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reportagem cultural

- Publicada em 14 de Fevereiro de 2020 às 03:00

Hitmaker nos anos 1980, Joe Euthanázia ainda é celebrado entre músicos gaúchos

Há pouco mais de 30 anos, morria, de forma trágica, um dos mais insólitos hitmakers do rock nacional

Há pouco mais de 30 anos, morria, de forma trágica, um dos mais insólitos hitmakers do rock nacional


ACERVO GLORIA ATHANAZIO/DIVULGAÇÃO/JC
"Ligo o rádio do meu carro e pego a estrada, não sei nem pra onde eu vou/ Ponho os óculos escuros e deixo a mente apertar o acelerador/ Essa noite eu quero festa, eu quero rua, eu quero é me apaixonar/ Um romance a 100 por hora, alguém sozinho como eu pra poder falar/ Me leva para casa, me pega no colo, me conta uma história, me mata de amor."
"Ligo o rádio do meu carro e pego a estrada, não sei nem pra onde eu vou/ Ponho os óculos escuros e deixo a mente apertar o acelerador/ Essa noite eu quero festa, eu quero rua, eu quero é me apaixonar/ Um romance a 100 por hora, alguém sozinho como eu pra poder falar/ Me leva para casa, me pega no colo, me conta uma história, me mata de amor."

> Ouça um dos singles mais famosos de Joe Euthanázia:

Fonte: Acervo família Athanázio
O sinal estava verde no final dos anos 1980 para novas aventuras de José Luís Athanazio de Almeida, coautor dessa famosa balada. De volta a Porto Alegre natal quase 10 anos após ligar o pisca-alerta para o Centro do País, primeiro como Zezinho e depois Joe Euthanázia ou apenas Joe, sua voz, instrumentos e composições giravam a 33 rotações por minuto em discos dele e de outras conhecidas figuras.
Pelo retrovisor, o aceno de Ivan Lins, Toninho Horta, Nico Assumpção, Neusinha Brizola, Cazuza, José Augusto, Metrô, Roupa Nova, Sempre Livre e até o pop mirim de Xuxa e Trem da Alegria. Copilotagens sonoras com Jerônimo Jardim, Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves, Geraldo Flach, Cazuza, Lobão, Paulo Coelho, Nelson Motta, Lincoln Olivetti, Ronaldo Bastos, Tavinho Paes, Gastão Lamounier, Ronaldo Santos. No bagageiro, espaço extra para faixas nas trilhas das novelas Transas e caretas, Ti-ti-ti, A gata comeu, Um sonho a mais e Selva de pedra, do seriado Armação ilimitada, dos programas Cassino do Chacrinha, Globo de Ouro e Vamos Nessa, clipes no Fantástico e até a gaiatice de ator global em cinco capítulos de um episódio do vespertino Teletema.
Um percurso iniciado em shows, festivais e palcos da noite, antes de trocar a marcha para uma pista de mão dupla que o levaria a São Paulo, Rio de Janeiro e Nova York. A busca por reconhecimento, a guinada brusca no estilo, os excessos. Filho, irmã, sobrinho, mãe viúva, namorada, amigos de fé, visitas, telefonemas, o recomeço em Porto Alegre sob os afagos da família. Nova banda, janelas abertas para ideias arejadas, temporada de sucesso no bar Sargent Pepper's, segundo LP recém-lançado, duas faixas rodando a mil nas FMs, chave virada para o trabalho criativo da publicidade em uma grande produtora de áudio. "Ao dobrar a esquina, a vida foi gentil comigo", ele próprio havia cantado em um de seus primeiros êxitos.
Do jazz ao rock, passando por MPB, milonga, folk, toada, bossa nova, reggae, tango, funk, rap, baladas, MPB, new wave, tecnopop e acid house. Até que uma colisão em beat acelerado no balanço das primeiras horas de 21 de dezembro de 1989 desplugasse da tomada um dos mais intensos e versáteis músicos do Rio Grande do Sul, aos 34 anos de idade e quase 15 de carreira. Mas nada ultrapassa a velocidade do amor: três décadas após os telefonemas com a notícia da morte de Joe Euthanázia em plena madrugada após uma festa no bairro Menino Deus, depoimentos e arquivos demonstram que, ao menos para familiares, amigos e colegas, esse hitmaker hoje esquecido do público e da mídia continua pop.

