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Cultura

- Publicada em 17 de Setembro de 2020 às 10:59

Mia Couto faz manifesto em defesa da impureza no Fronteiras do Pensamento

Biólogo e escritor conversou com Adriana Couto sobre o tema 'A reinvenção do humano'

Biólogo e escritor conversou com Adriana Couto sobre o tema 'A reinvenção do humano'


FRONTEIRAS DO PENSAMENTO/REPRODUÇÃO/JC
Ao contrário do que ocorreu na primeira edição desta temporada do Fronteiras do Pensamento, na semana passada, quando a conferência com Andrew Solomon não ocorreu por problemas técnicos (e será remarcada), deu tudo certo nesta quarta-feira (16) com a fala de Mia Couto. O evento contou com tradução de Libras e teve mediação da jornalista Adriana Couto, apresentadora do programa Metrópolis da TV Cultura.
Ao contrário do que ocorreu na primeira edição desta temporada do Fronteiras do Pensamento, na semana passada, quando a conferência com Andrew Solomon não ocorreu por problemas técnicos (e será remarcada), deu tudo certo nesta quarta-feira (16) com a fala de Mia Couto. O evento contou com tradução de Libras e teve mediação da jornalista Adriana Couto, apresentadora do programa Metrópolis da TV Cultura.
O moçambicano trouxe suas facetas de biólogo e escritor para discorrer sobre o tema deste ano, A reinvenção do humano, com palestras a distância pela plataforma digital do evento. Sempre norteado pelo compromisso com a justiça, ele acredita que fazer poesia em tempos de pandemia é estar na defesa pela vida.
O autor fez sua conexão remota de Lisboa, onde se encontra de passagem por alguns dias. Ele começou afirmando que os brasileiros fazem parte de sua vida e expressou solidariedade pela tristeza em relação aos efeitos do novo coronavírus e a gravidade da pandemia no País, que foi minimizada pelo governo brasileiro, lamentando também a sistemática negação da ciência.
Para Couto, o Fronteiras do Pensamento é uma ferramenta para novas ideias. Ele apresentou o texto Em defesa da impureza, explicando que o tema Reinvenção do humano seria objeto das mais díspares definições e sentimentos em seu país. O moçambicano citou Guimarães Rosa, dizendo que também vive de travessias entre culturas, nos territórios de fronteira.
O escritor avalia haver risco de uma forma redutora em definir o “humano”, considerando a profunda diversidade que caracteriza nossa espécie, a capacidade de sermos diversos. “Nós somos uma fábrica de diversidade, cada criatura é única, somos feitos de histórias.” E acredita que Fronteiras do Pensamento os palestrantes foram convidados a pensar em uma dimensão ampla.
A fim de exemplificar algumas diferenças, contou sua experiência pessoal no início da pandemia: “Em Moçambique, nunca tivemos confinamento total, mas houve apelo para ficar em casa”. Em certo momento, participando de grupos de WhatsApp, ele percebeu a facilidade com que as pessoas tomavam seu drama pessoal da solidão como a tragédia de vida de toda a humanidade, apesar de serem generosas, trocar dicas de música, de receitas culinárias.
Para o autor, essa parcela, em seu confinamento de luxo, esqueceu como a maior parte não vive num apartamento cercado de livros e discos. “Não vivemos todos no mesmo mundo, mais da metade das pessoas não têm acesso à internet e à água potável. Um bilhão de pessoas sem comida.”
Mia Couto contou que em Moçambique o drama da água é mais urgente que a falta de acesso à internet, informou que a Covid-19 não teve um impacto muito forte, mas que o país passa por uma nova guerra civil severa que não ocupa os jornais do mundo. Esse conflito gera um deslocamento de 350 mil pessoas, que serão os novos refugiados.
Em seguida, ele questiona: “Será que existe algo puramente humano?”. O escritor remonta ao passado, quando, para inventar uma natureza humana única e singular, a religião e ciência utilizaram um discurso de dominação para estar mais próximo de Deus, com o nascimento das nações e a demarcação de fronteiras. Essa ideia de pureza teria sido usada para “nos diferenciar de outras criaturas, que para o discurso judaico-cristão não teriam alma, lhes faltava a raça certa, a cor certa, os deuses certos”.
