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Cultura

- Publicada em 09 de Dezembro de 2020 às 20:01

A filosofia boêmia de Noel Rosa, nascido há 110 anos

Sambista foi um dos nomes que consolidou o gênero como espaço de comentário social

Sambista foi um dos nomes que consolidou o gênero como espaço de comentário social


ARQUIVO NACIONAL/DIVULGAÇÃO/JC
Igor Natusch
Na verdade, não é que Noel de Medeiros Rosa gostasse da vida boêmia: ele e a boemia eram praticamente uma coisa só. Mesmo vasculhando a história brasileira de cima a baixo, vai ser difícil encontrar pessoas públicas que vivessem a vida dos bares e rodas de samba com tanta entrega, com o mesmo entusiasmo e espírito de pertencimento que Noel Rosa sentia. Ao lembrarmos os 110 anos do nascimento do sambista, nascido em 11 de dezembro de 1910, é inevitável contar a história de sua vida a partir da sua relação com o universo boêmio - uma associação que, é claro, rendeu muitas boas histórias.
Na verdade, não é que Noel de Medeiros Rosa gostasse da vida boêmia: ele e a boemia eram praticamente uma coisa só. Mesmo vasculhando a história brasileira de cima a baixo, vai ser difícil encontrar pessoas públicas que vivessem a vida dos bares e rodas de samba com tanta entrega, com o mesmo entusiasmo e espírito de pertencimento que Noel Rosa sentia. Ao lembrarmos os 110 anos do nascimento do sambista, nascido em 11 de dezembro de 1910, é inevitável contar a história de sua vida a partir da sua relação com o universo boêmio - uma associação que, é claro, rendeu muitas boas histórias.
Gostar da boemia é, no fundo, uma forma de gostar de gente - e foi falando de gente que Noel Rosa entrou para a história da música brasileira. Em uma carreira curta, que não durou sequer uma década, escreveu mais de 200 sambas, muitos deles eternizados no imaginário nacional - sempre falando de pessoas, de seus amores, da pequenas vitórias e tragédias da Vila Isabel, onde viveu.
Um bom exemplo de como essas coisas todas se amarram é Com que roupa?, um dos seus maiores sucessos, gravada em 1930 e até hoje cantarolada de forma marota por qualquer um que esteja se vestindo para uma festa ou barzinho. A história é lendária, talvez não de todo real, mas o próprio Noel a mencionou em mais de uma ocasião. Dona Marta, mãe do rapaz, preocupava-se com os hábitos noturnos do filho, que chegava sempre na alta madrugada e emagrecia a olhos vistos. Como os pedidos para que ficasse mais em casa não surtiam efeito, resolveu apelar: escondeu todas as roupas do filho. Os companheiros de vida boa não tardaram a chegar, e chamaram por Noel para a serenata daquela noite. E ele, de dentro do quarto, gritou: "Mas com que roupa?".
Encontrar nesse momento prosaico o fio para um novo samba (ainda mais um de tamanha força e permanência) é justamente o que separa os gênios do resto da festa. Infelizmente, nem sempre o gênio do violão e da rima entende de coisas igualmente importantes, como a estabilidade financeira: conta-se que Noel não gostava muito da composição, e que teria vendido os direitos dela por minguados 180 mil réis, uma quantia que, mesmo na época, não deixava ninguém perto da riqueza.
Noel Rosa veio ao mundo de forma notoriamente sofrida. O parto foi difícil, e o obstetra precisou fazer uso de um fórceps para puxar o bebê rumo ao mundo, daí resultando o afundamento do maxilar. A fisionomia tornou-se um aspecto fundamental de sua figura pública: além de ressabiado com a própria aparência, o sambista evitava comer em público, já que tinha dificuldades para mastigar. Os líquidos, é claro, não traziam problema - e o jovem não se fazia de rogado.
Não é exagero dizer que Noel Rosa ajudou a definir o samba brasileiro. Foi a partir de suas letras que o gênero foi adquirindo uma linguagem mais urbana e irônica, ganhando ares de crônica e comentário social. Não é à toa que uma de suas alcunhas era "filósofo do samba": com seu olhar aguçado e rimas cheias de malícia, conseguia falar de coisas profundas com uma simplicidade que caía no gosto do público. Além disso, na visão dos biógrafos Carlos Didier e João Máximo, a capacidade poética e musical de Noel deu respeitabilidade artística ao samba dos morros cariocas, que não gozava de muito crédito até então.
Como dissemos, Noel Rosa gostava de gente; contava, por exemplo, de sua emoção ao ver que o samba Feitiço da Vila tinha caído no gosto do povo de Vila Isabel, bairro onde se sentia tão bem. De gostar de gente para gostar da boemia era um pulo, e esse salto Noel nunca temeu dar. Não que não tenha tentado outro caminho: casou-se meio a contragosto com Lindaura Martins em 1934, e chegou a mudar-se para Belo Horizonte no ano seguinte, já numa tentativa de controlar a tuberculose que o afligia.
O chamado das rodas de samba, porém, era mais forte. Embora se diga que sentisse um genuíno afeto pela esposa, o compositor teve várias amantes (a mais notória delas, a prostituta Juraci Correia de Araújo, conhecida como Ceci) e não chegou a ficar muito tempo na capital mineira, já que seguia frequentando a boemia por lá - o que, convenhamos, acabava esvaziando a tentativa de tratamento.
A rotina de bares, serenatas e rabos de saia foi a vida e a poesia de Noel Rosa, e acabou sendo também a razão de sua súbita e prematura despedida. Saúde nunca foi seu forte; expostos ao fumo, à bebida e ao frio das madrugadas, seus pulmões não tinham muita chance de deixar a tuberculose para trás. Após uma piora repentina, na qual a respiração ofegante o impedia até de se alimentar, acabou falecendo em 4 de maio de 1937. Além da biografia escrita por Didier e Máximo, hoje fora de catálogo e custando pequenas fortunas em sebos por aí, o sambista foi alvo de filmes como Noel - Poeta da Vila (2006), dirigido por Ricardo Van Steen e estrelado por Rafael Raposo, com Camila Pitanga no papel de Ceci.
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