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reportagem cultural

- Publicada em 19 de Dezembro de 2019 às 21:30

Memória da artista Ruth Schneider segue viva em Passo Fundo, sua cidade natal

Série sobre o Cassino da Maroca é o trabalho mais célebre da pintora

Série sobre o Cassino da Maroca é o trabalho mais célebre da pintora


FABIANA BELTRAMI/DIVULGAÇÃO/JC
Pintava com as mãos. Foi autodidata, embora tenha frequentado o Atelier Livre em Porto Alegre nos anos 1970. Integrou o grupo Pigmento. Participou da Bienal em São Paulo nos anos 1990. Sua trajetória de vida se mescla com a artística, envolvendo dramas pessoais e conquistas profissionais. A artista visual Ruth Schneider deixou um legado sobre a cultura local e o universo feminino, que vem sendo reconhecido e revivido em Passo Fundo, cidade onde nasceu em 1943 e onde há um museu com seu nome.
Pintava com as mãos. Foi autodidata, embora tenha frequentado o Atelier Livre em Porto Alegre nos anos 1970. Integrou o grupo Pigmento. Participou da Bienal em São Paulo nos anos 1990. Sua trajetória de vida se mescla com a artística, envolvendo dramas pessoais e conquistas profissionais. A artista visual Ruth Schneider deixou um legado sobre a cultura local e o universo feminino, que vem sendo reconhecido e revivido em Passo Fundo, cidade onde nasceu em 1943 e onde há um museu com seu nome.
Além das pinturas, Ruth, que faleceu em 2003, deixou 74 fitas de vídeo gravadas, dezenas de documentos datilografados e escritos a mão. Esse arquivo é a principal fonte da professora da Universidade de Passo Fundo (UPF) Aline do Carmo, que há quatro anos pesquisa vida e obra da artista. Com acesso ao material, está descobrindo histórias nunca antes reveladas. Por exemplo, neste comentário sobre a época em que frequentava o Atelier Livre: "Era tão dedicada que talvez relaxasse com a dedicação em casa". Em outro, Ruth repensa a condição de mãe e artista: "Era assim, cuidava um pouco da panela, botava roupa na máquina, pintava um pouco, sem problema".
No apartamento onde viveu em Porto Alegre, o "sobrevivente" Willy Schneider (conforme ele mesmo diz) ainda guarda mais de 100 obras de Ruth. Mas o filho acredita que ela produziu mais de mil quadros durante a vida. Willy recorda que a mãe ficava manhã, tarde e noite trabalhando. Só parava para fazer almoço e janta. "As nossas panelas eram coloridas, porque por mais que ela lavasse as mãos ficava um pouquinho de tinta", observa.
Há obras suas espalhadas pelo Rio Grande do Sul e pelo País. Podem ser encontradas em lugares como o Itaú Cultural, em São Paulo, o Cine Guion, na capital gaúcha, clínicas, hotéis, museus e casas de família, da Serra ao Litoral. A maior parte do acervo está no Museu de Artes Visuais Ruth Schneider (Mavrs), em Passo Fundo. Lá, mais de 300 obras mantêm na memória da cidade a sua leitura sobre um momento histórico em especial: o Cassino da Maroca.
Sobre a série do cassino, um prostíbulo luxuoso que marcou a sociedade passo-fundense em meados do século XX, Ruth escreveu: "Meus desenhos sempre foram de mulheres sedutoras e coisas engraçadas provenientes das palhaçadas do Seu Antão". Referia-se às histórias que o padrasto contava sobre a zona do meretrício, que inspiraram sua obra. "Seu Antão tinha um carro na praça, e apareciam aqueles homens a sua procura, pareciam os italianos da máfia, de preto e chapéu, com manta envolvida no pescoço, sapatos de bico fino, e as mulheres envolvidas nos seus casacos de pele", recorda.
Em entrevista à TVE-RS em 1997, Ruth afirmou que gostava de "historinhas", por isso, seus quadros têm muitos personagens, "todos da minha cidade". Sobre a técnica, observou que gosta de quadro "bem luminoso", por isso passava tinta acrílica, trabalhava com pastel, depois dava uns toques, a mão, com tinta a óleo. Perguntada pela entrevistadora Ivette Brandalise sobre projetos futuros, depois de criar um museu e expor na Europa, disse: "Quero viver a minha vida, brincar, passear, dançar, amar e de vez em quando dar umas pintadinhas também".
Nas palavras da professora Margarida Pantaleão da Silva, "sua arte sempre foi forte, resultado de uma compulsão criadora feita de muita intuição". No texto de apresentação de uma exposição póstuma em 2006, escreveu que a obra de Ruth possui força expressionista e voracidade pictórica.
A artista morreu aos 60 anos, vítima de câncer. No ano passado, a Câmara Municipal de Porto Alegre promoveu uma exposição retrospectiva. Na cidade natal, há cinco meses, uma nova museóloga responsável assumiu o Mavrs. Morgana Camargo está encarregada do diagnóstico do acervo, para sistematizar um banco de dados acessível a diferentes públicos. Ela avalia que a artista atrai o público em geral, com suas "histórias do mundo comum". De acordo com o planejamento do museu para 2020, haverá sempre uma exposição aberta com obras de Ruth Schneider para receber os visitantes.

