São inúmeros os desafios enfrentados diariamente pelas mulheres que vivem na Índia. Além dos constantes casos de estupro, ataques e abusos físicos e psicológicos, que acontecem tanto fora como dentro de casa, os costumes do país, construídos em cima de uma cultura extremamente machista, fazem com que elas se tornem quase invisíveis dentro do mercado de trabalho. Tudo fica ainda mais difícil quando a renda e a classe social entram em jogo: se mulheres ricas já possuem direitos limitados, o que sobra para aquelas que, segundo as tradições, não pertencem a lugar nenhum?
Lutando contra a maré a fim de quebrar paradigmas e fazer história, um grupo de jornalistas feministas de Uttar Pradesh, no norte da Índia, decidiu revolucionar ao criar o primeiro - e único - periódico nacional com equipe composta integralmente por mulheres de castas consideradas inferiores (dalits). Fundado em 2002 por Meera Devi, o Khabar Lahariya (Onda de Notícias) ocupa até hoje um espaço de resistência na mídia indiana - e é tema do documentário Escrevendo com fogo, indicado ao Oscar de 2022 e selecionado para 100 festivais ao redor do mundo.
Colocando na tela as transformações provocadas por essas mulheres, bem como as adversidades encontradas no cotidiano de trabalho, o documentário dirigido e produzido por Rintu Thomas e Sushmit Gosh (que está disponível nas plataformas digitais) levou cinco anos para ser finalizado e contou com o apoio de grandes instituições internacionais relacionadas à área do audiovisual.
Acompanhada de uma equipe engajada, a chefe de redação Meera transita pelas mais diversas editorias ao cobrir o que está acontecendo na região. As matérias, apuradas e escritas por elas, tocam em feridas e temáticas muitas vezes sensíveis para a comunidade, entrando em assuntos delicados como a falta de saneamento básico, denúncias de abuso omitidas pela polícia local, máfia da mineração e, até mesmo, cobertura de eleições presidenciais.
"Acredito que o jornalismo é a essência da democracia. Quando os cidadãos clamam por seus direitos, somos nós que levamos suas reivindicações ao governo. É assim que se luta por justiça. Temos que usar nosso poder com responsabilidade. Caso contrário, a imprensa se torna só mais um negócio qualquer", diz ela em determinado momento do longa.
Por mais que, desde 1950, seja constitucionalmente proibido considerar os dalits como seres impuros e intocáveis, a discriminação e a segregação ainda acontecem até os dias de hoje. Esse preconceito, quando associado ao gênero, ultrapassa os limites da esfera pública e entra também para dentro de casa, fazendo com que os próprios pais e maridos das jornalistas passem a questionar suas capacidades enquanto profissionais, alegando que deveriam se preocupar apenas com afazeres domésticos.
"Há alguns anos era inimaginável uma mulher dalit ser jornalista, e agora nós estamos mudando essa percepção. Nos vangloriamos com o progresso do nosso país mas, ao mesmo tempo em que conseguimos mandar pessoas até para a Lua, continuamos retrógrados em tantos outros aspectos", reflete.
A evolução do trabalho e a união das jornalistas do Khabar Lahariya serve como exemplo de superação e de combate direto ao sistema patriarcal e excludente que vigora na Índia. No início do processo de transição do veículo para o digital, muitas das mulheres que integravam a equipe nunca haviam usado um celular, e outras nem possuíam energia elétrica em suas residências para carregar os aparelhos. Hoje, o canal de YouTube do veículo já ultrapassa a marca de 160 milhões de visualizações, tornando-se referência na área.
As repórteres, sempre estimuladas pelas colegas de profissão, nutrem fortemente o desejo pelo aprendizado e pela superação. Algumas almejam cargos de liderança, outras novas habilidades e outras apenas uma evolução diária. O sonho coletivo, no entanto, é conseguir levar a redação para além das fronteiras de Uttar Pradesh ,com o objetivo de espalhar pela Índia a força de todas essas mulheres guerreiras.
"Ao trabalharmos como jornalistas, estamos lutando também para transformar a sociedade em que vivemos. Quando nenhuma mudança acontece, significa que não estamos alcançando o nosso objetivo", diz Meera.