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reportagem cultural

- Publicada em 09 de Agosto de 2019 às 03:00

Os lugares de Porto Alegre na obra de Iberê Camargo

No período em que viveu na Capital, artista encontrou os cenários e os personagens que resultaram em criações icônicas como 'Ciclistas, Fantasmagorias e Idiotas'

No período em que viveu na Capital, artista encontrou os cenários e os personagens que resultaram em criações icônicas como 'Ciclistas, Fantasmagorias e Idiotas'


LUIZ EDUARDO ROBINSON ACHUTTI/DIVULGAÇÃO/JC
Com mais de 7 mil obras produzidas ao longo da vida, Iberê Camargo consagrou-se como um dos maiores nomes da arte brasileira em território carioca. Foi em Porto Alegre, porém, que passou sua última década e empreendeu uma das fases mais vigorosas de sua carreira.
Com mais de 7 mil obras produzidas ao longo da vida, Iberê Camargo consagrou-se como um dos maiores nomes da arte brasileira em território carioca. Foi em Porto Alegre, porém, que passou sua última década e empreendeu uma das fases mais vigorosas de sua carreira.
Na Capital, encontrou os cenários, os personagens e os elementos que resultaram em criações icônicas como Ciclistas, Fantasmagorias e Idiotas. Decifrar o universo do pintor, que morreu há exatos 25 anos, vítima de câncer no pulmão quando tinha 79 anos, é seguir seus passos pela cidade e reconstituir os caminhos percorridos pelo artista até a obra.
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Filho de ferroviários, Iberê nasceu em Restinga Seca, em novembro de 1914. Em 1936, mudou-se para Porto Alegre, onde conheceu Maria Coussirat Camargo, com quem se casou em 1939. Na Cidade Baixa, às margens do antigo riacho que atravessava a região e que marcou o início de seu namoro com Maria, Iberê pintou seu primeiro quadro, Paisagem, em 1941. "Com espessa pasta (...), fixei a luz fugitiva dessa manhã de sol sobre aquelas águas lodosas. Árvores desgalhadas, surradas pelo vento, apontam para um céu de cobalto. Plasmei essa imagem: assim começa o pintor. Não se pergunte para onde vão as águas, que andam, que andam, que nunca param e não se cansam", escreveu o artista em seu caderno de memórias, posteriormente transformado no livro Gaveta dos guardados (Cosac Naify, 2010).
Em 1942, fez sua primeira exposição e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viveu por 40 anos. No período, desenvolveu um dos temas mais recorrentes em sua produção, os carretéis, e tornou-se reconhecido pela pintura densa, com muitas camadas de tinta e predominância de tons escuros como fundo. Sua obra foi exibida em mostras de destaque internacional, como as bienais de Madri, Veneza e Tóquio, e exposições em vários países, como Inglaterra, França, Itália, Espanha e Estados Unidos. De volta a Porto Alegre, o artista estabeleceu-se na Cidade Baixa e, em 1988, mudou-se para a residência-ateliê que construiu no bairro Nonoai.
Com o Centro da cidade, o homem-pintor - como Iberê se denominava - construiu uma relação especial. É para lá que se dirigia toda sexta-feira, a fim de se reunir com amigos em frente à extinta Casa Masson, na Rua da Praia, conta o gravurista Eduardo Haesbaert, que foi assistente de Iberê nos últimos quatro anos de vida do pintor. "Ele ia de loja em loja. Conhecia o dono, os balconistas, queria bater papo. A cidade já tinha mudado muito para ele, então ele vê a Rua da Praia com aquele olhar de antigamente", afirma. Das vitrines, Iberê tirou a inspiração para as serigrafias e pinturas da série Manequins. Outras paradas obrigatórias eram as livrarias e o Museu de Artes do Rio Grande do Sul. O artista era também um habitué no Café da Rua Uruguai, recorda a amiga e galerista Tina Zappoli.
Nos domingos, o destino do pintor era o Brique da Redenção. Enquanto morou na Cidade Baixa, Iberê ia com frequência ao Parque Farroupilha. Sempre munido de um caderninho, observava os diferentes tipos de frequentadores, tendo feito ali centenas de desenhos e esboços para obras maiores no ateliê. "Qualquer figura que chamasse a atenção ele anotava. Depois, convertia em pintura ou gravura", informa o artista plástico Gelson Radaelli, que costumava acompanhar o pintor nos passeios.
Típico pintor de ofício, Iberê se inspirava na paisagem urbana. Impactado pelo contexto ao seu redor, coletou pela cidade, ao longo do tempo, um repertório de motivos para a composição de sua obra. Nessa busca, chegava a ir a ferros-velhos, desenvolvendo estudos para a série Desastres, na qual retratou carcaças de veículos amontoados. As árvores eram um tema especialmente caro ao artista, pois diminuíam sua solidão durante o verão na Capital, conta Eduardo Haesbaert. "Ele dizia que, ao contrário da maioria das pessoas, as árvores não precisavam ir para a praia e ficavam aqui."

