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Reportagem cultural

- Publicada em 10 de Outubro de 2019 às 21:20

A bisavó das casas noturnas de Porto Alegre

Casarão do Cabaré-cassino Club dos Caçadores, em estilo colonial, ficava na rua Andrade Neves

Casarão do Cabaré-cassino Club dos Caçadores, em estilo colonial, ficava na rua Andrade Neves


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Pode apostar: de 1914 a 1938, um cabaré-cassino no Centro de Porto Alegre sintetizou o espírito vibrante e cosmopolita de uma aldeia que entrava no camarim para se transfigurar em metrópole. Também fez de seu dono um sujeito tão abonado quanto controverso. Jogatina, mulheres, shows de variedades e outros finos atrativos depenavam fortunas no mesmo ritmo em que enriqueciam o imaginário local com episódios dignos das mais exuberantes salas europeias de diversões. Messieurs et mesdames, bem-vindos à história do visionário Capitão Lulu e o seu Club dos Caçadores!
Pode apostar: de 1914 a 1938, um cabaré-cassino no Centro de Porto Alegre sintetizou o espírito vibrante e cosmopolita de uma aldeia que entrava no camarim para se transfigurar em metrópole. Também fez de seu dono um sujeito tão abonado quanto controverso. Jogatina, mulheres, shows de variedades e outros finos atrativos depenavam fortunas no mesmo ritmo em que enriqueciam o imaginário local com episódios dignos das mais exuberantes salas europeias de diversões. Messieurs et mesdames, bem-vindos à história do visionário Capitão Lulu e o seu Club dos Caçadores!
Salões em madeira de lei, lustres de pingentes, flores, estatuetas, pista central, passagem em túnel entre ambientes, barbearia, cozinha internacional, champanhe Veuve Cliquot, talheres de prata, taças de cristal, roletas, carteados, bilhar, crupiês, garçons, cabaretiês, operetas, cantoras, orquestras, dançarinas, jogadores inveterados, mulherengos. Do lado de fora do casarão de moldes coloniais no número 26 da rua Andrade Neves, uma Porto Alegre de quase 200 mil habitantes se desenvolvia e iluminava, em 1914, repleta de imigrantes, fábricas, lojas, bondes, jornais, clubes, cafés, cineteatros. E ávida por debates, entretenimento e novidades.
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A cidade de chapéus, bengalas e afrancesamentos era também chão de caciques políticos, conservadorismo católico, liberalismo positivista, espeluncas, prostituição, suicídios, doenças (inclusive as venéreas), cocaína em farmácias e outros vícios. Essa belle époque tardia na esquina do paralelo 30 com o meridiano 51 abriu novo capítulo naquele ano, com a inauguração do Club dos Caçadores (também nomeado "Centro dos Caçadores"), bisavó das futuras boates locais. No comando dos tapetes vermelhos e panos verdes estava Luiz Alves de Castro (1884-1965), sujeito de origem meio nebulosa e cujo prestígio o levaria até o Rio de Janeiro para se tornar um dos reis da noite fluminense.
"A maioria diz ser mania de grandeza de gaúcho, que tudo não passou de mais uma lenda de Porto Alegre. Mas tendo ali vivido quase todas as noites, durante seis anos, testemunho com firma reconhecida de boêmio que o Caçadores foi um dos melhores clubes noturnos que conheci no mundo", testemunhou o célebre produtor de espetáculos Carlos Machado (1908-1992) em sua autobiografia, Memórias sem maquiagem. E ele não foi o único. O templo hedonista que durante 24 anos causou repulsa e fascínio mereceu generosas linhas de historiadores, jornalistas e escritores - um dos personagens de Erico Verissimo na saga O tempo e o vento, por exemplo, era habitué da casa.
Conta o anedotário local que, no início da década de 1920, o então deputado Flores da Cunha participava de uma roda de carteado no Club dos Caçadores quando um curioso se aproximou afoitamente da roda de jogo, derrubando cinzas de seu charuto sobre a mesa. Furioso, o caudilho mandou pedir ao porteiro da casa um guarda-chuva, que manteve aberto atrás de si pelo restante da madrugada, a fim de espantar os "perus". Já o presidente da Província, Borges de Medeiros, teria desistido de fazer seu sucessor um ex-secretário, devido à notória atucanação do camarada por uma dançarina espanhola do music hall da casa.
"A história de Porto Alegre não será bem contada sem a crônica desse clube noturno", decretaria o jornalista Nilo Ruschel no livro Rua da Praia, de 1971. E o que não faltam são narrativas sobre a presença de políticos e empresários que hoje designam ruas e avenidas até mesmo fora do Estado. Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Protásio Alves, Maurício Cardoso, Augusto Meyer. Com tapinhas nos ombros desse "fino escol", havia um nome que não consta em qualquer placa: Luiz Alves de Castro, o Capitão Lulu, primeiro rei da noite na Porto Alegre, onde nasceu, em algum ponto da zona central, no dia 25 de maio de 1884.
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Um 'notável capitalista da praça'