A trajetória trágica e produtiva de Ruth Schneider

Willy Schneider ainda vive no apartamento que foi ateliê de sua mãe

Willy Schneider ainda vive no apartamento que foi ateliê de sua mãe


LUIZ EDUARDO ACHUTTI/DIVULGAÇÃO/JC
Ruth Schneider fez uma cirurgia aos nove anos. Tinha uma perna mais curta que a outra. Ficou um tempo de cama. Por isso, o padrasto, Seu Antão, começou a levar para a menina revistas, lápis de cor, tesoura. Ruth começou a criar colagens, o que se tornaria característico em sua obra.
Natural de Passo Fundo, mudou-se para Porto Alegre na juventude. Casou. Perdeu três filhos, uma recém-nascida, um em acidente de automóvel e outro por afogamento. As tragédias refletiram na pintura. Em manuscrito de 1983, conclui: "Uma boa parte do meu trabalho vem da energia negativa. Impulsionada obsessivamente a trabalhar como uma válvula de escape". No texto, a artista ainda revela que não estava feliz, mas revoltada contra tudo e contra todos.
Para a pesquisadora da UPF Aline do Carmo, é evidente a carga emocional em alguns momentos da obra de Ruth Schneider. Mas destaca que a artista costumava afirmar que fazia "novelinha" nos quadros. Por isso, havia sempre um cenário, uma narrativa, uma linguagem mais caricata, popular. Nas palavras da própria Ruth, "é preciso que nossos objetos ou figuras sejam claramente reconhecíveis, também as linhas, cores, contrastes, ritmos". Essas declarações confirmam a preferência pelo figurativo, e não pelo abstrato.
Na pesquisa, Aline está sistematizando as fases da artista, que incluem também esculturas e temas circenses. A primeira, Invocando Ida, chama sua atenção, pois se trata de uma série sobre a avó dela quando criança, em Passo Fundo na década de 1890. São quadros pequenos, que trazem elementos da Revolução Federalista, "quando os homens desapareciam". "Ela tem uma relação muito forte com a avó e a força da avó como mulher, que teve que se virar sozinha", comenta.
O filho Willy lembra que a mãe ligava para casa chamando-o para carregar materiais que encontrava na rua. "Ela pegava lajota, porta, janela, e transformava em obra", recorda. Por outro lado, também afirma que a mãe acompanhava os filhos nos treinos e campeonatos de judô. "Sempre foi uma baita de uma companheira", comenta.
No momento em que expôs na Bienal Internacional de São Paulo, em 1991, o nome de Ruth Schneider foi valorizado, e a procura por suas obras aumentou. Willy rememora épocas em que seu pai não estava bem financeiramente e sua mãe "com uma venda já ajudava bastante".
Em seu auge, fez exposições em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Montevidéu. Foi à Europa. Passo Fundo viajava junto ao Cassino da Maroca. Em consequência disso, ao lado da artista Roseli Doleski Pretto e da professora Tania Rösing, trabalhou na fundação do museu de artes visuais da cidade. Na semana em que fariam a inauguração, faleceu seu marido Juarez Roberto, que ajudava a organizar suas exposições. De acordo com o filho, a partir daí ela "teve mesmo que se virar sozinha". Após adiamento da abertura, em 1996, foi inaugurado o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider.
A passo-fundense pintou até morrer. Nos dois últimos anos, contava com a ajuda do filho, que pegava em sua mão. "Não podia ter muito contato com a tinta, então colocava uma luva e pintava", relata Willy.

