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reportagem cultural

- Publicada em 13 de Dezembro de 2019 às 03:00

Raul Bopp, o poeta dos confins do Brasil

Autor de 'Cobra Norato', gaúcho antecipou  a visão e o espírito dos modernistas de 1922

Autor de 'Cobra Norato', gaúcho antecipou a visão e o espírito dos modernistas de 1922


ACERVO FAMILIAR RAUL BOPP/DIVULGAÇÃO/JC
Primeiro de maio de 1500. Partindo do recém-descoberto Eldorado - que, três anos depois, ganharia o nome de Brasil -, grassava os mares, rumo a Portugal, a nau que transportava valioso artefato: a célebre carta de Pero Vaz de Caminha. A epístola relatava ao rei D. Manoel as impressões do escrivão Pero Vaz sobre o "novo mundo". Foram essas as inaugurais linhas grafadas em língua portuguesa nos domínios da então Ilha de Vera Cruz: "Senhor. Posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra". A epístola, na verdade um relato de viagem, é um marco da literatura brasileira.
Primeiro de maio de 1500. Partindo do recém-descoberto Eldorado - que, três anos depois, ganharia o nome de Brasil -, grassava os mares, rumo a Portugal, a nau que transportava valioso artefato: a célebre carta de Pero Vaz de Caminha. A epístola relatava ao rei D. Manoel as impressões do escrivão Pero Vaz sobre o "novo mundo". Foram essas as inaugurais linhas grafadas em língua portuguesa nos domínios da então Ilha de Vera Cruz: "Senhor. Posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra". A epístola, na verdade um relato de viagem, é um marco da literatura brasileira.
Quase 400 anos depois, enquanto o Velho Continente inflamava-se pelas ousadias estéticas das vanguardas europeias (dadaísmo, futurismo, surrealismo), a arte brasileira achava-se, ainda, atrelada a ultrapassados gêneros - em especial, ao parnasianismo. E é em radical oposição a esse contexto passadista que viceja o movimento batizado de "modernismo", em torno do qual um grupo de artistas lançaria a badalada - e controversa - Semana de Arte Moderna (de 11 a 18 de fevereiro de 1922), realizada em São Paulo: Mário e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Entre as proposições do grupo, o modernismo insurgia-se contra o conservadorismo nas artes e, não só isso, propunha uma redescoberta artística do Brasil: a ideia de uma cultura popular como um bem a ser preservado. 
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Contudo, um ano antes da Semana de Arte Moderna, em 1921, houve um poeta gaúcho (que depois se juntaria ao grupo paulistano) cuja visão e espírito havia se antecipado às postulações de cunho modernista. Seu nome: Raul Bopp. Desde muito jovem um aventureiro, Bopp (nascido na localidade de Vila Pinhal, hoje Santa Maria, em 1898), aos 22 anos, atravessou o País para cursar Direito em Belém do Pará. Na verdade, apenas uma desculpa para embrenhar-se no então incognoscível Norte brasileiro. E, chegando lá, deixou-se arrebatar pela leitura de Lendas em nheengatu e em português, estudo de Antônio Brandão de Amorim, e decidiu trancar a faculdade para lançar-se, então, de corpo e alma, na aventura de escrever, baseado na mitologia amazônica, os poemas contidos na obra Cobra Norato.
Mesmo que pouco (ou nada) conhecido pelo atual público leitor, o livro foi tido por escritores da mais alta estatura como "a grande obra modernista" - até mais, para muitos, do que a sempre lembrada e imensamente festejada Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade (a disparidade entre uma obra e outra, popularmente falando, é gritante). Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, disse: "Possivelmente (Cobra Norato) o mais brasileiro de todos os poemas brasileiros escritos em qualquer tempo". E Oswald de Andrade, um dos mentores do modernismo, pontificou: "Em Cobra Norato, pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira".
No livro, publicado apenas em 1931, o herói da história deseja casar-se com a filha da rainha Luzia e, para isso, mata a Cobra Norato e veste sua pele para percorrer melhor os caminhos amazônicos. Na trama poética, Norato consegue vencer os obstáculos da floresta e, no final, rouba a sua amada da "Cobra Grande".
Legítimo "seringueiro das palavras", Bopp extrai de seus versos - escritos e reescritos à exaustão - vivazes "aquarelas" da selva. O complexo e indecifrável ecossistema amazonense, pela verve de Bopp, abrolha em poemas que são, ao mesmo tempo, tensos, sintéticos e sincopados. Quase telegráficos. O poeta recita num dos trechos de Cobra Norato: "Começa agora a estrada cifrada/ A sombra escondeu as árvores/ Sapos beiçudos espiam no escuro/ Aqui um pedaço de mato está de castigo".
Em 1978, após 40 anos da primeira edição de Cobra Norato, Bopp deixou uma rara impressão sobre o poema. Segundo ele, o ambiente retratado em seu épico, e sua estranha brutalidade, "escapava-lhe das concordâncias": "Era (o Amazonas) a geografia do sem fim. A terra e as florestas repetiam-se, carregadas de alaridos anônimos. Eram, na verdade, indecifráveis vozes".