De origem nebulosa, Capitão Lulu se tornou um bem-sucedido empresário da noite porto-alegrense

De origem nebulosa, Capitão Lulu se tornou um bem-sucedido empresário da noite porto-alegrense


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
As origens de Capitão Lulu eram carta virada ao feltro. Primeiro de uma trinca de filhos da costureira Maria da Conceição Guimarães (cada qual com um pai diferente), corria à boca miúda ser ele fruto bastardo do ex-presidente provinciano Fausto de Freitas e Castro (1843-1900), nome ausente no registro civil de Lulu na Igreja Nossa Senhora das Dores. A infância no bairro Cidade Baixa teria sido ralada na entrega de marmitas e recados, entre outros pequenos expedientes, seguida pelo envolvimento com o jogo do osso e outras malandragens antes de uma incursão pelo ofício de marítimo e membro da Guarda Nacional - o que talvez explique o "Capitão" no apelido.
Com astúcia e vocação para a tavolagem, o rapaz de olho direito levemente estrábico parecia feito sob medida para o seu espaço-tempo: a Porto Alegre dos anos 1910, sem muitas diversões decentes após o cair da tarde e onde os contatos certos nas altas rodas, aliados a uma interpretação sinuosa da lei, permitiam navegar o barco da jogatina em águas relativamente tranquilas. A linha positivista do governo gaúcho sob o comando de Borges de Madeiros (1913-1928) tinha por base o Estado não meter o bedelho em certas questões. Desde que adulto e em clubes fechados, o cidadão era livre para desperdiçar o seu dinheiro como bem entendesse.
Em 1913, já com 29 anos, um adoecimento por sífilis e ao menos uma detenção (por flagrante em uma roda da sorte clandestina na rua Riachuelo), Luiz cortava o baralho em dois antros próprios na Rua da Praia - o Elite Club e o Café Paulista. Enquanto extraía até a última pataca de seus fregueses, amealhava uma pequena fortuna, de olho em uma jogada mais ambiciosa. E ela seria feita no ano seguinte, em sociedade com o comerciante português José Carvalho, na aquisição e reforma do casarão nº 26 da rua Andrade Neves, após um período inicial de operações no trecho da Sete de Setembro entre a Ladeira e a Uruguai.
Exceto por uma estatueta de bronze no saguão (reproduzida abaixo), com as figuras de dois atiradores de espingarda, o nome "Caçadores" não fazia muito sentido, parecendo mais um blefe para embaralhar as autoridades. Quem se importava? Das 18h às 6h, o clube - com sócios, convidados e estatuto - oferecia em seus diversos ambientes o melhor ponto de diversões noturnas (leia-se "masculinas") em um tempo ainda sem aparelhos de rádio para se ouvir música ou notícias da Primeira Guerra Mundial. Convidativos, os anúncios estavam em praticamente todos os jornais, revistas e almanaques, sem qualquer menção a jogos de azar ou prazeres proibidos.
Concorrendo com clubes menos nobres (High Life, Mignon, Royal, Marly, Palace, Monte Carlo, Brazil, Boulevard, ABC, Elite e Fomento, os dois últimos do próprio Lulu), bares e cafés com música, o Caçadores espraiava a sua fama, atraindo companhias forasteiras de vaudeville (teatro de variedades) para escalas no trajeto entre Rio de Janeiro e Buenos Aires. Também passava a ser o destino de cabaretiês parisienses (legítimos ou fajutos), bem como de cantoras, atrizes e dançarinas europeias, muitas despejadas na América por uma rede internacional de tráfico de mulheres, embora nem todas "decaíssem" à prostituição.
Com os cofres abarrotados, Lulu circulava desenvolto com seu chapéu-picareta e sapatos-polainas por variados círculos, em busca de visibilidade, aprovação e blindagem. Nem que para isso fosse preciso se filiar ao onipotente PRR (Partido Republicano Riograndense), afagar os jornais com anúncios pagos e, com a destreza de um crupiê, distribuir mil-réis a rodo para causas elevadas: auxílio às vítimas da gripe espanhola de 1918, amparo dos brigadianos feridos na Revolução de 1923 e até mesmo viúvas de apostadores que se suicidavam após perder tudo no próprio cabaré-cassino da Andrade Neves.
Mas o coringa pode mudar de valor conforme o naipe. Poucos figurões da época foram etiquetados com tamanho catálogo de adjetivos, muito ou nada lisonjeiros. Tido por "notável capitalista da praça", revitalizador cultural e símbolo de altruísmo, era também pifado como escroque, rufião, sanguessuga, devastador de famílias, agente sorrateiro dos "vícios elegantes" e prócer da ruína moral. Segmentos retrógrados da política e da imprensa, insuflados pela Igreja Católica, não poupavam fichas em tratá-lo como um dos diabos a soprarem o pecado nos ouvidos de uma cidade que crescia e teimava em buscar o prazer inconsequente.
“Luiz Alves de Castro tinha um fraco pelas rodas de gente importante”, definiu o cronista Paulo de Gouvea em seu livro de reminiscências O Grupo (1976). “Babava-se todo quando tinha a suprema ventura de passear na Rua da Praia ao lado de algum ilustre figurante da política ou outros mandões. Era a sua hora de glória, embora insinuassem os maldizentes que isso custava um bocado de dinheiro a Lulu. É que os ilustres senhores que o honravam publicamente com sua ilustre companhia nunca se lembravam de pagar os polpudos vales que assinavam em troca das fichas de jogo. Caso evidente de amnésia, já se percebe.”