Fazendo música e amigos

O ainda cabeludo Joe em fotografia de seu certificado de reservista

O ainda cabeludo Joe em fotografia de seu certificado de reservista


ACERVO GLORIA ATHANAZIO/DIVULGAÇÃO/JC
Para refazer a rota de Joe Euthanázia, é preciso engatar a marcha à ré até o fim da década de 1950 e estacionar na avenida Aparício Borges, bairro Glória, Zona Sul de Porto Alegre. Em um dos apartamentos do edifício 664, o guri nascido no Hospital Beneficência Portuguesa em 26 de outubro de 1955 já "arranhava" em poses de celebridade um bandolim decorativo antes pendurado na parede, herança do avô materno e que recebera barbantes no espaço das cordas, tendo como primeira plateia a mana Glorinha e os pais, o securitário Affonso (1917-1987) e a costureira Luci (1932-2017). A música logo seria mais que uma brincadeira: a mãe, acordeonista formada pelo Instituto Palestrina, não demorou a perceber que havia na família um artista em potencial.
Matriculado aos sete anos em um curso de violão, Zezinho precisou de poucas semanas para que a professora o flagrasse afinando sozinho o instrumento. "A gente se apresentava na sala de casa, cantando sucessos populares", relembra a produtora cultural Glória Athanazio, três anos mais nova e que, futuramente, faria vocais de apoio em shows e gravações do irmão. "Ele era autodidata e, já adolescente, ensaiava ouvindo discos de MPB e jazz. Eu o encontrava dormindo com a luz do quarto acesa e uma guitarra sobre a barriga. No Colégio Assunção, parou no início do Segundo Grau (concluído via supletivo), após fazer com colegas uma versão da peça Morte e vida severina (João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque)."
Contemporâneo de uma geração de artistas urbanos e intuitivos a qual parte da imprensa atribuiria a sigla MPG (Música Popular Gaúcha), antes dos 20 anos Zezinho passou a se destacar como cantor, instrumentista e compositor. Mas não eram somente o timbre peculiar na voz, o dedilhado de acordes elegantes ou a capacidade de criar canções melódica e harmonicamente bem elaboradas que chamavam a atenção. O jovem cabeludo também tinha um talento especial para se enturmar, estabelecendo vínculos pessoais e artísticos resistentes ao tempo e à distância - Fernando Ribeiro, Toneco da Costa, Nelson Coelho de Castro, Loma, Bebeto Alves, Gelson Oliveira, Raul Ellwanger, Luiz de Miranda, Geraldo Flach, Jerônimo Jardim, Paulo Dorfman.
A partida foi dada em maio de 1976 com o 5º Musipuc, festival de talentos promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). De 130 inscritos, o rapaz seria o vencedor com Equilíbrio (parceria com Arnaldo Sisson e Fermando Ribeiro), que ganhou espaço com outras criações suas na rádio Continental AM - integrante do júri, o comunicador Julio Fürst rolava em seu programa as melhores da competição. Em dezembro do ano seguinte, nova arrancada, ao levar (sob vaias dos mais conservadores) um dos três troféus principais da 7ª Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul, com a falsa milonga Seis da manhã, incluída no LP ao vivo na noite da finalíssima.
"Eu tinha conhecido o Zezinho na sala de espera da gravadora Isaec, dirigida pelo Geraldo Flach", conta o músico Jerônimo Jardim, 75 anos, parceiro na composição. "Certa tarde, dois meses antes do evento, ele me mostrou no violão um instrumental muito bonito, que letrei e inscrevemos na linha de Projeção Folclórica do festival de Uruguaiana."
Essa vertente havia sido criada duas edições antes, como uma espécie de concessão dos organizadores a manifestações mais urbanas e menos campeiras. O jornalista e crítico musical Juarez Fonseca relembra a ocasião: "Para subir ao palco, era preciso trajar smoking ou pilcha. Ele então subiu vestindo uma bombacha, mesmo sem qualquer ligação com o tradicionalismo".
Correria pura. Restaurante Vinha D'Alho, projetos coletivos (Mostra Gaúcha de Música Popular, Circuito Fechado), trabalho em estúdios, notícias nos jornais e a certeza de que Porto Alegre já era chão batido para suas ambições. "Zezinho tinha uma sacola de couro com roupas, escova de dente etc., tudo pronto para cair fora", conta o músico Nelson Coelho de Castro. Pois a tralha foi ao ombro em julho de 1978, com a primeira mudança para o Rio de Janeiro, de onde voltaria quatro meses depois - de visita, no Teatro Leopoldina, nos vocais e percussão da banda de ninguém menos que Ivan Lins, em turnê pelo País. "Quando fui embora de Porto Alegre, minha bagagem eram duas pedras nos rins", brincaria o músico em uma entrevista.
Presença esporádica na capital gaúcha, em 1979-1980 ele não perdia de vista os conterrâneos, pegando carona em transas como o espetáculo Explode 80 (Auditório Araújo Vianna) e os individuais Estradas do Sul e Porto de Luz (sob direção do poeta e parceiro Luiz de Miranda), ambos no Teatro Renascença, além de minitemporadas nos bares Doce Vida e Barril, que marcou época no estádio Beira-Rio. "Eu queria ficar por aqui, só que não há condições. Mas um dia vai dar", desabafou. A fase era de busca de identidade, guiada entre o contemporâneo e o regional, "sem bairrismos". No porta-luvas, quase 100 composições, um disco de jazz (jamais lançado) e trilhas para shows do humorista Jô Soares.

