Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

cinema

- Publicada em 01 de Setembro de 2020 às 19:32

Piero Sbragia lança livro sobre as novas fronteiras do documentário contemporâneo

Ilustrações dos 10 cineastas entrevistados na obra são do artista Gidalti Jr.

Ilustrações dos 10 cineastas entrevistados na obra são do artista Gidalti Jr.


CHIADO EDITORA/DIVULGAÇÃO/JC
A fotografia da capa de Novas fronteiras do documentário: entre a factualidade e a ficcionalidade (Chiado Books, 484 págs., R$ 46,00) foi escolhida a dedo pelo autor Piero Sbragia, depois de um longo trabalho de pesquisa junto com o fotógrafo Armando Vernaglia Jr. "Eu quis justamente criar essa ideia da 'borrância', como se essas novas fronteiras do documentário fossem difíceis de serem percebidas e, principalmente, como sendo dois lados complementares entre si", conta o cineasta, pesquisador e professor.
A fotografia da capa de Novas fronteiras do documentário: entre a factualidade e a ficcionalidade (Chiado Books, 484 págs., R$ 46,00) foi escolhida a dedo pelo autor Piero Sbragia, depois de um longo trabalho de pesquisa junto com o fotógrafo Armando Vernaglia Jr. "Eu quis justamente criar essa ideia da 'borrância', como se essas novas fronteiras do documentário fossem difíceis de serem percebidas e, principalmente, como sendo dois lados complementares entre si", conta o cineasta, pesquisador e professor.
"É como se a fotografia fosse uma subversão da realidade, algo provocativo, curioso, com as fronteiras todas se fundindo, verticais e horizontais. Não há nenhum truque de edição, nem manipulação na fotografia. Ao mesmo tempo que aquela realidade se colocou para o fotógrafo, ele fez um registro que subverte aquilo que enxergaríamos naquele cenário", explica.
Sbragia diz que a escolha do título do lançamento também foi difícil: "A ideia da factualidade e da ficcionalidade, peguei emprestada de minha dissertação de mestrado. Já as 'novas fronteiras' surgiu também como uma provocação. Eu uso fronteira no sentido de limite, como algo que demarca, que separa, mas que, ao mesmo tempo, se apresenta como uma linha tênue. Iracema, de Orlando Senna, talvez seja o grande exemplo disso. Onde está a ficção e onde está o documental no filme? Ninguém percebe!".
Antes de reproduzir as entrevistas inéditas com os 10 cineastas ouvidos, o autor afirma na obra: "Encare as páginas derradeiras deste livro, caro leitor e estimada leitora, como uma troca de afetos". Ele complementa, respondendo ao Jornal do Comércio: "Eu considero o afeto indispensável não só ao documentarista como também a qualquer pessoa humana que queira viver em uma sociedade sem ódio e com menos desigualdades. Nesse Brasil bolsonarista, estamos pautando nossas relações interpessoais por aquilo que nos afasta do outro e não necessariamente pelo que nos une".
"Claro que o afeto não deve ser algo ingênuo, carregado de positividade tóxica. Não conseguimos ter afeto por quem idolatra torturadores, por quem pede intervenção militar. É difícil! Às vezes, me pego pensando se o problema no Brasil não é justamente a falta de afeto", reflete. "Nós vivemos tempos em que muitas pessoas, principalmente as que estão no poder, encaram a vida a partir de frustrações e relações mal-sucedidas. Ter afeto em 2020 é quase uma utopia! O afeto, em tese, não deveria pressupor pré-concepções, pré-conceitos ou até mesmo estereótipos."
Para Sbragia, lidar com a realidade é um tanto quanto complexo, ainda mais com a atual, que nos é colocada: "Uma realidade cheia de perigosos revisionismos históricos, negações e pós-verdade. Quando decidimos filmar a realidade, ou lidar com a factualidade, devemos buscar essa utopia do afeto justamente para não construir muros. (Eduardo) Coutinho fazia isso muito bem, construía pontes em vez de muros. Mas esse é o ponto. Conseguimos ter afeto com todas e todos? Talvez não...".
Os realizadores selecionados constroem um panorama recente da contemporaneidade do documentário brasileiro, em diferenciadas linguagens e temáticas. Para a escolha desses diretores, o autor relata que criou duas regras: "A primeira: que metade das pessoas entrevistadas fosse mulher. A segunda: que tivesse gente com experiências variadas, seja com apenas um filme no currículo, seja com mais de 40. Alguns, já conhecia; outros, não".
A lista foi fechada com Amanda Kamanchek (Chega de Fiu Fiu), Cristiano Burlan (Elegia de um crime), Eduardo Escorel (Imagens do Estado Novo 1937-45), Eliza Capai (Espero tua (re)volta), Geraldo Sarno (Viramundo), Juca Badaró (As cores da serpente), Maria Augusta Ramos (O Processo, Não toque em meu companheiro), Orlando Senna (Iracema - Uma Transa Amazônica), Paula Trabulsi (Imagem da Tolerância) e Susanna Lira (Torre das Donzelas).