Reputação em jogo

Única alusão ao nome do lugar, estatueta de bronze que ficava no saguão do Club dos Caçadores

Única alusão ao nome do lugar, estatueta de bronze que ficava no saguão do Club dos Caçadores


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
O choque entre essas duas visões de mundo se esbugalhava em episódios como o da Festa do Divino Espírito Santo, uma das mais concorridas da capital gaúcha da época. Eleito "imperador" do evento em junho de 1925, Lulu teve o seu nome repelido pelo vigário da Igreja Matriz (atual Catedral Metropolitana) e pelo arcebispo Dom João Becker, em nome dos "bons costumes".
A comissão organizadora, formada por leigos, tentou bater pé, afinal tratava-se de um desmedido doador da paróquia. Sem chance. Tudo noticiado durante semanas pelos periódicos locais, até que o assunto fosse encerrado com panos quentes de ambas as partes.
Jornais como A Federação (órgão oficial do governo) também repercutiam falas, réplicas e tréplicas sobre as frequentes querelas entre Luiz e a Protectora do Turf (futuro Jockey Club do Rio Grande do Sul), da qual era sócio. Proprietário e importador de cavalos de raça (outra de suas paixões), ele bateu de frente com o comando da entidade, em setembro de 1923, após denúncias de que explorava em seu Café Paulista, na Rua da Praia, dois sistemas paralelos de apostas nos páreos: o “Concurso de Palpites” e o “Bookmaker”. Acabou expulso da agremiação por um punhado de anos, sob protestos de vários portadores da carteirinha.
Outra contenda foi parar na Vara Criminal: esparramando dinheiro como um crupiê a repartir cartas, em 1924, Lulu decidiu frear as mordidas do compadre Alfredo Guimarães, dublê de jornalista e poeta cujo tinteiro vinha sendo gasto em insistentes bilhetes com pedidos de empréstimo. A recusa descambou em chantagem: sem a "gaita", um libreto despejaria revelações sórdidas sobre o empresário e seu sócio lusitano - que não pagaram para ver. O resultado foi No mármore das autópsias (A história de dois patifes bem-vestidos), do qual só se sabe o paradeiro de dois ou três exemplares dos alegados 5 mil originais.
Em 32 páginas de esculacho, sobrou até para a mãe de Luiz, descrita sem dó como uma "degenerada" por ter procriado com três cidadãos - político, jornalista e despachante. Mas foi o ex-patrocinador quem recebeu a pior mão: parasita social, trapaceiro impune, cafetão insensível e "pederasta compulsivo" - apesar de casado com Josephina "Linda" Lantieri, dançarina italiana que, em 1919, chegara de Catania (Sicília) com uma filha, via Buenos Aires, após o assassinato do primeiro marido. Processado por calúnia e injúria, Guimarães recebeu o veredicto de um ano de cadeia, da qual se safou fugindo para o Interior.