Gratidão e homenagem a Porto Alegre

Tina Zappoli acolheu Iberê Camargo após o retorno do artista do Rio de Janeiro - na tela ao fundo, Tina retratada por Iberê

Tina Zappoli acolheu Iberê Camargo após o retorno do artista do Rio de Janeiro - na tela ao fundo, Tina retratada por Iberê


MARIANA CARLESSO/JC
Da Rua da Praia à Usina do Gasômetro, referências a Porto Alegre na obra de Iberê Camargo, a partir dos anos 1980, sugerem muito mais do que um registro de impressões sobre lugares emblemáticos da Capital. Eram uma clara homenagem à cidade que o acolheu após a tragédia que impactou sua vida quando morava no Rio de Janeiro e já era um pintor reconhecido, segundo a galerista Tina Zappoli.
Em dezembro de 1980, após um desentendimento na rua enquanto caminhava pelo bairro de Botafogo, Iberê, que portava uma arma, matou o engenheiro Sérgio Areal. Foi absolvido por legítima defesa, mas o fato abalou a carreira do artista, que decidiu voltar a viver em Porto Alegre em 1982. "Eu e o jornalista Tatata Pimentel trabalhamos juntos na Galeria do Centro Comercial e tínhamos feito duas exposições muito bem-sucedidas de Iberê (em 1980 e 1981). Nós o tínhamos acolhido, como artista e como homem que erra. Ele sentiu que, além dos amigos e da terra-mãe, tinha uma possibilidade de sobrevivência aqui", lembra Tina. "A galeria fechou em 1981, abri a atual no final do ano e ele continuou trabalhando comigo."
Referência em comércio de arte contemporânea, a Galeria Tina Zappoli representou Iberê desde o retorno à Capital até a sua morte, em 1994. Fez com que sua produção, ainda muito circunscrita ao Rio, onde havia desenvolvido a carreira, circulasse em São Paulo, Brasília, Salvador e outras regiões do Brasil. "Fomos quebrando barreiras. Na época, o mercado estava efervescente, foi uma coincidência a nosso favor", afirma Tina. "Vendíamos muito, inclusive obras de Iberê, que era um artista mais difícil. Isso o obrigava, de vez em quando, a aumentar os preços, porque não queria ficar pressionado pelo mercado. Ele então dava uma parada, conseguia pesquisar, criar uma nova série. Era um artista articuloso."
O regresso sinalizou uma inflexão no trabalho do artista, associada por muitos especialistas ao episódio no Rio. Na fase anterior, ele havia explorado objetos, como dados e os famosos carretéis de linha - brinquedos de infância que transformou em signo máximo de sua obra. Em Porto Alegre, retomou a figura humana como tema, sua pintura se torna mais dramática.
Segundo a galerista, Iberê era muito grato à Capital, onde resgatou velhas amizades e redefiniu sua arte. Um sentimento explícito nos títulos das criações que emergiam de sua paleta, como Manequins da Rua da Praia e Ciclistas da Redenção. A gratidão do artista também se evidencia na vasta produção de retratos, em que registrou pessoas de sua rede e da vida cultural da cidade, como os escultores Vasco Prado e Xico Stockinger, o jornalista e historiador Décio Freitas e a atriz e escritora Olga Reverbel. "Iberê queria homenagear a cidade, por isso tudo ele localiza em Porto Alegre. E fez questão de pintar todas as pessoas que foram importantes para ele", afirma Tina.
O mesmo sentimento o levou a dar solenidade à tela Personagens, de 1983, na qual retratou os amigos Tina e Tatata, outras duas amigas e Martim, o gato do pintor.
Iberê expôs o quadro, mas nunca o colocou à venda. Queria, segundo a galerista, guardá-la para um propósito maior, como se previsse que, no futuro, sua arte ganharia um espaço nobre. Com 1,5 metro de altura e 260 centímetros de largura a obra, hoje, integra o acervo da Fundação Iberê Camargo.