Álbum de retratos

Em meados dos anos 1980, Joe começava a ser conhecido no Centro do País

Em meados dos anos 1980, Joe começava a ser conhecido no Centro do País


ACERVO GLORIA ATHANAZIO/DIVULGAÇÃO/JC
A soma de competência técnica e habilidade para contatos expandiu horizontes até São Paulo e Minas Gerais, onde interagiu com seus ídolos do Clube da Esquina (movimento integrado por Milton Nascimento e companhia) e foi acolhido por Toninho Horta, com direito a participação vocal no segundo disco do guitarrista (1980) e foto no famoso jipe "Manuel, o Audaz". O Land Rover do compositor Fernando Brandt, aliás, inspiraria o nome do filho de Zezinho com a cantora paulista Ane France. "Minha mãe, que também aparece na contracapa, estava grávida", emociona-se o paulista Manuel "Manu" Athanazio, hoje com 38 anos e que, não bastasse a semelhança com o pai, é cantor e compositor - dos bons.
Fixado na capital paulista em 1981, Zezinho continuou a procurar - nem sempre achando - "o Rio Grande que havia dentro de mim, sem bombacha, chimarrão ou folclorismo barato". Seguiu em movimento, figurou no disco de estreia do baixista Nico Assumpção e, no ano seguinte, topou com uma garota que dividira com ele alguns agitos em Porto Alegre: Neusinha Brizola (1954-2011). Giro alto, ideias a mil, amizade colorida, casamento musical. "Zé, tu precisa de um nome mais artístico... Joe Euthanázia!", provocou a filha de Leonel Brizola (1922-2004), então prestes a se eleger governador do Rio de Janeiro. A carreira de Zezinho começava a ser asfaltada para uma reviravolta poucas vezes vista com músicos gaúchos.

Tudo pode mudar

Com Virginie Boutaud, da banda Metrô, que gravou dois sucessos compostos por Joe

Com Virginie Boutaud, da banda Metrô, que gravou dois sucessos compostos por Joe


ACERVO GLORIA ATHANAZIO/DIVULGAÇÃO/JC
Em momento de reabertura, o rock brasileiro esquentava os motores para uma nova onda. Blitz, Lulu Santos, Kid Abelha, Rádio Táxi, Barão Vermelho, Gang 90. A geniosa Neusinha Brizola, já mãe duas vezes, também gostava de compor e cantar - três anos antes, participara, em Porto Alegre, do espetáculo Explode 80 - e viu no conterrâneo o comparsa ideal. Shows em dupla, mutualismo estético, drogas, iê-iê-iê com new wave e eis que, em 1983, a bicona chegou às paradas como uma versão marota de Celly Campello, a bordo do hit Mintchura, lado A de um compacto cujo êxito descambou em um LP produzido por Paulo Coelho. Em todas as 14 faixas (de um total de 30 sugeridas), guitarras, arranjos e a coassinatura "Joe Euthanázia".
"Tínhamos uma química que demorou a se desgastar", contaria ela em sua autobiografia. Quando isso ocorreu, por divergências profissionais, o cúmplice reassumiu o próprio volante, com destino à Cidade Maravilhosa. No roteiro, a retomada da carreira e a ânsia por reconhecimento. Ainda em 1983, o mesmo adepto da ideia de que o Brasil não precisava de mais superstars ressurgia pedindo passagem com o compacto solo Mulher ingrata/Tensão no Rio, respectivamente com os letristas cariocas Ronaldo Santos e Tavinho Paes. Capa e clipe no Fantástico, compunham uma postura mais desafiadora, de camisa e gravata berrantes, em um visual dissonante do rapaz meigo, cabeludinho e das roupas qualquer nota dos tempos de Porto Alegre.
"Essa metamorfose radical para uma coisa meio punk, meio rock, causou estranheza generalizada na turma gaúcha", relembra Juarez Fonseca. O músico Gelson Oliveira confirma: "Houve uma vez em que ele passava uns dias na cidade e acabamos nos cruzando quando eu chegava a um bar no Menino Deus. Levei um susto ao ver o meu amigo mais magro, de cabelo curto e todo colorido". Outro de seus camaradas das antigas, o parceiro Bebeto Alves minimiza o impacto causado pelo novo layout da figura com quem conviveu também no Rio: "Zezinho tinha uma comunicabilidade e um bom humor incríveis, sabia rir de si mesmo sem jamais perder o senso crítico, até por ser muito exigente, sob vários aspectos".
Apesar da repercussão modesta desse debut, em março do ano seguinte foi a vez de emplacar o segundo compacto, com Um cara assim e Me leva pra casa (letras de Gastão Lamounier), até hoje um de seus "best of" e que inaugurou uma sequência de sete hits aditivados pela veiculação em trilhas de novelas e séries da Rede Globo - teve até entrevistas para publicações como jornal O Pasquim e revista Amiga. O primeiro LP - Tudo pode mudar - desembarcou ao natural nas lojas em outubro de 1985, com escolta promocional e projeto gráfico minimalista para uma seleção de oito rocks, um reggae e duas baladas, incluindo releituras de canções suas gravadas por terceiros, como a faixa-título e Já fui (também editada em single).

