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literatura

- Publicada em 10 de Maio de 2021 às 21:27

'A filha do Dilúvio' expõe paradoxo entre povo das casas e povo das ruas

Miguel da Costa Franco lança romance cuja capa traz imagem do arroio feita pelo fotógrafo João Mattos

Miguel da Costa Franco lança romance cuja capa traz imagem do arroio feita pelo fotógrafo João Mattos


JOÃO MATTOS/DIVULGAÇÃO/JC
"Este livro, de ponta a ponta, consumiu um ano inteiro de trabalho, mais alguns processos de pousio, reescrita e revisão no primeiro ano da pandemia", avisa Miguel da Costa Franco sobre A filha do Dilúvio (Libretos, 208 págs., R$ 40,00). Ao todo, conta o escritor, foram dois anos de dedicação ao tema. Ele lança o romance nesta quarta-feira (12), às 19h, na live A sociedade em metástase, da Sala Libretos (pelo Facebook @libretoseditora), em bate-papo com Leticia Wierzchowski e Rafael Guimaraens.
"Este livro, de ponta a ponta, consumiu um ano inteiro de trabalho, mais alguns processos de pousio, reescrita e revisão no primeiro ano da pandemia", avisa Miguel da Costa Franco sobre A filha do Dilúvio (Libretos, 208 págs., R$ 40,00). Ao todo, conta o escritor, foram dois anos de dedicação ao tema. Ele lança o romance nesta quarta-feira (12), às 19h, na live A sociedade em metástase, da Sala Libretos (pelo Facebook @libretoseditora), em bate-papo com Leticia Wierzchowski e Rafael Guimaraens.
Narrando, no romance, as dificuldades de Rosa e Caçapava perambulando pelas ruas da capital dos gaúchos, o autor avalia que Porto Alegre não deva ser tratada como personagem do livro, pois julga que a história poderia se passar em qualquer cidade de porte médio ou grande no País. "É inevitável que Porto Alegre seja um ambiente muito palpável nas minhas histórias. Vivo aqui há mais de 50 anos, conheço bastante da cidade e transito por grande parte dela. Além disso, sou filho de um dos seus mais dedicados cronistas e historiadores (o advogado e professor Sérgio da Costa Franco), de modo que também fui transportado em vários momentos de minha existência para a Porto Alegre dos séculos passados", explica.
Para esse A filha do Dilúvio, o escritor esclarece que a pesquisa necessária foi com relação ao universo dos moradores de rua: "A cidade deles é vista de outro ângulo, é necessariamente outra, diferente da minha". Costa Franco ressalta que o tema da desigualdade "e desse determinismo de classes sociais que nos imobiliza em guetos" sempre o perturbou: "Não fomos capazes, como sociedade, de construir os meios para o pleno florescimento dos talentos individuais e para dar igualdade de oportunidades a todos. Somos um dos países mais desiguais do mundo e falar em meritocracia na nossa atual condição beira o ridículo. Desde cedo, pautei minha atuação política, e mesmo a minha atuação profissional, quando possível, no rumo da supressão das desigualdades. É natural, portanto, que esse tema tenha se imposto em minha literatura".
