciativa de jovens como Pablo Buhl (22 anos), inspirados por vídeos da capital paulista. Buhl lembra que as primeiras edições tiveram um público crescente, chegando a reunir centenas de pessoas. "A primeira final no Zumbi dos Palmares foi a maior emoção da minha vida: ver crescer do zero e juntar tanta gente", revela. Depois, os slams proliferaram em Porto Alegre, e o público se fragmentou para acompanhá-los.
É interessante observar que o "RS" de Slam RS não significa Rio Grande do Sul, mas a abreviação de "resistência". Buhl explica que há um slam mais antigo em São Paulo com o mesmo nome, então decidiram usar a sigla para diferenciar. A palavra resistência representa também a temática dominante. Tiatã observa que "mesmo que o slam seja livre para qualquer assunto, os poetas vêm falar de luta".
Felipe Deds é um dos maiores vencedores de slams no Estado. Entre a sua estreia no rap em 2015 e os mais de 20 títulos, foram anos de batalhas de rima e de poesia. Assim encontrou uma forma de ser escutado de verdade. "O slam é um espaço de escuta e fala, então foi muito libertador pra mim", relata. No começo, o rapper apenas recitava suas letras. Em pouco tempo, foi criando exclusivamente para a performance poética. Em 2018, Deds ganhou os slams de duplas regional e nacional junto à poeta Agnes María. Naquele momento, surgiu o coletivo Poetas Vivos.
O coletivo Poetas Vivos, formado por sete slammers entre 18 e 25 anos em Porto Alegre, é um exemplo de como as conexões proporcionadas por estes eventos também geram novas iniciativas e oportunidades. O grupo funciona em rede e também atua com oficinas de escrita criativa, produção de fanzines, rodas de conversa sobre afro-empreendedorismo e shows musicais. Além do Rio Grande do Sul, a ideia foi expandida para Santa Catarina, Rio de Janeiro, Acre e Bahia. Em cada localidade, realizam o mesmo tipo de trabalho ligado à poesia e ao hip hop.

Relato da última noite de poesia

Mariele Cruz esteve entre os poetas que participaram do Slam RS em março, em Porto Alegre

Mariele Cruz esteve entre os poetas que participaram do Slam RS em março, em Porto Alegre


NÍCOLAS CHIDEM/JC
Vozes de vendedores ambulantes anunciam as últimas ofertas do sábado na Praça XV. Carrinhos de supermercado rangem pelo calçamento do Mercado Público, carregados de papelão. Cânticos de uma roda de imigrantes haitianos ressoam em espiral pela arquitetura. Quicam pelo asfalto empilhadeiras quase vazias que desmontam a feira. Tunda o caminhão de lixo, com seu braço automático que ergue contêineres para engolir os restos da semana. Sons e forças que disputam espaço com o reclame do bêbado que cruza enviesado o Largo Glênio Peres. Mas silenciam paulatinamente com o adiantado da hora. Permanecem outras vozes. Que entoam. Que tremem. Que lutam. Vozes de poetas. Que marcam território no anoitecer cotidiano de sábado. "Resistência!", chamam os organizadores em coro. "Slam RS!", responde a plateia inteira.
Para chegar ao Centro de Porto Alegre, vindo da Restinga, pode-se pegar a linha 211 Restinga Belize, que leva mais de uma hora até o terminal Parobé. Ali ao lado é onde ocorrem as batalhas do Slam RS todo mês. Para quem vem de Esteio de metrô, além da viagem de ônibus do seu bairro até o Trensurb, são mais 30 minutos até a Estação Mercado. Menos tempo de deslocamento em comparação aos poetas que sobem na linha 621 no Bairro Sarandi, na Zona Norte, e demoram no mínimo 45 minutos até o local. Ainda assim, há sempre novos artistas de diversos endereços comparecendo a cada batalha e um público garantido.
Em 14 de março, outro zunido de pneus fazia a curva do terminal. Dali, Mariele Cruz (22 anos) acabara de descer da linha 621 Nova Gleba/Assis Brasil, após 1h10min vindo da Vila Santa Rosa. Chegou mostrando um estilo de quem trabalha na produção de moda e com o filho de dois anos a tiracolo. O menino é muito bem-vindo, brinca, dança e ouve com atenção, enquanto a mãe declama seus versos determinada e apaixonadamente.
Mariele é stylist e figurinista. Mas se vê como uma artista que se expressa de diversas formas: "A poesia é o meu lado mais sensível". Começou cedo a investir na escrita, fazia cartões, tinha diário. Recentemente, começou a criar poemas sobre suas vivências, a exemplo do apresentado naquele sábado, anotado no caminho para o trabalho: "Respiro/ E sufoca/ Respiro/ E não passa/ Respiro/ Será que tem comida em casa?/ Respiro/ Acho que esqueci de novo a roupa na máquina/ Respiro/ Hoje eu termino o que era pra ter feito na semana passada/ Respiro/ Às 6h eu já tenho que tá acordada/ Respiro/ São 23h e eu ainda nem cheguei em casa/ Respiro/ Quando é que essa sensação passa?".
A poesia ressoa no espaço aberto ocupado pelo Slam RS junto ao chalé da Praça XV. Dividem um sábado por mês com imigrantes haitianos que se reúnem ali no mesmo horário para celebrar seus cânticos tradicionais. Os grupos se respeitam e procuram não interferir nas atividades mútuas. Em 2018, inclusive, o vencedor de uma das batalhas foi Maicon, poeta vindo do Haiti. Uma das atuais organizadoras, Tiatã, chama atenção para o fato de a maioria dos slammers serem pretos. E conta que, em uma Feira do Livro de Porto Alegre, houve intervenção de uma pessoa durante um slam, manifestando-se contrária às pautas ditas em versos. O caso demonstra que eventualmente há racismo e violência simbólica contra os poetas, diante do forte viés identitário e antirracista de suas declamações.