Cassino da Maroca: lugar de mulheres quentes e homens frios

Série Cassino da Maroca conta com mais de 300 obras sobre o luxuoso prostíbulo

Série Cassino da Maroca conta com mais de 300 obras sobre o luxuoso prostíbulo


FABIANA BELTRAMI/DIVULGAÇÃO/JC
Segundo a etimologia da palavra na língua francesa, "casino" é casa de prazer. Buscando-se as origens do termo em outras línguas, poderá significar residência senhoril, lugar de reunião, prostíbulo, casa de jogo. Nos jornais da época, entre os anos 1940 e 1950, o Cassino da Maroca e a zona do meretrício eram motivo de notícias sobre sífilis e ocorrências policiais. Eram comuns as manchetes enfatizando a promiscuidade: "Cassino, a verruga no nariz da cidade". Já na obra de Ruth Schneider, era um ambiente festivo, de mulheres volumosas retratadas em cores quentes, e de homens, em cores frias.
O retrato pictórico que ela produziu nos anos 1990 prevaleceu. Até porque não se localizou até hoje nenhuma foto interna do cassino, que registrasse os shows. De acordo com pesquisa iconográfica de Fabiana Beltrami, publicada pelo Instituto Histórico de Passo Fundo, tampouco se encontram imagens fotográficas daquela época na zona do meretrício ou na rua 15 de Novembro no Centro da cidade. Atualmente, o prédio onde funcionou o Cassino da Maroca está sendo reformado para aluguel, após anos de abandono. Durante a ditadura, foi sede do Dops (Departamento de Ordem Política Social) e na abertura política sediou um sindicato.
A história do meretrício que deixa saudades, um documentário realizado em 2000 sobre o Cassino da Maroca, está disponível no YouTube. Bibiana de Paula Friderichs, diretora da Faculdade de Artes e Comunicação da UPF, foi uma das produtoras, enquanto ainda era estudante. Hoje, em sua sala de direção, há três obras da artista. "A Ruth é tão presente em Passo Fundo quanto a arte pode ser presente na cidade. Considerando que temos poucos espaços onde a arte respira, em todos esses espaços existe a presença dela", observa.
Gravando uma das últimas entrevistas com a artista em vida, Bibiana comenta que teve a oportunidade de perguntar sobre o que Ruth achava das críticas de que o cassino não era bem aquilo que pintava. "Ela me disse que as pessoas tinham que levar em conta que o conhecimento que ela tinha do cassino era um conhecimento de quando era criança. E que o imaginário infantil lê o mundo de uma maneira muito diferente do que na vida adulta. É um imaginário sem a necessidade de estabelecer julgamento sobre as coisas", lembra.
A partir disso, a professora observa que a produção artística não se restringe ao público que frequentou o cassino. "Uma artista no interior do interior, que não teve as condições exatas, não teve formação, é a personificação desta figura que consegue ir além e, apesar das críticas, das tragédias pessoais, criar algo que marca o seu tempo e todos os tempos de uma maneira tão significativa que ela é capaz de fazer sentido em qualquer lugar."

Saudades do que sempre quis viver

No Museu de Artes Visuais Ruth Schneider, em Passo Fundo, sempre uma exposição permanente

No Museu de Artes Visuais Ruth Schneider, em Passo Fundo, sempre uma exposição permanente


JOÃO VICENTE RIBAS/DIVULGAÇÃO/JC
Em texto póstumo, o poeta Zé Augustho Marques escreveu que a artista passo-fundense "viveu com saudades do que sempre quis viver". Pois Ruth Schneider, a seu modo, pintou o mundo "de quem viveu na lama do jogo e da boemia", o mundo dos que "habitavam seus sonhos de menina e mulher".
Willy Schneider corrobora com a informação de que a mãe soube da história do Cassino da Maroca através de sua avó, que tinha um bar muito próximo ao estabelecimento, e do padrasto, Seu Antão. "O Seu Antão é uma figura em muitas obras da mãe, geralmente no meio das dançarinas", afirma. Mas, na época, nem todos aprovavam que se retratasse o cotidiano do cassino. "Havia pessoas que não queriam que contasse, porque mudaram de vida", recorda Willy.
Por isso, as personagens tinham, às vezes, nomes fictícios. Algumas aparecem na pesquisa histórica. Jacqueline Ahlert, professora do programa de pós-graduação em História da UPF, destaca uma figura em especial, o Flores, negro, homossexual e apresentador de shows no cassino: "Era muito popular e muito respeitado na cidade". Já a Maroca permanece como uma figura misteriosa, pois não se sabe onde foi parar.
O cassino concentrava a elite da sociedade passo-fundense e arredores. Havia movimento intenso em função da ferrovia e do contrabando de pneus. Jacqueline pontua que na rua 15 de Novembro, além do Cassino da Maroca, havia estabelecimentos mais "populares", ou "decadentes", como eram chamados na época. Havia pensões, parteiras e prostíbulos. Isso até a campanha de um padre católico na mídia, dando vulto a casos de violência no local, que resultou na remoção da zona do meretrício do Centro.
No entanto, sobre o imaginário desse cassino polêmico, Jacqueline acredita que, quando a questão transmuta para a expressão artística, ela deixa de afetar o meio popular de uma maneira mais visceral, porque passa a ser só uma representação. "É quase uma alegoria daquilo que aconteceu", conclui. Por isso, a professora acredita que Ruth foi perspicaz na representação que fez do Cassino da Maroca, pois as cenas retratadas são de alegria, de dança, de uma interação homem-mulher erotizada de forma branda. "Tem insinuação, mas não tem nudez, tampouco é pornográfico ou apelativo", analisa.
A professora lembra que Ruth havia entrado em contato com artistas que faziam experimentações em Porto Alegre, com uma ideia de trazer a contemporaneidade para o Rio Grande do Sul, questionando os suportes da pintura, as dimensões, as proporções. "Ela talvez tenha encontrado no Cassino um modo de trabalhar as questões que estavam vindo muito fortes na época, de um neoexpressionismo de vertente alemã", especula. Assim, teria pintado figuras caricaturais, de expressões exageradas, de cores muito violentas, contrastadas. "Encontra um casamento muito interessante entre essa linguagem artística e uma temática que está no imaginário, mas que vê nessa possibilidade expressiva a hora de emergir", afirma Jacqueline.

