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memória

- Publicada em 22 de Setembro de 2020 às 07:00

A Casa do Quintana

Primeiro como morador do Majestic, e depois como homenageado, poeta é o grande fio condutor da história da CCMQ

Primeiro como morador do Majestic, e depois como homenageado, poeta é o grande fio condutor da história da CCMQ


DULCE HELFER/DIVULGAÇÃO/JC
O apartamento 217 do antigo Hotel Majestic continua quase do mesmo jeito. Lá dentro, é como se o lugar nunca tivesse fechado as portas: os móveis de meio século atrás seguem alinhados, a decoração é discreta, mas elegante, e a escrivaninha apresenta a bagunça criativa dos lugares usados com frequência.
O apartamento 217 do antigo Hotel Majestic continua quase do mesmo jeito. Lá dentro, é como se o lugar nunca tivesse fechado as portas: os móveis de meio século atrás seguem alinhados, a decoração é discreta, mas elegante, e a escrivaninha apresenta a bagunça criativa dos lugares usados com frequência.
É quase como se Mario Quintana estivesse prestes a voltar de um dos seus passeios, para trabalhar em cima de versos, jornais e textos esperando tradução.
A peça, restaurada e preservada, é um dos elementos da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ) que lembram o poeta que emprestou nome e alma ao espaço. Aproveitando a calmaria forçada dos dias de pandemia, alguns objetos e documentos foram levados ao hall de entrada para o quarto, antes vazio.
A ideia, segundo o diretor da CCMQ, Diego Groisman, é que a presença do autor fique mais visível no prédio que foi, durante mais de uma década, o seu lar. "Quando a Casa reabrir, quero organizar pelo menos um dia da semana para visitas guiadas ao quarto", projeta.
Quando Quintana chegou, em 1968, o Majestic já vivia franca decadência. Os dias em que grã-finos faziam fila para assinar a entrada no badalado hotel já tinham ficado para trás: agora, os hóspedes eram caixeiros-viajantes, viúvos, solteirões e boêmios que faziam o pernoite depois da farra nos inferninhos. As famílias abastadas se mudaram para bairros mais distantes, e o Centro ganhou ares de lugar decadente e perigoso, em especial à noite.
O Hotel Majestic era a imagem dessa transformação. No final dos anos 1960, a maioria dos quartos nem abriam mais.
O próprio Quintana passava por dificuldades, em especial com a bebida. Durante anos, o poeta associado aos cafés do Centro frequentou, talvez com ainda mais assiduidade, os bares da Andradas e das esquinas próximas.
"Nem tudo eram boas lembranças", diz a fotógrafa Dulce Helfer, amiga de Quintana durante muitos anos. "Algumas histórias que ele contava (sobre o Majestic) eram bonitas. Outras, nem tanto", completa.

Um poeta que amou a cidade, e foi amado de volta

Quarto onde Quintana morava está mobiliado, à espera de visitantes

Quarto onde Quintana morava está mobiliado, à espera de visitantes


LUIZA PRADO/JC
Mario Quintana deixou o Majestic em 1980. Não foi uma despedida das mais poéticas: desempregado e sem dinheiro para pagar as diárias, acabou sendo despejado do local. A saída do poeta-passarinho coincidiu com o fim da linha para o próprio hotel: à venda durante quase toda a década anterior, a estrutura degradada espantava os interessados, e cogitou-se botar o prédio abaixo, antes que o Banrisul interviesse e comprasse o imóvel.
Com a ajuda do ex-jogador e treinador de futebol Paulo Roberto Falcão, Quintana mudou-se então para o Hotel Royal, localizado na Marechal Floriano. A última casa do poeta (de 1989 até sua morte, em 1994) também foi um hotel: o Porto Alegre Residence, na André da Rocha, perto da João Pessoa. Conta-se que, quando conheceu a peça, Quintana ficou faceiro com a pequena cozinha, ausente em seus quartos anteriores.
Na época, a vida do poeta era mais suave e animada. Sandra Ritzel, amiga de Quintana e que virou quase uma filha adotiva, recorda de passeios em companhia de amigos como Sergio Faraco e Armindo Trevisan, e do carinho constante que ele recebia no dia a dia.
"As pessoas perguntavam 'o senhor é o poeta Mario Quintana?' E ele respondia: 'às vezes'", conta ela, rindo. "Uma vez fomos ao Parcão e, na volta, não conseguíamos táxi. Uma menina, de uns dez anos, viu que ele estava zangado e perguntou 'o senhor está bem, poeta?' Ela foi até a 24 de Outubro, pegou um táxi lá, parou onde a gente estava e disse 'olha o seu táxi, poeta, pode subir'. Ele ficou todo emocionado."
O reconhecimento carinhoso vindo das ruas cristalizou-se no prédio que hoje marca a paisagem do Centro Histórico. "Ele sempre dizia que queria estar vivo para a inauguração", recorda Sandra. "(O dia da abertura da CCMQ) foi muito bonito. A preocupação dele era como entrar, porque a Travessa (dos Cataventos) estava lotada, não tinha espaço para andar. E as pessoas, quando viam que era ele, sorriam e abriam caminho para que ele passasse. Foi uma cena linda", emociona-se.
A chance de ver como a casa tinha ficado por dentro veio alguns dias depois. "Na segunda-feira seguinte (à inauguração, que aconteceu em uma terça-feira), eu e a Elena (Quintana, sobrinha-neta do poeta) levamos o Mario até lá, para conhecer a Casa sem ninguém", relembra Dulce Helfer. "Colocamos ele em uma cadeira de rodas - não que ele não pudesse caminhar, mas a Casa era muito grande. Ele ficou muito, muito feliz. Aquilo foi um orgulho eterno para ele."
Amanhã: após anos de incerteza, o Majestic vira Casa de Cultura - e dá novo gás ao cenário cultural da Capital