Modernismo gaúcho

Bopp em encontro com o escritor Jorge Amado, durante o lançamento de um livro no Rio de Janeiro

Bopp em encontro com o escritor Jorge Amado, durante o lançamento de um livro no Rio de Janeiro


ACERVO FAMILIAR RAUL BOPP/DIVULGAÇÃO/JC
Espécie de "outsider", Raul Bopp (1898-1984) teve sua criação na pequena Tupanciretã. De origem alemã, seu pai, Alfredo Bopp, também era poeta. A mãe, Josefina, escrevia versos em alemão. Aos 16 anos, impelido por uma sede de aventura comparável à do escritor norte-americano Jack London, Bopp deixou o lar dos pais com o propósito de percorrer o Brasil e alguns países vizinhos. Antes de começar o curso de Direito, em Porto Alegre, porém, exerceu as mais diferentes ocupações pelos caminhos que percorreu, desde pintor de paredes e caixeiro de livraria a jornalista.
O desbravamento solitário do jovem Bopp, aliás, antecedeu a famosa "Viagem de descoberta do Brasil", realizada em 1924 pela caravana modernista liderada por Oswald, Tarsila e Mário, a qual consolidaria, por exemplo, o roteiro do Carnaval carioca e a Semana Santa em Minas Gerais. Dado que, ainda hoje, enseja um questionamento sobre a centralização que seu deu, através dos tempos, do que se convencionou chamar "modernismo" fora do eixo Rio de Janeiro/São Paulo.
O professor e escritor Luís Augusto Fischer é severo crítico da exclusivista visão - ainda reinante - segundo a qual a paternidade do modernismo pertenceria a Mário e Oswald de Andrade. Quer dizer, portanto, um movimento de filiação paulistana. São os modernistas de São Paulo, explica o professor, que, na década seguinte, vão criar a USP, a qual, por sua vez, legitimará - academicamente - este centralizado ponto de vista. Fischer afirma que o conceito de "modernismo" deve ser pensado em suas mais diversas faces. O problema todo, pontua, é que, historicamente, apenas o "jeito Mário e Oswald" seja tido como "válido". "Nesse contexto, onde ficam escritores e artistas, entre muitos outros, como João do Rio, Augusto Meyer e Lima Barreto?", questiona.

