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Cultura

- Publicada em 23 de Maio de 2021 às 18:48

Bob Dylan chega aos 80 anos como figura icônica que atravessa gerações

Como letrista, compositor norte-americano recebeu Prêmio Nobel de Literatura em 2016

Como letrista, compositor norte-americano recebeu Prêmio Nobel de Literatura em 2016


PHILIPPE LOPEZ/AFP/JC
Igor Natusch
Uma das mais lendárias interações entre músico e plateia de todos os tempos aconteceu no dia 17 de maio de 1966, no Free Trade Hall de Manchester, na Inglaterra. A turnê para promover o hoje clássico Highway 61 revisited estava no fim, e Bob Dylan - que completa nesta segunda-feira (24) emblemáticos 80 anos de vida - já tinha enfrentado reações hostis em várias ocasiões. O disco marcava a surpreendente adoção de sonoridades elétricas pelo compositor, até então idolatrado pela revitalização do folk acústico - e muitos dos antigos fãs, que antes viam Dylan quase como um semideus, assumiram a mudança não como um novo passo, mas como desistência à beira da traição.
Uma das mais lendárias interações entre músico e plateia de todos os tempos aconteceu no dia 17 de maio de 1966, no Free Trade Hall de Manchester, na Inglaterra. A turnê para promover o hoje clássico Highway 61 revisited estava no fim, e Bob Dylan - que completa nesta segunda-feira (24) emblemáticos 80 anos de vida - já tinha enfrentado reações hostis em várias ocasiões. O disco marcava a surpreendente adoção de sonoridades elétricas pelo compositor, até então idolatrado pela revitalização do folk acústico - e muitos dos antigos fãs, que antes viam Dylan quase como um semideus, assumiram a mudança não como um novo passo, mas como desistência à beira da traição.
Um desses insatisfeitos soltou a voz em Manchester. Nas gravações, existentes em áudio e vídeo, é possível ouvir com clareza o grito: "Judas!" Uma acusação especialmente dolorosa para um músico que, anos depois, vivenciaria uma ampla busca espiritual em torno do cristianismo.
Bob Dylan, é claro, pôde ouvir o insulto vindo da plateia. E respondeu. Já tocando acordes da próxima música em sua guitarra, foi ao microfone e disse, em um tom entre o desafio juvenil e a sabedoria: "Eu não acredito em você. Você é um mentiroso!". Em seguida, quase sorrindo, olha para a banda e todos, juntos, começam a tocar Like a rolling stone - talvez o maior dos clássicos de uma carreira recheada deles.
Mais de cinco décadas depois, podemos dizer com tranquilidade que a razão estava com Bob Dylan, e não com o desaforado fã da fase folk do músico. Pensar que essa figura icônica da contracultura chegou a ser contestada por algo tão simples quanto trocar o violão pela guitarra parece quase brincadeira - afinal, estamos falando de um letrista que recebeu o Nobel de Literatura em 2016, nada menos que isso. Muito mais do que um bardo revolucionário que ficou nos anos 1960, Dylan é um ícone que permanece através das décadas. Um dos poucos artistas que ainda faz o mundo da música prender a respiração, sempre que se move na direção do microfone - isso quase 60 anos depois de seu surgimento, nos clubes de folk de Nova York, nos EUA.
A essa altura, Robert Allen Zimmerman já havia deixado o nome de batismo para trás ("Nomes errados, pais errados. Sabe como é, acontece", comentou Dylan em uma entrevista para a CBS, em 2004). Vinha explorando as possibilidades do folk desde quando vivia no Minnesota, onde nasceu. Inspirado em especial pelo ícone folk Woody Guthrie, a quem visitava com frequência nos primeiros anos de carreira, Dylan passou a desenvolver uma sonoridade única, unindo a simplicidade de violão e gaita a uma voz anasalada, de pouca técnica, mas capaz de dar um caráter quase confessional a letras extensas, surrealistas e desconcertantes.
Foi como poeta, aliás, que Bob Dylan mudou a cena musical de seu país e, por consequência, do mundo. Incorporando elementos literários e dialogando com a intelectualidade, as letras de canções como Blowin' in the wind, A hard rain's a-gonna fall, The times they are a-changin' e Masters of war transformaram seu autor em herói de uma geração. Em seus esforços contra a guerra e a favor dos direitos civis, a contracultura norte-americana daqueles tempos encontrou em Bob Dylan seu porta-voz, e o conceito em torno das letras de música foi transformado para sempre no processo.
A imagem do jovem profeta com um violão, porém, era incômoda para Dylan. Aos poucos, foi se desfazendo dela. Primeiro trocando o acústico pelo elétrico, como já vimos; mais tarde, a partir de discos polêmicos como Self portrait (1970) e de sua aproximação da música country, deixou para trás - não sem algum trauma - o pedestal de mito. Enquanto multidões se reuniam no festival de Woodstock, em 1969, Dylan (que residia nas redondezas) trancava-se em casa, recusando qualquer ligação com o evento.
Uma insatisfação que, na verdade, nunca o abandonou. Mesmo aceitando o Nobel de Literatura, não viajou até a Suécia para a cerimônia de laureação, e fez seu discurso de aceitação por vídeo, quase oito meses depois. Enquanto o mundo segue tentando transformá-lo em instituição (o que não deixa de ser uma forma de controlá-lo ou, pior ainda, encerrá-lo), Bob Dylan segue decidido a ficar do lado de fora, em uma mistura de dignidade e teimosia que é, talvez, a melhor definição de sua personalidade desde sempre.
Seu último álbum, Rough and rowdy days (2020), é um testemunho sombrio do compositor a respeito do som e da fúria de nossos dias - mas, ao menos tempo, lança uma luz inesperadamente esperançosa sobre os que anseiam por um outro futuro. Um sábio, enfim, mesmo que se recusando a sê-lo. Diante das acusações rudes e apaixonadas de traição, Bob Dylan sorri de leve e dá a deixa para a próxima canção. Afinal, o show (ou a "turnê sem fim", como ele mesmo coloca) deve continuar.
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