O autor também complementa que a história deste romance já nasceu com começo, meio e fim. "Mas foi uma colcha que se construiu a partir de quatro retalhos principais: um sonho que eu tive em que afloraram várias culpas por minha condição de classe média bem resolvida; uma experiência no exterior que aclarou em mim o quanto eu mesmo já estava indiferente em relação aos meus semelhantes em dificuldades extremas; uma entrevista com um trabalhador precarizado, em vias de perder a morada por não poder pagar o aluguel; e a eleição presidencial de 2018, onde um dos candidatos enfatizava haver no Brasil seis milhões de famílias sem teto e sete milhões de imóveis desocupados. Por ser mais espichada no tempo, a escrita de um romance está sujeita à subversão de nossos propósitos originais, face às intempéries que nos atropelam nesse período, preocupações novas que nos assaltam ou até circunstâncias externas que se sobrepõem. No meu caso, o tema da paternidade/maternidade acabou se impondo e atravessando a história originalmente projetada. Enriquecendo-a, a meu ver", detalha.
Doralice, a bebê parida por Rosa nas margens do arroio, é a "filha do Dilúvio". A concepção da capa é da editora Clô Barcellos, com escolha de fotografia de João Mattos: "Foram mérito da designer competente e reconhecida. A foto por si só é belíssima. Mais do que isso, ela é muito rica em detalhes que, imageticamente, conversam com o conteúdo e com o clima do livro. Aceitei-a de pronto como opção de capa. Para quem não é de Porto Alegre, um pequeno spoiler necessário: apesar de outros dilúvios metafóricos ou possíveis alegorias meteorológicas, o Dilúvio do título é o célebre arroio que cruza a cidade por uns 12 km desde o bairro Agronomia até a Praia de Belas, sempre contido entre os dois taludes da avenida Ipiranga".
Trazendo João e Sandra, um casal de classe média que retorna das férias em Punta Del Este, para a narrativa, Costa Franco estabelece o embate entre "o povo das ruas" e "o povo das casas", determinante para o romance. "Não fui eu quem chegou a esse paradoxo entre 'os dois povos'. Ao contrário, foi este gritante paradoxo que me invadiu. É inconcebível que não saibamos como sociedade dar condições mínimas de existência a todos os cidadãos. Que o bem-estar das pessoas não seja a prioridade número um de todos os governantes, independente da cor partidária. Nenhum tema pode ser considerado mais urgente, sob qualquer hipótese, do que a condição de desumanidade a que estão expostos os sem-teto. Qualquer outra demanda, seja de que categoria for, há de parecer um luxo despropositado. Ainda assim, o poder público tem sido mais algoz do que parceiro do povo das ruas."
O escritor acrescenta que o tema da obra o "invadiu" porque a cidade está novamente tomada de moradores de rua, "em especial após o desmanche dos programas de proteção social construídos ou ampliados de forma significativa e diversificada na era Lula/Dilma. Os governos Temer e Bolsonaro, ao congelarem o orçamento público para saúde, educação e moradia, ao reduzirem as aposentadorias e o poder de compra dos salários, ao nos isolarem do mundo civilizado e trazerem precariedade às relações trabalhistas, são diretamente responsáveis por essa hecatombe que se abateu sobre nossos concidadãos com a chegada mal administrada da pandemia. O fio da navalha é muito estreito para quem não dispõe de patrimônio, é muito fina a cortina que separa a relativa estabilidade do caos absoluto para quem não dispõe de posses ou estrutura familiar que os ampare".
Outra frase muito sintética da temática é um grito de Rosa: “Vai roubar de quem tem”. "É um pedido desesperado, mas é também um alerta para os mais afortunados. A falta de atitudes nesse campo só pode nos levar ao caos", frisa o autor.
O livro pode ser encontrado nas livrarias e no site www.libretos.com.br. Uma reapresentação do bate-papo de lançamento ocorre na sexta-feira, às 19h, pelo canal de YouTube libretos100.