Dois lados da fronteira complementares entre si foi o principal diálogo da capa com o tema do livro

Dois lados da fronteira complementares entre si foi o principal diálogo da capa com o tema do livro


CHIADO EDITORA/DIVULGAÇÃO/JC
O autor Piero Sbragia disse que, para os relatos, o dispositivo foi, essencialmente, um exercício de propor esse debate, "da borrância de fronteiras, e contar com a generosidade deles para conversar". Segundo ele, com alguns, a conversa foi mais rápida; com outros, mais demorada.
"Mas com todos eu aprendi bastante. Não era só um exercício jornalístico de entrevista, era também um exercício de escuta e manifesto deles sobre a própria arte. Eu encaro esse capítulo das entrevistas como um desnudamento. São os artistas nus! Sem as amarras da própria obra", analisa.
As entrevistas exclusivas foram realizadas entre janeiro e março de 2020, com 10 documentaristas brasileiros de relevância mundial da Bahia, São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Assim, o livro traça um panorama da produção, ao longo do século XXI, através de uma análise sobre a forma como os gêneros cinematográficos apresentam uma convergência.

"Quero contar as histórias a partir do meu olhar"

Sbragia fez transição na carreira, largou jornalismo em 2013 para dar aulas e produzir filmes

Sbragia fez transição na carreira, largou jornalismo em 2013 para dar aulas e produzir filmes