Tá na minha vez

Joe Euthanázia em aparição na Rede Globo

Joe Euthanázia em aparição na Rede Globo


REDE GLOBO/DIVULGAÇÃO/JC
Os agitos de 1986 marcariam o auge de uma carreira sem freios e que, por pouco, não derrapou na curva. Com o músico optando por também morar no Rio de Janeiro, a família não escondia a aflição com as armadilhas de uma rotina a mil por hora e que não passava batida aos mais chegados.
"A gente vivia na Tijuca, e meu irmão, em um flat em Ipanema, envolvido em shows, festas e muita cheiração", conta Glória. "A coisa chegou a um ponto em que ele estava tão magro que tememos por seu futuro, sendo preciso uma conversa séria, da qual participou até o meu pai, a quem Zezinho raramente pedia conselhos", lembra. Superado o problema, a parte boa: com um aspecto mais saudável e já sem o "Euthanázia" no nome, Joe arriscou uma série de manobras na televisão.
Embora não pertencesse ao primeiríssimo time do rock brasileiro, o já trintão Zezinho tinha o seu appeal. "Além da voz linda e de tocar muito bem guitarra, era um homem bonito e muito sexy", derrete-se a cantora Virginie Boutaud, cuja atuação no grupo paulista Metrô ajudou no estouro nacional de duas joias pop coassinadas por Joe: Tudo pode mudar (com Ronaldo Santos) e a romântica Johnny love (com Alec Haiat e Yann Laouenan), um dos destaques do musical Rock estrela. Mas não eram só as participações no Globo de Ouro, Fantástico e Cassino do Chacrinha - "Quem quer o pepino do Joeeeeeee?", gritou o Velho Guerreiro antes de uma entrada do artista no palco que agitava as tardes de sábado.
A telinha parecia sob medida. Em agosto, semanas antes de Cristiano Vilhena (Tony Ramos) ser absolvido pelo júri ao som de Na selva das cidades (parceria com Nelson Motta) no remake da novela Selva de pedra, Joe encarnara um rockstar no seriado Armação ilimitada, ao embalo da faixa-tema Olhos de Zelda Scott (com Tavinho Paes). Os atalhos do pop ainda o levariam a uma experiência inédita, em setembro, ao aceitar a indicação de seu parceiro Ronaldo Santos, roteirista da Globo, para o papel principal em Os lunáticos, episódio em cinco capítulos na série vespertina Teletema. E não é que ele deu conta, encarnando um band leader em crise criativa? "Baita galã!", tiraria onda de si mesmo ao dar por encerrada a brincadeira.
Toda essa exposição não tirava da dureza o sempre mão-aberta Zezinho - salvo investimentos em guitarras, pedais e teclados ou a troca do Fiat 147 por um possante Dodge Dart. Até que uma ida com Tavinho Paes à sede da União Brasileira de Compositores (UBC) atropelou a dupla no segundo semestre de 1986: para cada um,
US$ 16 mil em direitos autorais pelo rock She-Ra, uma das faixas de Xou da Xuxa, segundo disco da apresentadora, com quase 3 milhões de cópias nas casas e festas da gurizada. "Nunca tínhamos visto tanto dinheiro!", relembra o colega. "Na mesma hora nos perguntamos... Londres ou Nova York? Escolhida a segunda opção, passamos 45 dias muito loucos por lá e voltamos quebrados de novo."
A entressafra fonográfica conduziu Joe a um novo ciclo criativo. Livre da pressão de gravadoras e outros compromissos, deixou a mente apertar o acelerador para novos rumos, incluindo performances multimídia do projeto VT-Jam-TV (com Tavinho e o poeta Jorge Salomão), shows para plateias menores, porém exigentes, e até uma segunda viagem à Big Apple, com minitemporada na boate China Club em maio de 1987. Hits repaginados, experimentações e novidades criadas com Cazuza e outras feras.
Mas o funil artístico de Rio e Sampa, a morte do pai em agosto e uma nova visita a Porto Alegre, meses mais tarde, acabariam levando Zezinho a colocar os óculos escuros e pegar uma rodovia de mão única e sem escalas. Destino: Porto Alegre.