"A ficção que pretende imitar a vida não pode desconhecer a realidade"

Gaúcho de Roca Sales, autor apresenta obra na live A sociedade em metástase da Sala Libretos

Gaúcho de Roca Sales, autor apresenta obra na live A sociedade em metástase da Sala Libretos


ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
A filha do Dilúvio é o segundo romance de Miguel da Costa Franco, natural de Roca Sales/RS (1958). Ele é autor ainda de Imóveis Paredes (Libretos, 2015) e Não Romance (Metamorfose, 2018), contos selecionados. Foi finalista do Prêmio da Associação Gaúcha de Escritores na categoria Narrativas Curtas e recebeu premiações também por conto, crônica e poesia. Participou de coletâneas, entre as quais a Antologia de Contistas Bissextos (L&PM, 2007).
O autor escreveu o roteiro do filme O último desejo do Dr. Genarinho (2002), foi corroteirista do telefilme e da série de tevê Doce de Mãe (2012 e 2014), vencedora do International Emmy Award for Best Comedy em 2015, e colaborou no roteiro de Aos olhos de Ernesto (2019), todos produzidos pela Casa de Cinema de Porto Alegre. O gaúcho mantém o site www.migueldacostafranco.com.br e colaborou com jornais e revistas, como Correio do Povo, Pasquim Sul, Não, Parêntese e Sepé. Acompanhe em seguida mais reflexões do escritor sobre seu lançamento mais recente:
Jornal do Comércio - A narrativa da obra A filha do Dilúvio é muito visual. Há influências da linguagem cinematográfica? Tem algum ponto que diferencie crucialmente a escrita literária da escrita para um produto audiovisual?
Miguel da Costa Franco - Literatura e linguagem cinematográfica são coisas bem distintas, ainda que nos dois casos se esteja tratando de contar da melhor maneira possível uma história. A literatura é mais livre e mais artesanal, não exige que pensemos o tempo todo no orçamento necessário e nos recursos envolvidos. Posso levar meu personagem para Punta del Este, sem ter que contabilizar diárias de toda uma equipe de filmagem e me preocupar se isto vai estar ao alcance da produção.
Além dessa questão prática relevante, a escrita literária dá margem a acessarmos os devaneios pessoais dos personagens, entender o que lhes vai pela cabeça, as suas motivações, que podemos conhecer ainda que ele não as compartilhe com os demais. No roteiro de cinema ou tevê, tudo precisa ser transcrito para a linguagem visual, o personagem precisa mostrar em atos e palavras a que veio. Não há muito espaço para os pensamentos.
É comum ouvir de meus leitores que minha linguagem é muito visual. Atribuo em parte ao fato de ter transitado ao longo dos últimos anos pelas duas formas narrativas, seja atuando como roteirista a serviço da Casa de Cinema ou da Rede Globo, seja desenvolvendo as narrativas curtas e longas que transpus para os livros Não Romance, Imóveis Paredes e A filha do Dilúvio, para algumas revistas e jornais ou simplesmente para alimentar o meu blog pessoal.
JC - Tiveste receio, em algum momento, de abordar a violência no romance? Ela tinha necessidade de se fazer presente de forma marcante?
Costa Franco - A muitos dos temas tratados no romance, direta ou transversalmente, eu tive acesso através do jornal Boca de Rua, que dá vez e voz aos cidadãos à margem, sem-teto, sendo editado, produzido e distribuído por eles mesmos nas esquinas de Porto Alegre. Recomendo a todos a sua leitura. Quem o fizer, saberá que seria inverossímil um romance que se propusesse a penetrar no universo dos moradores de rua e não transpirasse violência.
Se nos dedicarmos a ouvir o que o povo das ruas tem a dizer, desde a sua história pregressa até o seu cotidiano na cidade, ouviremos histórias de relações abusivas e violência doméstica e de gênero, de violência policial e abandono institucional, de invisibilidade e preconceito, de condições opressivas de trabalho e da insuficiência da atuação do poder público em garantir os direitos constitucionais a todos os cidadãos. Nada do que está no livro é estranho às páginas diárias de qualquer jornal. A ficção que pretende imitar a vida não pode desconhecer a realidade.
 
JC - Sem dar spoiler aos nossos leitores, mas gostaria de um comentário sobre a opção por um desfecho que ainda deixa um final aberto para as trajetórias de algumas dessas personagens. Também houve preocupação com resquícios de moralismo e/ou redenção para finalizar o romance?
 
Costa Franco - Achei que o final aberto se impunha para um tema em que ainda não vislumbramos uma solução como coletivo. Mas é preciso considerar também que o romance traz o ponto de vista de um narrador de classe média. Que a questão da culpa do casal de protagonistas travestido de “o povo das casas” é central no enredo, como se um tribunal interno os torturasse pela disparidade social e pelas condições sub-humanas dos sem-teto. Acho que essa condição é importante para aproximar o leitor da trama exposta no livro, para que ele viva a história como se fosse sua. E para justificar o desfecho. Ainda que a maioria de nós, anestesiada pela frieza, finja não ver o problema da exclusão, ele nos tortura todo o santo dia na sinaleira da esquina, nas calçadas ocupadas, nas marquises, parques e praças, nos apelos diários dos famintos.
A depender exclusivamente da esfera pessoal dos envolvidos, tudo pode acontecer. Tanto na vida quanto na ficção. No meu romance, o leitor decidirá. Eu, particularmente, não vejo moralismo, talvez uma expectativa de redenção, pois imaginar o destino de um recém-nascido sugere sempre, sem sombra de dúvida, uma ponta de esperança associada ao novo ser. É a vida que segue. É a humanidade pedindo passagem. Ainda assim, o bom dos finais abertos é que nos remetem a refletir, a elaborar nossas próprias hipóteses.
Uma leitora me disse que o livro começa com um parto real e termina, metaforicamente, com outro. Contestando a tese da humanidade que pede passagem, um amigo sugeriu que um objeto de poder apenas havia mudado de mãos. Alguém mais romântico enxergou um final feliz. Outro, mais rígido, se negou a solidarizar-se com a atitude do personagem envolvido na sequência final, reduzindo-a ao seu aspecto criminoso. De qualquer modo, somente temos algo de concretude para o destino nada imprevisível de um dos atores principais. Os demais seguem flanando por aí.