Vozes femininas e legitimação literária

Os slams eram majoritariamente disputados por homens no Brasil. A jornalista Jéssica Balbino recorda que durante sete anos apenas uma mulher chegou à final do Slam BR (campeonato nacional que define quem vai disputar o mundial na França). Mas essa desigualdade começou a ser revertida em 2015, com a primeira edição do Slam das Minas no Distrito Federal. Logo ocorreu a primeira em São Paulo e o protagonismo feminino foi sendo construído. Segundo Jéssica, "não é um espaço que foi dado, mas conquistado arduamente".
Hoje, há mais de 20 slams das minas nos diferentes estados da federação. "Quando as primeiras mulheres criaram um slam dedicado ao gênero (abarcando mulheres cis e trans), outras entenderam que é possível, se sentiram representadas", observa Jéssica.
A literatura feminina marginal/periférica no Brasil está sendo mapeada no projeto Margens, que a jornalista coordena desde 2014. Com isso, observou uma guinada recente, quando muitos olhares da academia, da crítica e do próprio público se voltaram ao que estava acontecendo com as mulheres. Representativos desta ascensão das vozes femininas foram a Festa Literária das Periferias (Flup), o Rio Poetry Slam e o Slam Nacional, que reuniram no ano passado no Rio de Janeiro 32 poetas negras de diferentes partes do mundo. Jéssica diz que foi um feito histórico. Todas audições estavam lotadas. Em sua avaliação, significa que a voz da mulher, silenciada o tempo todo, está rompendo barreiras e se fazendo chegar. "Não tem volta, é cada dia maior, cada dia mais potente", aposta.
Na Europa, o slam também é percebido como um espaço que acolhe diversidades. Essa percepção é da pesquisadora brasileira Fernanda Vilar, que trabalha na Universidade de Coimbra investigando a cena em Portugal, Bélgica e França. Contrariamente ao hip hop e ao rap, que foram identificados como lugares preponderantemente masculinos, lá o slam é percebido como uma prática democrática da poesia. "Cria-se uma comunidade, instala-se a confiança, e o poder da palavra se multiplica", conclui. Fernanda Vilar também destaca que esse tipo de manifestação cultural retoma vivências silenciadas, reativa o arquivo colonial e, assim, consegue dar visibilidade a questões urgentes, como o racismo estrutural da sociedade.
 

Três perguntas para Mel Duarte

Mel Duarte foi a primeira mulher a vencer o campeonato internacional Rio Poetry Slam

Mel Duarte foi a primeira mulher a vencer o campeonato internacional Rio Poetry Slam