Palácio das Lágrimas

Sugestivo nome de Club dos Caçadores parece mais um blefe para confundir as autoridades

Sugestivo nome de Club dos Caçadores parece mais um blefe para confundir as autoridades


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
A banca paga e, sobretudo, recebe. Em 1926, o afortunado Lulu atingia o seu auge financeiro, pedra cantada pelas melhorias no próprio cabaré-cassino, expansão do patrimônio imobiliário e viagens à França (às suas expensas, o meio-irmão Fernando cursou Odontologia em Paris). Foi quando apostou alto em dois números: o 72 do largo da Praça da Matriz e o 1.123 da Rua da Praia. O primeiro deu lugar a um palacete pessoal com quatro andares e sacada para as sedes dos quatro Poderes: Executivo, Legislativo, Judiciário e religioso - proximidade irônica para quem gravitava na linha fronteiriça da legalidade.
Já no segundo, Luiz e José Carvalho bafejaram os dados em um projeto de vulto: nova sede para o Caçadores, em prédio de estilo eclético e seis andares, como prolongamento do casarão na Andrade Neves. As mesas dos cafés do entorno - Nacional, Colombo, Suissa, Central, Gioconda - não esperaram a conclusão do edifício para batizá-lo de "Palácio das Lágrimas", pois foi erguido à custa da ruína de quem arriscara suas patacas no giro dos números e partidas de bacará. O choro, porém, logo atingiria os empreendedores da obra, cujo plano desmoronaria como um castelo de cartas, dando a Lulu o seu primeiro grande revés.
Acontece que, se a suntuosidade do futuro endereço já causava torcicolos de assombro, a sua localização igualmente não tinha como passar batida pela ala mais casmurra da cidade, escandalizada com tamanho acinte em plena Rua da Praia. Se o "cancro social" precisava ser extirpado, o bisturi surgiu no verão de 1928, na forma de uma campanha moralizadora liderada pelo Correio do Povo, de nariz torcido para Lulu desde que ele entrara com capital e nome no cabeçalho do jornal A Manhã (1920-1922), fundado pelo redator Emilio Kemp para desbancar o diário da Companhia Caldas Júnior, da qual havia sido um dos cabeças.
O governo do recém-empossado presidente do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas (que chegara a frequentar o Caçadores), acabou cedendo às pressões, e então a chefia de Polícia impediu o corte da fita da matriz, onde jamais se ouviria o tilintar de fichas. Seu destino acabaria sendo o aluguel, por muitos anos, à companhia elétrica Força e Luz. De cortinas fechadas até baixar a poeira, o negócio logo retomou o seu ritmo no ponto de sempre, tirando da manga nomes-disfarces como "Cine-Theatro Variedades" (com direito a filmes pornográficos) para despistar a opinião pública. Mas a grande jogada estava a mais de mil quilômetros dali.