Almas viajantes

Raul Bopp com a cantora e atriz Carmen Miranda

Raul Bopp com a cantora e atriz Carmen Miranda


Acervo familiar raul bopp/divulgação/jc
O ato de viajar (que remonta ao primeiro movimento literário brasileiro, conhecido como "quinhentismo", baseado em relatos de viagens, assim como a Carta de Pero Vaz), não resta dúvida, foi a principal essência na "alquimia criadora" da poesia de Bopp. E pôr o pé na estrada, de fato, foi o que o poeta gaúcho mais fez em sua vida, seja adentrando os confins do Brasil ou vivendo em outros países (exerceu carreira diplomática nos Estados Unidos, Suíça e Lima). Pode-se dizer que Raul Bopp pertence a uma estirpe da qual também fizeram parte escritores e poetas universais como Walt Whitman (Flores na relva), Rudyard Kipling (O livro da selva), o beatnik Jack Kerouac (On the road) - até o termo "Bebop", advindo estilo musical cuja sonoridade e compasso regeram a literatura beat parece trocadilhar com o "Bopp" de Raul.
Segundo o professor e poeta Augusto Massi, organizador de Poesia completa de Raul Bopp (José Olympio Editora, 1998) - que reúne rica fortuna crítica a respeito do poeta, com textos de Antonio Hohlfeldt, Augusto Meyer, Sérgio Buarque de Holanda -, um dos protagonismos de Bopp, além de Cobra Norato, se dá especialmente na criação da Revista de Antropofagia (1928-1929). Massi, porém, vai no mesmo sentido crítico defendido por Fischer: "Bopp merece ocupar o mesmo lugar que Mário e Oswald", diz. Para ele, a leitura da obra de Bopp permite, ainda, que o leitor entenda o modernismo de outra maneira: "O modernismo não existiu apenas na figura do escritor estetizante que encarava o primitivismo como impulso lírico e experimental de recriar a mitologia brasileira. Esse foi Raul Bopp. Um homem cosmopolita, que estudou profundamente a cultura indígena e viajou à Amazônia antes mesmo de Mário de Andrade".
Professor de Literatura Brasileira na Ufrgs, Sergius Gonzaga concorda que, entre a geração de 1920 e 1930, Cobra Norato foi a grande obra poética brasileira. Trata-se de um momento histórico literariamente muito forte, observa Gonzaga, em que, entre outros, têm-se livros como Macunaíma, Pau-Brasil, de Oswald de Andrade e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo - que, assim, como Cobra Norato, igualmente fazem uma síntese entre o folclore e os procedimentos formais mais inovadores propostos pelo modernismo.
Gonzaga, no entanto, aponta, entre as peculiaridades de Bopp, a presença de um traço específico (e definitivo), que, ao seu ver, raríssimos escritores gaúchos daquela época possuíam. Ou seja, um certo "cosmopolitismo". Essa característica, ele crê, veio a refletir-se na produção literária rio-grandense. Mas não no caso de Raul Bopp: "Ele tem uma ousadia de filiar-se a uma corrente artística que, para a época, era tão radical quanto revolucionária". Bopp, ele define, é o sujeito que "corre o risco". "Bopp ousa extraordinariamente para o seu tempo, especialmente porque, na realidade, ousadia não era a particularidade mais pujante entre os escritores gaúchos daqueles dias. Ainda hoje, no Rio Grande do Sul, o peso do 'tradicional' faz-se sentir vigorosamente na literatura regional", critica.

Poesia-reportagem

Em suas excursões "brasilianistas" (recolhendo e versejando pelo caminho mitos, lendas, festas populares e manifestações folclóricas), Raul Bopp - além de conferir a seu ofício uma feição verdadeiramente etnográfica - ainda inventou um novo gênero: a poesia-reportagem. Em 1928, época em que havia pouco mais de 100 quilômetros de estradas trafegáveis entre São Paulo e Curitiba, Raul é desafiado pelo Automóvel Clube paulista para que descreva, ou melhor, poetize, na medida do possível, o percurso entre as duas cidades.
Intitulado Como se vai de São Paulo a Curitiba, Bopp aventura-se em automobilísticos versos: "Deixei a cidade sumida no silêncio da madrugada/ Ficaram para trás os estirões de asfalto e as ruas tecidas de ferro e de cimento armado/ Agora o subúrbio. Pinheiros e o Butantã. Sombras largas abraçando a cintura das casas/ Sopra um vento insistente. Mãos no fundo dos bolsos/ Rolam, sob pneumáticos rápidos, trechos encaroçados de macadame/ São Paulo vai fugindo, amassada no fundo da memória, embrulhada de névoa, faiscante e encolhida de frio/ Estiram-se agora quilômetros de estrada, batida e larga, enroscada nos morros e aterros".

Urucungo

Em 1932, após a publicação de Cobra Norato, Raul Bopp concebe outro impactante volume de poemas: Urucungo (palavra africana cujo significado é "berimbau"). O livro é uma sensível coleção de - na definição do próprio poeta - "poemas negros" os quais retratam a castigada história da população afrodescendente no Brasil. Os versos vão desde o sequestro de povos africanos aos primeiros anos após a abolição da escravatura, desembocando na perspectiva do negro liberto, porém ainda oprimido, nas favelas.
Os 21 poemas de Urucungo também foram reunidos por Massi em Poesia completa de Raul Bopp. O poema Diamba - no qual Bopp põe-se na pele e no espírito de uma raça que não é a sua - faz uma evocação aos pretos-velhos e à paisagem africana, deixada para trás pelos escravos: "Negro velho fuma diamba/ para amassar a memória/ O que é bom fica lá longe.../ Os olhos vão-se embora pra longe/ O ouvido de repente parou/ Com mais uma pitada/ o chão perdeu o fundo/ Negro escorregou/ Caiu no meio da África".