RENATA ARMELIN/DIVULGAÇÃO/JC
A poeta paulista Mel Duarte, de 32 anos, é uma das expoentes do gênero. Foi fundadora do Slam das Minas em São Paulo e tem quatro livros publicados. Já participou da Flip, foi a primeira mulher a vencer o campeonato internacional Rio Poetry Slam e também esteve no TED x Talks. Em 2019, lançou um álbum de poesia falada, Mormaço, e a antologia Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta (Planeta), com 15 mulheres slammers do Brasil.
JC - Viver - Por que os slams proliferaram tanto nos últimos anos?
Mel Duarte - O slam prolifera rápido primeiro por ser uma expressão artística de fácil organização. Caso não possuam equipamentos nem um espaço físico, as pessoas ocupam praças e soltam a voz. Existindo poetas e público, a atividade acontece de maneira fluida. E, além disso, há muitos artistas independentes que vivem nas quebradas, nas margens, e o slam é um movimento democrático em que todos, independentemente de classe social, idade, gênero ou raça, podem participar. Durante muito tempo fomos uma fatia da sociedade sem espaço para difundir a nossa arte, e o slam veio pra fazer esse serviço. Não é a questão de dar voz para a periferia, porque ela sempre teve, e, sim, utilizar essa plataforma para propagá-la.
Viver - Há diferenças nas batalhas ao longo do País?
Mel - Sim, existem diferenças, mas de uma maneira positiva, e isso faz com que cada slam tenha a sua identidade. Percebo que poetas de outros estados estudam e acompanham o que fazemos. São Paulo produz muito insumo sobre o slam, seja no YouTube, no Facebook ou no Instagram, e isso ajuda a galera de fora a ter uma noção de como as coisas funcionam por aqui e se preparar melhor para as batalhas. Acredito que, por estarem no movimento há menos tempo do que nós, não possuem certos vícios que mais atrapalham do que ajudam.
Viver - O que significam os slams na carreira de escritora?
Mel - Comecei a escrever com oito anos. Aos 18, conheci o sarau e fui trabalhando minha escrita, apresentação e senso crítico. Aos 20 e poucos, conheci o slam, quando já tinha dois livros, o que me ajudou a ter segurança. Mas só depois de um ano competindo fui ganhar meu primeiro slam. Há gente nova querendo chegar no rolê e ganhar de qualquer jeito, e não é só a vitória que conta, mas o processo que fez chegar até ela e te molda como um artista da palavra. O slam é uma boa plataforma para que mais pessoas acessem meu trabalho. Hoje não batalho mais, o slam também é um espaço cíclico.
 

Proliferação poética impulsiona empoderamento

O slam poetry nasceu em Chicago (Estados Unidos), por volta de 1984. As regras do jogo foram estabelecidas por Marc Kelly Smith, que em 2008 veio ao Brasil a convite da escritora Roberta Estrela D'Alva. Então surgiram os primeiros slams aqui, mas só em 2012 começaram a ser promovidos na rua. Atualmente há etapas do Slam da Guilhermina na capital paulista que reúnem até 800 pessoas.
Estima-se que há cerca de 200 slams no Brasil hoje. O poeta Tom Grito, natural de Porto Alegre, participou da fundação de vários destes coletivos no Rio de Janeiro e observa que a "pegada política" acentuada é uma característica do País. Na origem, os slams dão guarida a qualquer assunto. Existem inclusive alguns temáticos. Na capital gaúcha, por exemplo, há o Slam Chamego (dedicado ao amor) e o Slam do Gozo (dedicado ao sexo).
A proliferação no País inteiro, na visão de Tom Grito, deve-se a alguns fatores. Primeiro, às jornadas de 2013, quando as pessoas sentiram a necessidade de ir para a rua falar e protestar. A criação do Slam Resistência em São Paulo acompanhou esse movimento. Os vídeos que os poetas postavam nas redes viralizavam, impulsionando novas iniciativas. Já a disseminação de slams só de mulheres, a partir de 2017, Tom Grito atribui à "primavera feminista" que aconteceu mundialmente e à necessidade de novos espaços de fala e escuta. "Os slams acabam sendo formação de redes de afeto e comunidades, e isso é fundamental em qualquer resistência", afirma.
Recentemente, um fenômeno de legitimação cultural tem emergido, consagrando o slam como parte importante da expressão literária brasileira que ascende das periferias. Grandes eventos culturais vêm incorporando slammers em suas programações. O Rock in Rio, maior festival de música do País, já abriu espaço para batalhas de poesia. Já na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), um dos palcos mais privilegiados da literatura mundial, os slams se tornaram componentes obrigatórios nas edições mais recentes.
 

Três filmes sobre slam

Slam (EUA, 1998), direção de Marc Levin. Conta a história de um jovem afro-americano cujo talento para a poesia é dificultado por sua origem social.
Slam: Voz de Levante (Brasil, 2017), direção de Roberta Estrela D'Alva e Tatiana Lohmann. Documentário que mostra as batalhas de poesia no Brasil e viaja aos EUA para contar o nascimento do slam.
Pelas Margens: Vozes Femininas na Literatura Periférica (Brasil, 2019), direção de Jéssica Balbino. Documentário que retrata a produção literária feita por mulheres de periferia no Brasil.

Tem preto no Sul

"Tradição não é somente andar pilchado
Isso não é uma carta de ódio
Polar pra mim sempre vai ser o melhor trago
Mas nós engole seco cada coisa
Que já nem acho mais o chimarrão assim tão amargo
Gaúchas no padrão branco em beauty
Cês vê Gisele Bündchen
Melhor escurecer o rumo dessa prosa
Beleza preta gaúcha, sou mais Gisele Rocha
Eles nem disfarça
A discriminação e o desprezo que levam na bombacha".
(trecho da poesia de Bruno Negrão e Cristal Rocha, primeiros vencedores do Slam Conexões)
 

* João Vicente Ribas é jornalista, doutor em Comunicação pela Pucrs e professor na Universidade de Passo Fundo.