Sorte e azar no Rio de Janeiro

Luiz Carlos Lantieri, 80 anos, sobrinho da mulher de Lulu, ainda guarda as fichas de plástico galalite

Luiz Carlos Lantieri, 80 anos, sobrinho da mulher de Lulu, ainda guarda as fichas de plástico galalite


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Luiz já era visto às ganhas no Rio de Janeiro quando a nova década trouxe brechas e motivos para que Porto Alegre fosse um ás de espadas a ser descartado. Getúlio havia se tornado presidente da República com a revolução de outubro de 1930, causando uma derrama de conterrâneos na então capital federal, auspiciosa aos divertimentos adultos. No mês seguinte, uma moléstia cardíaca custara a vida de Janina, 20 anos, enteada de Lulu e casada com o filho de seu sócio. Arrasadas, as duas famílias tomaram o navio para a Guanabara, deixando com terceiros a chave do Caçadores, que resistiria até 1938, sem o mesmo charme.
A mudança se confirmaria uma tremenda bola dentro. Instalado em Niterói com a mulher, cunhados e sobrinhos, o gaúcho abriu ali o Hotel-Cassino Icaraí, mas o lance de mestre se deu mesmo em 1936, ao firmar sociedade com o mineiro Joaquim Rolla (1899-1972) em algumas das mais hollywoodianas casas do ramo combinado de espetáculos e jogatina, do Cassino da Urca ao Hotel Quitandinha (Petrópolis). Tudo amaciado por um decreto federal que excluía tais empreendimentos do rol de contravenções quando instalados no Distrito Federal e "estações balneárias, hidroterápicas ou climáticas".
Enquanto mantinha em moto-contínuo essa fabulosa engrenagem caça-níqueis, Capitão Lulu reprisava a sua tática porto-alegrense de costurar parcerias à mão-cheia nas mesas políticas, sociais, culturais e esportivas - fosse no turfe, no futebol, nas regatas ou na aviação. Mas essa estampa bonachona, as costas quentes e o caixa sem fundo não puderam impedir a sua segunda grande zebra empresarial: em abril de 1946, três meses depois de assumir a presidência no lugar de Getúlio, o general Eurico Gaspar Dutra decretou em todo o País o fim dos jogos de azar, "incompatíveis com a tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro".
A seca da torneira que fizera de Lulu um homem de sorte por três décadas também atingiu em cheio o staff familiar, de uma hora para a outra obrigado a sair da aba do chapéu carioca de seu arrimo. "Fomos embarcados de volta para Porto Alegre, onde recomeçamos praticamente do zero, ainda que sem mágoas", relembra o médico aposentado Luiz Carlos Lantieri, 80 anos, sobrinho de Linda e que mantém, na sala de seu apartamento, a estatueta que, há um século, ornava o hall do famoso cabaré. Com o mesmo carinho, ele guarda fichas de plástico galalite (à esquerda) cujo ruído hipnotizou malandros e ingênuos com igual magnetismo.
 

Última rodada

Palácio das Lágrimas, na Rua da Praia, foi comprado pela companhia Força e Luz (hoje CCCEV)

Palácio das Lágrimas, na Rua da Praia, foi comprado pela companhia Força e Luz (hoje CCCEV)


MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Afastadas as chances de retomada do jogo (mesmo com a volta de Vargas do poder, em 1951), restou ao "notável capitalista" dilapidar imóveis, joias e outros bens. E a sua cidade natal entrou no roteiro.
Em 1946, a mansão na Praça da Matriz passou às mãos de um comerciante português e atualmente funciona como um charmoso hotel. Já a sede do extinto Caçadores foi vendida ao Jockey Club e trocou de donos até ser consumida por um incêndio em 1992, quando ali funcionava o bar e restaurante Porto Velho. Após dar lugar a um estacionamento a céu aberto, desde 2017 abriga um moderno prédio de garagens e escritórios.
Sina bem mais distinta teve o Palácio das Lágrimas, na Rua da Praia. Adquirido pela companhia Força e Luz, e desapropriado no processo que gerou a CEEE, o prédio acabou tombado em 1984 pelo patrimônio histórico, antes de passar por um processo de restauro e adaptação de seus espaços. Em 2002, passou a funcionar ali o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo (CCCEV).
O homem à frente de toda essa história morreu no Rio, em 31 de outubro de 1965, aos 81 anos, vítima de um câncer de próstata. Praticamente ignorado pelos jornais porto-alegrenses, o fato ao menos motivou menções elogiosas em veículos da imprensa carioca - "um homem puro e bom, de coração maior que ele próprio e amigo fiel dos seus amigos", registrou uma coluna da Última Hora. Os restos mortais de Lulu, Linda (1882- 1977) e Janina (1910-1930) descansam no cemitério São João Batista, "a necrópole dos famosos" no bairro de Botafogo, na Zona Sul carioca. Para quem gosta de números, o jazigo é "98-E".