A origem de Pagu

Bopp foi o autor do apelido dado à jornalista Patrícia Rehder Galvão

Bopp foi o autor do apelido dado à jornalista Patrícia Rehder Galvão


ACERVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Raul Bopp foi responsável por ter dado o apelido de Pagu à escritora e jornalista Patrícia Rehder Galvão. Um dos causos mais conhecidos da literatura brasileira, certamente. Bopp criou o apelido ao erroneamente imaginar que o nome da jovem era, na verdade, Patrícia Goulart. Escritora, poeta, diretora de teatro, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante política, Pagu foi uma mulher à frente de seu tempo.

Antropofagia revista


DIVULGAÇÃO/JC
Em 2009, a editora José Olympio reabilitou uma importante obra do poeta gaúcho Raul Bopp, originalmente publicada em 1977. Intitulado Vida e morte da antropofagia, no livro, que estava há anos sem ganhar nova edição, Bopp, àquela altura, ainda propunha-se a discutir a influência do modernismo na constituição de uma cultura legitimamente nacional.
Trata-se de um achado literário de grande valor: É, ainda, um livro de memórias, com alguns textos de caráter mais confessional. Há, inclusive, uma autoentrevista, na qual Bopp responde a si mesmo questões sobre assuntos como origens, viagens, modernismo e, é claro, Cobra Norato. Alguns trechos selecionados:
Em que medida o meio geográfico influiu no seu espírito?
Bopp - Eu me criei no Rio Grande, em Tupanciretã, zona campeira. Meu espírito se formou dentro dos quadros rurais. Aquela paisagem dilatada, de horizontes livres, sem mistério, terá, certamente, deixado em mim traços marcantes. Ela responde a uma relação espacial do homem com as distâncias. Delineou componentes sentimentais.
Como lhe ocorreu escrever a Cobra Norato?
Bopp - Um poema, em geral, não começa a ser escrito com o verso da primeira linha. Nasce, quase sempre, de uma ideiazinha central, como um núcleo magnético. Depois desenvolve-se naturalmente, pelos próprios enlaces do assunto. Tanto quanto eu me lembro, a impressão da vida vegetal amazônica formou a primeira semente do poema: "Aqui é a escola das árvores/ Estão estudando geometria".

Cobra Norato em imagens


projeto goeldi/divulgação/jc
Em 1937, o conceituado artista desenhista, gravador e professor Oswaldo Goeldi, filho do naturalista suíço Emílio Augusto Goeldi, residiu em Belém, onde seu pai organizava o Museu do Pará. Lá, conheceu Raul Bopp e sua obra. Em 1937, Goeldi fez as xilogravuras, como a que ilustra esta reportagem (cedida pela família), da edição de Cobra Norato publicada naquele ano. O livro conta com oito ilustrações, cada uma delas ocupando uma página inteira. Em Cobra Norato, pela primeira vez, Goeldi usa a cor em um trabalho artístico seu. Com o tempo, esta edição se tornou tão rara e disputada que chegou a ser leiloada por R$ 47 mil.

Outras Obras

Poesia
  • Poesias (1947)
  • Mironga e Outros Poemas (1978)
Prosa
  • América
  • Notas de um caderno sobre o Itamaraty
  • Movimentos modernistas no Brasil: 1922/1928
  • Memórias de um embaixador, Bopp passado a limpo porele mesmo
  • Vida e morte da antropofagia
  • Longitudes

Cristiano Bastos é jornalista. É um dos autores do livro Gauleses irredutíveis – Causos & Atitudes do Rock Gaúcho. Escreveu Julio Reny – Histórias de amor e morteJúpiter Maçã: A efervescente vida e obraNelson Gonçalves: O rei da boemia e o livro de reportagens Nova carne para moer. Também dirigiu o documentário Nas paredes da pedra encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho.