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Cultura

- Publicada em 29 de Novembro de 2020 às 21:30

O gênio que quase sumiu: Cartola, falecido há 40 anos

Compositor ressurgiu da obscuridade para se transformar em um dos pilares do samba brasileiro

Compositor ressurgiu da obscuridade para se transformar em um dos pilares do samba brasileiro


ARQUIVO NACIONAL/DIVULGAÇÃO/JC
Igor Natusch
Às vezes, o gênio está ao nosso lado, quase invisível, lavando carros na rua. No caso do compositor Cartola, a história é quase que exatamente essa. Não fosse a atenção do jornalista Sérgio Porto, que ficou famoso na crônica brasileira com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, o gênio do samba brasileiro - falecido há exatos 40 anos, no dia 30 de novembro de 1980 - talvez tivesse sumido para sempre, antes mesmo de atingir o auge.
Às vezes, o gênio está ao nosso lado, quase invisível, lavando carros na rua. No caso do compositor Cartola, a história é quase que exatamente essa. Não fosse a atenção do jornalista Sérgio Porto, que ficou famoso na crônica brasileira com o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, o gênio do samba brasileiro - falecido há exatos 40 anos, no dia 30 de novembro de 1980 - talvez tivesse sumido para sempre, antes mesmo de atingir o auge.
Estamos falando de boêmios, Cartola e Sérgio Porto, de forma que esse momento decisivo só poderia ter se dado em uma madrugada etílica no Rio de Janeiro, no ano de 1957. O cronista já devia estar na vigésima-quinta saideira quando, ao entrar em um botequim de Ipanema, reparou em um negro magro, já de certa idade, de macacão molhado e vários dentes faltando na boca. O sambista estava quase irreconhecível - mas Porto, sobrinho do crítico musical Lúcio Rangel, reconheceu o músico mesmo assim.
- Vem cá, você não é o Cartola da Mangueira? - perguntou, talvez ainda um pouco incrédulo.
- Sou eu, sim - respondeu o homem, sem dar muito atenção ao desconhecido.
Segundo relatos do próprio Sérgio Porto, a emoção do encontro foi tanta que abraçou Cartola na hora, antes mesmo de se apresentar, sem que o sambista entendesse o que estava acontecendo.
E não era para menos. A essa altura, Cartola estava sumido há mais de uma década, e não eram poucos que temiam que já tivesse falecido. O morro da Mangueira, que o conheceu desde os 11 anos de idade, passou muitos anos sem notícias dele. Nascido em 11 de outubro de 1908, no bairro do Catete, Angenor de Oliveira ganhou o apelido famoso quando já morava no morro famoso - referência ao pequeno chapéu que usava nos dias de pedreiro, para evitar que o cimento grudasse em seu cabelo.
A primeira fase da carreira musical não chegou a ser um estouro, mas rendeu alguns sucessos - o principal deles, Divina dama, gravado por Francisco Alves em 1933. Na década seguinte, porém, quase não se ouviu falar dele e de seus sambas poéticos e contemplativos na cena musical do Rio. Nem na Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que ajudou a fundar e para quem escolheu as cores verde e rosa, o homem dava as caras; apesar do sucesso dos sambas-enredo (muitos escritos em parceria com o amigo Carlos Cachaça), desgostou-se com a direção da escola e parou de aparecer. Para piorar, a vida pessoal não ajudava: contraiu meningite, que o deixou cerca de um ano andando de muletas, e perdeu a primeira esposa, Deolinda, vitimada por um ataque cardíaco.
Foi esse Cartola esquecido e maltratado pela vida que Sérgio Porto encontrou em um boteco da noite carioca. A essa altura, o compositor se sustentava lavando carros em uma garagem de Ipanema; na verdade, entrou no bar apenas para esquentar o couro com um martelinho de cachaça, já que estava encharcado e ainda tinha alguns carros pela frente. A notícia surgiu logo depois, na coluna de Stanislaw Ponte Preta no jornal Diário Carioca: Cartola estava vivo, sim, e seguia escrevendo sambas tão bons quanto os que Francisco Alves tinha gravado em tempos idos.
Demorou um pouco, mas o sucesso que tanto tinha fugido de Cartola finalmente começou a acontecer. O Zicartola, restaurante que abriu com Dona Zica, sua segunda esposa, tornou-se ponto de encontro do samba carioca. Músicas como Sim, O sol nascerá, Alvorada e Acontece surgiram na voz de ícones como Paulinho da Viola, Clara Nunes e Elizete Cardoso. Seu primeiro disco (lançado em 1974, quando Cartola já tinha 65 anos de idade) é visto até hoje como uma obra-prima do samba brasileiro. E gravações posteriores, como O mundo é um moinho e As rosas não falam, consolidaram a fama de um compositor que falou de amor e da vida como poucos.
O reconhecimento no fim da vida nunca chegou a encher a carteira de Cartola de dinheiro, mas foi suficiente para alguns confortos, como mudar-se para uma casa tranquila no bairro Jacarepaguá - e dar uma arrumada no nariz, desfigurado pela rosácea e que recebeu retoques do renomado cirurgião Ivo Pitanguy. Vivendo do violão e da própria poesia, sem precisar lavar carros na madrugada para fechar as contas, o velho Angenor pôde curtir um pouco a estabilidade antes de ser vitimado por complicações de um câncer na tireoide.
Fiel ao espírito de quem não queria incomodar, não falava para quase ninguém de sua doença. Se perguntavam, dizia que estava com uma úlcera, como se não fosse grande coisa. Se foi quase esquecido em vida, lembrança não faltou no momento da despedida: foi velado na quadra da Mangueira, e uma pequena multidão entoou As rosas não falam - um clássico que talvez nem existisse se Sérgio Porto não tivesse reencontrado seu futuro autor, por meio da bela poesia do acaso, em uma madrugada boêmia do Rio.
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