Laços forjados no cotidiano do ateliê

Lou Borghetti cedeu garagem para Iberê finalizar, em duas semanas, painel encomendado de grandes dimenões

Lou Borghetti cedeu garagem para Iberê finalizar, em duas semanas, painel encomendado de grandes dimenões


MARCO QUINTANA/JC
Relatos de quem conviveu com Iberê Camargo revelam um homem delicado, querido pelos amigos e preocupado em expressar a condição humana. Seu cotidiano no ateliê era uma mostra dos fortes laços que desenvolveu com a cidade. "Havia sempre gente em torno de Iberê, e ele chamava todo mundo, convidava para irem lá. Fazia pelo telefone o que se faz hoje no Facebook e no Instagram", relembra a artista plástica Lou Borghetti, que foi aluna e assistente do pintor no estúdio mantido por ele na Cidade Baixa, na rua Lopo Gonçalves.
Sob o olhar aguçado de Iberê, essas relações viravam tema para inúmeros retratos. "Quem entrava lá ele desenhava, e a Maria (Coussirat Camargo, esposa do pintor), pegava o desenho e catalogava", relata Lou, ela própria registrada em pintura pelo mestre em 1984. Na época, Iberê, atento à agitação política do Brasil dos anos 1980, recebera da Funarte do Rio de Janeiro a encomenda de um grande painel com o tema Diretas Já, mas não tinha espaço suficiente para o material no ateliê. "Então cedi minha garagem para ele, que trabalhou durante duas semanas. O retrato foi uma forma atenciosa de agradecimento", conta a artista.
Entre os muitos modelos que viu passarem pelo estúdio na Cidade Baixa, Lou recorda os integrantes do grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz. Em 1986, Iberê assistiu, na Terreira da Tribo de Porto Alegre, a uma encenação do clássico As criadas, do francês Jean Genet. Inspirado pelo texto, que explora questões sociais e relações de poder, decidiu retratar os atores caracterizados como os personagens da peça em uma série de guaches. "Era um prato cheio para o Iberê. E os trabalhos que fez são maravilhosos", conta Lou.
A vida simples do casal Camargo e seu ritual de jantar também impressionavam os visitantes. Lou, que costumava jantar com Iberê e Maria uma ou duas vezes por semana na casa da Cidade Baixa, faz uma descrição poética desses momentos. Na sala de jantar, ao redor da mesa de quatro lugares - onde sempre havia uma garrafa de vinho -, uma cadeira era reservada para o gato Martim. O bichano, retratado por Iberê em desenhos e pinturas, ganhava um pratinho de comida e apoiava as patas dianteiras na mesa. "Eu ficava encantada com o modus vivendi deles, me emociona até hoje", revela a artista.

Jornadas adentro pelo Parque Farroupilha

A miséria humana captada pelo artista: tela Mendigos do Parque da Redenção

A miséria humana captada pelo artista: tela Mendigos do Parque da Redenção


FÁBIO DEL RE/VIVAFOTO/DIVULGAÇÃO/JC
Principal ponto turístico da Capital, o Parque Farroupilha, também conhecido como Redenção, era um dos tradicionais destinos de Iberê Camargo em sua permanente experimentação. Ao circular por suas alamedas com um caderno de desenhos, o artista, que, no retorno a Porto Alegre, já havia retomado a figura humana, observava cenas do cotidiano, estudando os transeuntes que eternizaria em desenhos, pinturas e gravuras. O local inspirou algumas de suas séries mais conhecidas, como Ciclistas.
Nas jornadas pelo parque, Iberê colocou no centro de sua expressão dramática personagens como músicos, palhaços, artistas de teatro e pipoqueiros. Alguns desses anônimos depois eram convidados para posar como modelos em seu ateliê, para que ele pudesse aprimorar o trabalho. Seu olhar também era atraído pelos indivíduos solitários, que depois retratava de maneira distorcida, desfigurados.
A miséria o impactava. "Ele tinha preferência pelos decadentes, os mendigos. Em seu desenho superveloz, captava o âmago daquelas figuras", diz o artista plástico Gelson Radaelli, que acompanhava Iberê nos passeios pela Redenção. Em um de seus momentos mais "iluminados", conta Radaelli, Iberê viu um grupo de moradores de rua lavando roupas na Fonte Francesa, chafariz de ferro fundido existente no parque. "Ele desenhou um homem curvado sobre a fonte, com as costas mais altas que a própria cabeça, como se carregasse o peso do mundo. É uma figura que não me sai da memória", descreve. Depois, em um gesto de gratidão, Iberê entregou uma nota de dinheiro a cada um dos modelos. O desenho, de 1987, faz parte da série Mendigos do Parque da Redenção.