Me leva pra casa

Capa do compacto de 1984, com uma de suas canções mais conhecidas

Capa do compacto de 1984, com uma de suas canções mais conhecidas


REPRODUÇÃO/DIVULGAÇÃO/JC
"Aqui é o melhor lugar do mundo, é onde quero morrer", avisou Zezinho ao pedir colo à família, em 1988, sem imaginar a rapidez brutal com que a frase se concretizaria. O retorno trazia a carga de um suposto fracasso, pensamento do qual soube desviar sem arranhões. Janelas abertas, trânsito intenso, velocidade sem pressa. Outro amor. Banda nova. Temporada no Sargent Pepper's. Shows no Interior, em Curitiba e em São Paulo. Entrevistas em telejornais - de bandana sobre a cicatriz na testa, saldo de um acidente na Bahia. Novo LP, duas faixas nas FMs. Apresentação na chegada do Papai Noel ao lado do filho, irmã e sobrinho. Clipe na RBS TV. A última festa.
Joe, cuja experiência com carteira assinada se resumia a um breve pit-stop na juventude como vendedor na loja de moda Saco & Cuecão, em 1989, vinha acrescentando à quilometragem o trabalho na produtora de áudio Plug, de Sepeh de Los Santos e do músico Geraldo Flach (1945-2011). Feliz da vida aos 34 anos, na noite de 20 de dezembro ele seria um dos primeiros a chegar à festa de Natal da empresa, na cobertura do edifício 774 da avenida Getúlio Vargas, no Menino Deus. "Assim como outros convidados, o Joe ficou alto, tinha muita bebida ali e ainda pintou uma fumaça", relembram as produtoras Preta Pereira e Ângela Moreira Flach, que tirou o colega no sorteio do amigo-secreto.
A farra adentrou a madrugada e, cada qual no seu carro, o músico decidiu acompanhar Sepeh em uma esticada até a Sociedade de Engenharia, na Zona Sul, onde uma concorrente da Plug também comemorava mais um ano. "Como tava perto de casa e já não me aguentava mais, fui embora por volta das 3h, mas ele quis ficar", relembra o produtor, último a ver o amigo que conhecera em 1975, ensaiando braçadas de surfe em Imbituba (SC). Pouco se sabe dos minutos finais de Joe. A caminho de casa (na avenida Oscar Pereira) ou ainda querendo rua, por volta das 4h, reingressou de carro, sentido bairro-Centro, na Getúlio Vargas.
Passou pelo Bar 1, venceu o Fascinação, cortou a Ipiranga, deixou para trás as boates Velha Guarda, Chipp's e Carlitus. Ao passar por essa última, algo desafinou, e Bill, seu Opala branco, atingiu a traseira de uma Brasília estacionada e depois uma árvore perto da rua Barão do Gravataí. Levado ao Hospital de Pronto Socorro, Zezinho não resistiu. Telefonemas na madrugada. Incredulidade. De manhã, ao chegar para uma reunião no escritório de um amigo, o tecladista e parceiro Ricardo Severo estranhou ao ouvir três faixas seguidas de Joe na Atlântida FM. A resposta de um amigo, em forma de pergunta, mudaria tudo: "Ué, tu não sabe o que aconteceu?".

* Marcello Campos é formado em Jornalismo e Publicidade e Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem cinco livros já publicados, incluindo a biografia de Lupicínio Rodrigues e do Conjunto Melódico Norberto Baldauf. Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Em 2019, obteve o 2º lugar e uma menção honrosa no Prêmio ARI com duas reportagens culturais para o Jornal do Comércio.