Ruth Schneider por ela mesma

Artista circulou o mundo com sua versão particular da história de Passo Fundo

Artista circulou o mundo com sua versão particular da história de Passo Fundo


/LUIZ EDUARDO ACHUTTI/DIVULGAÇÃO/JC
Muitas divagações, datilografadas e anotadas a mão. Dezenas de fitas VHS com depoimentos e improvisos que davam vida a seus personagens. Ruth Schneider costumava escrever sobre seus processos criativos e comentar a vida. Esses documentos ajudam hoje a recompor sua trajetória e a compreender sua personalidade.
Em um dos textos que fazem parte do acervo do Mavrs, fala da perda do filho César num acidente. "Nesta tristeza, encontrei forças através da pintura, me dediquei 24 horas do dia, fiz muitas amizades, entre elas o professor Baril, que me influenciou na técnica mista e na disciplina, em tudo, devo a ele o que sou."
Em manuscrito datado em 2000, Ruth reflete sobre o papel da arte na sociedade. Opina que "a personalidade do trabalho do artista está vinculada ao contexto cultural de sua época, registrando o que está no ar". E faz uma crítica à sociedade de consumo. Em suas palavras, são tempos de "esmagamento da individualidade e de dessensibilização".

'Não apareceu outra pintora com essa energia'

Para Fernando Baril, Ruth foi uma artista que nasceu pronta

Para Fernando Baril, Ruth foi uma artista que nasceu pronta


JOÃO VICENTE RIBAS/DIVULGAÇÃO/JC
Fernando Baril admirava-se com aquela pintora que "não sabia nada" e reunia tudo num quadro. Por isso, acredita que Ruth Schneider nasceu pronta. Formado em Belas Artes em Madri, Baril foi professor da autora do Cassino da Maroca nos anos 1970. "Eu dizia: Ruth, tu tá perdendo teu tempo, vai pra casa, não tem o que fazer aqui", lembra. Mas a artista recebia com desconfiança os conselhos, pois, na avaliação dele, não tinha capacidade de entender o grau do seu trabalho.
Além da falta de formação escolar, o professor enfatiza o quanto se espantava com os hiatos pessoais da aluna. "Pessoa querida, prestativa, coração tamanho, uma coisa impressionante. Mas tinha um grande buraco na vida dela que ela tentou tapar com a pintura". Por isso, destaca que ela era totalmente sem censura e acredita que isso se devia às perdas pessoais. "O que mais tinha a perder?", questiona.
Para Baril, Ruth podia pintar qualquer coisa com uma solução própria, "podia ser o cabaré ou o mercado público". No entanto, reconhece que o tema do cassino devia ser muito profundo em sua vida. Talvez por isso a ambivalência da obra, em que a artista contava a história, mas não contava. "As pessoas ficavam admiradas pela solução técnica e gráfica que ela dava para os quadros. De repente, a solução era genial", afirma.
Baril observa que houve bajuladores e aproveitadores que levaram Ruth a uma compulsão por pintar mais do mesmo. Também acredita que faltou acompanhamento pessoal. Hoje, o professor sugere que alguém poderia realizar um trabalho de curadoria e representação da obra dela, o que a colocaria no lugar que merece no mundo das artes. "Não apareceu outra pintora, mulher, com essa energia", afirma. Quando se refere à energia, explica que as pessoas não sabem se penduram ou não penduram em casa os quadros de Ruth, porque é uma coisa que mexe com elas. "Isso não tem. É muito difícil. E vai demorar alguns anos pra aparecer. Tomara que apareça."
 

*João Vicente Ribas é jornalista, professor de Comunicação e autor do blog Pampurbana.