Legado protegido e acessível na Fundação Iberê

Prédio abriga obra do artista junto à famosa prainha do Iberê

Prédio abriga obra do artista junto à famosa prainha do Iberê


MARCO QUINTANA/JC
Criada em 2008 para abrigar o acervo de Iberê, a moderna sede da Fundacão Iberê Camargo (FIC) reúne mais de 5 mil obras. Todo esse tesouro está armazenado em uma reserva técnica de 80 metros quadrados, climatizada e vigiada por câmeras de segurança. As pinturas estão em trainéis deslizantes, em grades semelhantes a paredes móveis. De acordo a FIC, a mobília foi projetada sob medida para acomodar com segurança a maior peça da coleção - Solidão, de 1994, com 2 metros de altura e 4 metros de largura, a última tela produzida pelo artista.
Os desenhos, guaches e gravuras estão numerados e acondicionados com papel de PH neutro em mapotecas deslizantes. São quase 200 gavetas que guardam, ainda, as obras de mais de 100 artistas que passaram pelo Ateliê de Gravura da instituição. Portas corta-fogo garantem a proteção do ambiente em caso de incêndio por pelo menos 60 minutos. Um equipamento de marca alemã controla a temperatura e a umidade relativa do ar, evitando a proliferação de fungos. A cada 15 minutos, outro aparelho coleta e registra esses dados, que podem ser acessados em tempo real pela internet.
"O acervo sempre foi muito bem cuidado. A diferença é que agora está mais 'vivo', passou a entrar mais na área expositiva", diz o superintendente da FIC, Emilio Kalil. Em abril, o museu passou a funcionar de quarta-feira a domingo, das 14h às 18h30min - até então, o espaço abria para visitação apenas nos fins de semana. Às segundas e terças-feiras, a instituição recebe escolas e grupos para visitas agendadas. As exposições também estão mais frequentes. Até 25 de agosto, pode ser conferida a mostra #Selfie: Iberê em Modo Retrato, que ocupa dois andares do prédio com retratos, autorretratos e instalações interativas. Um novo evento está previsto para o fim do ano. "Serão três exposições anuais tendo Iberê como tema. E, desde o ano passado, nunca se entra nesta casa sem que haja, no mínimo, uma obra de Iberê exposta", afirma Kalil.
À frente da FIC desde maio do ano passado, Kalil diz que a instituição vem trabalhando para aproximar o legado de Iberê da comunidade. Uma das iniciativas é o projeto Iberê nas Escolas, em parceria com a prefeitura de Porto Alegre. Anunciado em junho, o projeto propõe atividades relacionadas à arte no turno inverso de seis estabelecimentos de ensino da rede municipal na Zona Sul. "É uma forma de ir até a escola, instruir, e depois fazer a escola vir aqui", explica o gestor da fundação.

O acervo em números

Desenhos e guaches
  • 3.246 - Obras criadas entre 1927 e 1994
Pinturas
  • 216 - Pinturas do período de 1941 a 1994, sendo a maioria óleo sobre tela
Gravuras
  • 1.570 - Exemplares de 356 gravuras (trabalhos em metal, litografias, monotipias, xilogravuras e serigrafias)
Documentos
  • Mais de 20 mil relacionados à vida e à obra de Iberê (catálogos, recortes de jornais e revistas, correspondências, cadernos de notas e fotografias).

Memória presente na orla

Ao ganhar um museu para abrigar sua obra, em 2008, Iberê Camargo ainda inspirou formas de lazer no entorno e carimbou seu nome também em um trecho da orla do Guaíba. Das janelas retangulares do prédio da Fundação Iberê Camargo, projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza Vieira, tem-se uma vista privilegiada do Guaíba. Em frente à construção, a chamada Prainha do Iberê se transformou em um ponto para interessados em apreciar o clássico pôr do sol às margens do principal cartão-postal de Porto Alegre. "Muitos vêm com chimarrão, para andar de bicicleta, passear com crianças. E depois visitam o museu. No fim de semana, a grande quantidade de público que recebemos acaba saindo da exposição e indo para a prainha", diz o superintendente da FIC, Emilio Kalil.
Com a abertura da passagem subterrânea do estacionamento em abril, para que os pedestres possam atravessar a avenida Padre Cacique a pé todos os dias, das 8h às 20h, o acesso ao museu foi facilitado. Falta ainda a instalação de um semáforo e faixa de pedestre na altura do prédio, obras solicitadas à EPTC. "Recebemos diariamente ônibus de escolas com crianças. É fundamental que haja essa sinalização", afirma Kalil.
Mais informações no site iberecamargo.org.br.

Patrícia Feiten é jornalista formada pela UFSM e tradutora formada em Letras pela Ufrgs.