CHIADO EDITORA/DIVULGAÇÃO/JC
Piero Sbragia é jornalista, documentarista, professor e fundador da produtora Segundas Estórias Filmes. Especializado em Cinema Documentário e mestre em Educação, Arte e História da Cultura, o autor concebeu a ideia diante da escassez de livros sobre documentário. Mais raros ainda são os registros com depoimentos de cineastas da área. 
Confira o restante da entrevista com o autor de Novas fronteiras do documentário: entre a factualidade e a ficcionalidade:
JC - Panorama - Qual o papel que o montador e professor Eduardo Escorel tem na tua vida como pensador de cinema?
Piero Sbragia - Foi graças a Eduardo Escorel que fiz uma transição na minha carreira. Me "aposentei" do telejornalismo em 2013 para começar a dar aulas e produzir documentários. Eu estudava Cinema Documentário no curso em que Escorel coordena na FGV ao mesmo tempo em que cobria as chamadas Manifestações de Junho como repórter. Tive muitos conflitos com o diretor de jornalismo na época pois ele me pedia para colocar na reportagem algo que eu não via nas ruas. Ele acreditava que tudo aquilo era orquestrado pelo PT para aumentar a popularidade de Dilma Rousseff, o que todos sabiam na época ser um absurdo. E que gerou até o efeito contrário com o passar dos anos... Isso para mim foi um estalo! Eu parei e disse para mim mesmo: "Quero contar as histórias a partir do meu olhar, da minha narrativa e da minha percepção da realidade". Na TV, eu sempre tinha que passar pelo crivo de editores, de chefes, de diretores. Era muita gente podando meu trabalho e acontecia, algumas vezes, de não me enxergar naquelas palavras que eu mesmo gravava. A grande ironia na minha carreira como repórter de TV é que eu nunca sofri nenhum tipo de censura na TV Globo, por exemplo, onde trabalhei durante oito anos. Na Globo, eu sempre tive liberdade para escrever e até para comentar, quando eu fui apresentador também. Em compensação, em redações menores eu tive que lidar com esses "pseudo-jornalistas" que enxergam apenas o próprio umbigo e têm dificuldades de olhar para fora da janela. Escorel me ajudou a perceber que precisamos ter cuidado ao lidar com a realidade! A realidade pode nos deixar loucos, cegos ou pode até nos matar. Fechar os olhos para a realidade não é o caminho! Desligar a TV ou deixar de consumir notícias não vai nos deixar felizes, apesar de muitos gurus de autoajuda dizerem isso.
Panorama - Apresentas o livro dizendo não ter pretensão de que seja um manual cinematográfico, mas ele acaba se configurando em uma obra importante como registro histórico do que se tem feito no gênero principalmente nas duas últimas décadas no País. Apesar de ser de uma leitura prazerosa, ele tem referências teóricas. É a tua contribuição como docente da área?
Sbragia - Fico feliz com sua percepção de que o livro seja um importante registro histórico. Como eu disse, não o escrevi com pretensões de ser algo grandioso. Desde que eu comecei a dar aulas, em 2013, passei a me preocupar com o espaço que ocupo na sociedade. O que eu faço para contribuir com o outro? O que eu preciso fazer para mudar a realidade que nos cerca? O que eu vou deixar de legado para construir um mundo menos desigual? O livro meio que é uma resposta natural a esses meus questionamentos. Eu sou um cara muito chato! Desde criança, sempre fui questionador, sempre quis entender o funcionamento de tudo à minha volta - desde a tomada que fornecia energia elétrica até o cigarro que meu pai fumava, e que depois de muita pegação no pé ele deixou de fumar. Penso que minha contribuição não só como docente, mas como pessoa, é provocar esses questionamentos nas pessoas. Deve ser muito chato viver uma vida cheia de sorrisos, selfies e flores no jardim. No fundo, nós sabemos que o questionamento é fundamental para não nos acomodarmos. A não ser para o Homer Simpson, que vive tranquilamente no condomínio fechado dele, tomando cerveja, vendo futebol e dormindo.
Panorama - Além dos fotogramas de filmes abordados e registros de bastidores de produções, outro recurso visual da publicação que merece destaque são os desenhos dos cineastas que cederam as entrevistas. Qual a intencionalidade dessa opção e como foi encontrar um artista parceiro para esta função?
Sbragia - As ilustrações surgiram a partir de uma dificuldade minha em fazer retratos das pessoas que entrevistei. Eu não queria transformar aquele momento da entrevista num ensaio fotográfico. Não queria que as pessoas se preocupassem com roupas ou maquiagens. O que eu queria no momento da entrevista é que elas estivessem desarmadas. Não necessariamente confortáveis, já que muitas perguntas tiravam elas no lugar comum, mas essencialmente focadas na conversa. Depois que abortei o retrato deles, pensei que uma ilustração poderia ser interessante. Eu já teria as fotografias de bastidores, que todos gentilmente cederam. Mas queria, de certa forma, um impacto para apresentar os personagens antes que o leitor ou a leitora começassem a mergulhar na entrevista.
Imediatamente liguei para o Gidalti Jr., um grande amigo meu. Nós já trabalhamos juntos, como professores, em uma universidade aqui de São Paulo. E eu fui testemunha ocular do nascimento de Castanha do Pará, a obra-prima dele que foi vencedora do primeiro prêmio Jabuti em HQ em 2017. Eu li os primeiros rascunhos, dei pitacos quando o Castanha ainda nem tinha nascido.