O também biólogo lembrou do objetivo do Projeto Genoma Humano: mapear os genes para confirmar o pressuposto que a nossa identidade já vem moldada pelos cromossomos. “Não foi isso que aconteceu exatamente. A composição da nossa identidade não é tão simples, os genes dialogam com outros fatores igualmente determinantes.”
Segundo ele, com a pandemia, podemos rever esse conceito. “Ainda estamos em processo de entender.” Couto narra que a ciência foi descobrindo outras coisas: outras criaturas, como bactérias e vírus no corpo. “É sobretudo o não humano que nos ajuda a ser humanos”, analisa.
Conforme sua visão, a evolução biológica foi sendo narrada de forma equivocada: “Herdamos uma concepção equivocada de competição em que os mais fortes sobrevivem, mas na verdade o processo mais forte são as trocas simbióticas”. Ele traz uma certeza: “Os vírus são os grandes maestros da orquestra da vida, trazem as mensagens. Nós, mamíferos, não seríamos capazes de desenvolver placenta sem que tivéssemos sido invadidos por vírus. O discurso da biodiversidade, que agora é moda, deve ser destinado para entender o microcosmos”.
Em seguida, contou outro episódio. Ele faz parte da comissão científica do governo moçambicano para embate à Covid-19. Em um encontro na universidade, curandeiros participantes disseram que não tinham capacidade para lidar com o vírus, pois seus antepassados não conheciam essa doença, mas que quando os especialistas aprendessem o “idioma” desse vírus, que fossem chamados: “Queremos conversar com esse vírus”.
Para o escritor, essa forma de linguagem de se expressar traz a ideia da produção de harmonia. Da mesma forma com que o moçambicano diz estar com dor: “Estou a sentir a cabeça”, como se o corpo conversasse com ele.
“Nós somos biologicamente mestiços, se fôssemos para a pureza, seríamos extintos. Essa mestiçagem é essencial. Uma criança que aprenda que é feita da diversidade entre humano e não humano dificilmente será manipulada no futuro por esse discurso da pureza racial, religiosa e étnica. Nós fomos fabricados por teias, por trocas com os outros. E somos mais humanos nos aproximando dessa ideia de humanidade inclusiva, que abraça toda a diversidade do planeta”, defende.
A lição que temos que tirar dessa pandemia, segundo Mia Couto, é aceitar a nossa fragilidade enquanto humanos. “Ao longo dos séculos, criamos uma civilização que deixou se inebriar pelo seu avanço tecnológico. E, de repente, uma pequena criatura invisível provou o quanto estamos desprotegidos. Depositamos uma fé quase religiosa nesse patrimônio de saber que se acumulou. E acho que esta é a dimensão psicológica da crise que vivemos: de repente, deixamos de conhecer. A humanidade inteira enfrenta esse espetáculo absurdo da nossa impotência, da nossa incerteza, da nossa insegurança cruel.”
Conforme o autor, fomos surpreendidos pela pandemia em um momento já de perdas, com instabilidade, o que gerou o esvaziamento das instituições e um discurso autoritário e antidemocrático da extrema direita. “Agora, falo como escritor, falta uma narrativa em que possamos nos reinventar como humanidade, com um céu de esperança e um chão de certeza.” Para ele, os cidadãos comuns estão desenganados, e isso causa sede de vingança, que é utilizada pelos governos de extrema direita.
“O que nos dói não é o futuro, mas este presente em que não nos conhecemos.” Esse presente não serve de casa para a maioria da humanidade, aponta o moçambicano. “Precisamos reinventar o humano, sim, mas juntos.” Na opinião de Mia Couto, talvez o primeiro grande passo para nos reinventarmos começa por vencer o medo: medo de errar, de nos perder.
A próxima conferência do evento será em 30 de setembro, com Jonathan Haidt.
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