Talentos femininos

Espremidas no espartilho histórico que reduz a programação do Clube dos Caçadores a um elegante cardápio de jogatina ostensiva com prostituição velada, as artistas da casa não eram meras dançarinas dispostas a fazer hora-extra com a clientela mais libertina. Ao menos não todas, dentre francesas, polacas, argentinas, chilenas ou de araque que ali cumpriam temporada. Muitas chegavam da Europa por uma rede internacional de tráfico de mulheres, após uma escala em Paris para o devido “estágio de refinamento” ou mesmo já traziam de melhor berço o canto lírico e outros talentos.
E a música cumpria papel decisivo nesse cenário, fosse como elemento legitimador de status ao estabelecimento, atrativo-extra ou mesmo pano-de-fundo para rodadas de jogos, conversas sobre política e negócios. “Com as tecnologias de reprodução sonora ainda engatinhando, havia música ao vivo em toda parte”, explica Fabiane Behling Luckow, autora de Chanteuses e Cabarés: a performance musical como mediadora dos discursos de gênero na Porto Alegre do início do Século XX, dissertação de mestrado defendida em 2011 na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
“Nos cabarés da cidade o repertório era de operetas e outros números estrelados por cantoras, dançarinas, pequenas orquestras e jazz-bands, emulando as revistas musicais francesas, com quadros de variedades sob o comando do cabaretiê, espécie de mestre-de-cerimônias cujo nome era uma garantia de qualidade ao espetáculo”, acrescenta. Um dos encarregados dessa função no Caçadores foi o versátil Italo “Leopoldis” Majeroni (1888-1974), um napolitano que tempos depois fundaria a empresa Leopoldis-Som, referência em cinejornalismo no Rio Grande do Sul. Já outros desapareceriam sem deixar rastro.

'Residência oficial'

Hotel Praça da Matriz ocupa palacete construído em 1927 como 'residência oficial' do Capitão Lulu

Hotel Praça da Matriz ocupa palacete construído em 1927 como 'residência oficial' do Capitão Lulu


MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Se depender de Ilita Patrício, 70 anos, a figura de Luiz Alves de Castro não será esquecida. É dela o palacete construído em 1927 como “residência oficial” do dono do Caçadores e vendido ao sogro da empresária em 1946, quando Lulu começou a se desfazer de seus bens para tapar prejuízos com a proibição definitiva dos jogos de azar no País. Alugado a entidades de classe por três décadas, em 1976 o ponto deu lugar ao Hotel Praça da Matriz, assumido em 2010 pela proprietária e que recebeu R$ 1,5 milhão em obras de revitalização até reabrir as suas portas, em julho de 2016, com uma festa à fantasia – de época – e palestra com pesquisadores.
“A qualidade dos materiais empregados originalmente e a exuberância do espaço, projetado pelo engenheiro alemão Alfred Haessler, sugerem uma postura de ostentação”, observa a empresária, que administra com oito funcionários o empreendimento de 24 quartos (46 leitos), bastante procurados pelos elencos de espetáculos em cartaz no vizinho Theatro São Pedro. Muitas das celebridades artísticas que ali se hospedam deparam, curiosas, com um retrato de Lulu emoldurado na parede do “Salão dos Vitrais”, no segundo pavimento, junto a outras fotografias alusivas ao passado do imóvel.

*Marcello Campos é formado em Jornalismo e Publicidade e Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem quatro livros já publicados, incluindo a biografia de Lupicínio rodrigues e do Conjunto Melódico Norberto Baldauf. Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.