Curioso que liguei para o Gidalti morrendo de medo, pois sabia que meu livro não seria impresso em cores. Quando falei para ele, ao telefone, que a ideia seria criar ilustrações apenas em preto, ele ficou alguns segundos em silêncio. Pensei até que me mandaria para aquele lugar. Mas não, ele ficou super feliz. Disse que ama fazer desenhos só com preto, mas que as pessoas dificilmente o contratam para isso. Eu até entendo, porque, convenhamos, as cores seduzem com mais facilidade.
Foram quase dois meses para criar as 10 ilustrações. Gidalti não encontrou as pessoas, ele fez os desenhos a partir de fotografias e vídeos delas que buscamos na internet. Isso por si só dialoga com o tema do livro, pois as ilustrações são representações ficcionais daquelas pessoas. Não são elas, são representações delas a partir de fotografias que também são representações. É uma coisa meio Matrix!
Panorama - As considerações finais foram escritas já em período de pandemia e reclusão social. Como surgiu a ideia do lançamento e qual era teu cronograma inicial da publicação? A obra foi financiada via Catarse, reproduzes os nomes dos apoiadores ao final. Ela saiu pela editora Chiado, de Portugal. Como foi a negociação com eles?
Sbragia - Todo meu cronograma inicial foi jogado no lixo por causa da pandemia! O que foi bom até, porque me fez sair do lugar comum e pensar fora da caixa. Eu fechei o contrato com a Chiado no fim de 2019. A ideia era lançar o livro entre abril e maio, sem campanha de financiamento coletivo. Íamos lançar nas livrarias de algumas capitais do Brasil, na Bienal do Livro, em eventos nos cinemas com a exibição de filmes dos entrevistados. Por causa da pandemia, eventos presenciais foram cancelados.
Como eu já tinha pago a impressão da primeira tiragem, com 300 exemplares, eu sabia que teria essa quantidade toda de livros na mão, dentro de casa, sem poder sair, sem poder fazer lançamentos presenciais. Foi assim que surgiu a ideia de fazer uma campanha de pré-venda no Catarse, meio até para ser um termômetro das vendas. Porque vender livro no Brasil já é uma loucura, na pandemia então... Para minha surpresa, em dois meses apenas de campanha, vendi todos os 300 exemplares. O que me motivou a continuar acreditando no livro e no potencial dele.
A Chiado é uma editora de Portugal, mas tem uma sede no Brasil. Minha publisher (gosto de chamá-la assim) Andréa Albuquerque foi super atenciosa no processo de diagramação. A ideia da capa com a fotografia de lado entre duas faixas brancas foi dela. Minha esposa Cristiana Randow, que também é jornalista, fez a revisão do texto final. Não tive pressa para lançar. Decidi junto com a Chiado deixar o lançamento do livro nas livrarias (virtuais, claro) para agosto. E não é que recebo um convite do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo para lançá-lo oficialmente durante a 31ª edição? Totalmente on-line pela primeira vez! O pessoal do Kinoforum organizou uma live para divulgar o livro com Juca Badaró, Maria Augusta Ramos, Carlos Alberto Mattos e outras pessoas importantes. Reitero: se não fosse os 300 apoiadores e apoiadoras do livro na campanha de pré-venda no Catarse, talvez nada disso tivesse acontecido. O financiamento foi importante para me fazer encontrar um propósito nisso tudo.
Panorama - Quais teus próximos passos profissionais, adaptando-se ao momento de quarentena e pensando no fim da pandemia, após a chegada da vacina?
Sbragia - Pergunta dificílima essa! Eu estou alinhando com a ciência e com os pesquisadores. Não acho que vamos ter vacina antes de junho de 2021. Esse papinho de vacina da Rússia é bravata! Posso dizer que sou privilegiado porque já trabalhava muito em casa, antes mesmo da pandemia. Minha produtora é pequena, e, nos últimos anos, me dediquei bastante à montagem das produções audiovisuais que filmo, seja documentário, publicidade ou qualquer tipo de conteúdo. Então, já estava acostumado a ficar em casa, distante da rua, trabalhando sem parar.
O que mudou na minha rotina durante a pandemia foi a criação do Canal 3 em Cena no YouTube, junto com Eduardo Escorel e Juca Badaró. Nós três já estamos desde março nos encontrando todas as terças-feiras ao vivo, às 11h, com convidadas e convidados debatendo questões pertinentes ao audiovisual. Já recebemos João Moreira Salles, Viviane Ferreira, Maria Augusta Ramos, Paulo Betti, Maya Da-Rin, Fernando Morais e alguns convidados internacionais também, como o angolano Fradique e a chilena Lissette Orozco, que vai conversar com a gente em setembro.
Quero investir mais na produção de conteúdo para esse canal. Além das lives semanais, vamos ter outros programas por lá. Um deles já está definido até! Penso que as pessoas estão saturadas de conteúdo na internet, e a pandemia é muito responsável por isso. A audiência cresceu e as pessoas passam mais tempo nos celulares e no computador. Por isso, nosso foco no canal é o conteúdo. Não somos pastelaria, não nos importa quantidade. Queremos oferecer para as pessoas discussões importantes sobre o audiovisual. Além disso, depois de um hiato na docência em 2020, pretendo voltar a dar aulas em 2021. Já estou também começando o projeto de um novo livro. O bichinho da literatura me picou, não quero mais deixar de escrever. Se eu morrer amanhã, pelo menos continuarei vivo na casa dos meus leitores e leitoras.