Um tarado. Imoral. Sem vergonha. Lascivo. Pornográfico. Esses e muitos outros adjetivos pontuaram a carreira do dramaturgo, escritor e jornalista Nelson Rodrigues - alguém que, curiosamente, sempre se colocou como conservador e gostava de provocar os adversários políticos, chamando a si mesmo de reacionário.
Pretensos xingamentos que, verdade seja dita, não pareciam ofender tanto assim o genial autor, que completaria 108 anos de nascimento no próximo domingo, dia 23 de agosto: ele mesmo gostava da expressão "anjo pornográfico", na qual identificava a disputa entre pureza e perversão que, em sua visão, sempre girou a grande engrenagem do mundo.
"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura", disse Rodrigues. "Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou - e sempre fui - um anjo pornográfico."
Do lado de fora do quarto, olhando para a safadeza que rolava do lado de dentro, Nelson Rodrigues escreveu obras que revolucionaram a dramaturgia brasileira. Sua segunda peça, Vestido de noiva, é amplamente reconhecida como marco inaugural do teatro moderno brasileiro: o uso de gírias urbanas, o realismo sem disfarces e o uso de três planos narrativos (mundo "real", memórias e alucinações) causaram enorme impacto em tudo que viria depois.
Obras marcantes da 'tragédia carioca' como Os sete gatinhos, O beijo no asfalto e Toda nudez será castigada eram tão revolucionárias quanto implacáveis com a sordidez e hipocrisia da boa família brasileira - uma característica que, é claro, ajuda a explicar muitos dos termos amargos citados no começo da matéria.
Da tragédia humana Nelson entendeu, desde jovem. Nascido no Recife, em 1912, mudou-se muito jovem para o Rio de Janeiro. Ainda adolescente, começou a trabalhar no jornal A Manhã, de propriedade de seu pai Mário. Lá, atuou na seção de polícia; mais tarde, iria para o periódico Crítica, outro projeto da família. Em fins de dezembro de 1929, viveu um desastre familiar em plena redação: após ser acusada de adultério em uma matéria do jornal, a escritora e jornalista Sylvia Thibau foi à redação e matou com um tiro Roberto Rodrigues, irmão de Nelson e que atuava como ilustrador.
O então jovem de 17 anos estava em outra sala, fazendo um lanche; em citações futuras, sempre recordou o barulho do tiro, muito mais alto do que poderia ter imaginado nas coberturas policiais.
No rumoroso julgamento que se seguiu, Sylvia acabou absolvida, com os julgadores concluindo que o crime ocorreu sob efeito de forte emoção. Devastado pela perda do filho de 23 anos, Mário Rodrigues afundou no álcool e morreu poucos meses depois.
A tragédia deu início a um período de dureza financeira e pessoal, que só chegaria ao fim quando Vestido de noiva chegou ao palco, em 1943. À época, o autor tinha tão pouco dinheiro que não mandava as roupas à lavanderia, reutilizando-as até que ele mesmo achasse o cheiro insuportável. A aclamação da estreia, no grandioso Theatro Municipal do Rio de Janeiro, foi um ponto de virada em sua vida e sua carreira. O escritor de folhetins (sob o agora lendário pseudônimo Suzana Flag), o cronista de futebol apaixonado pelo Fluminense, as inesquecíveis histórias da série A vida como ela é - todos esses aspectos ajudaram a consolidar a imagem do escritor genial, capaz de falar da sociedade sem condescendência, mas sem abrir mão do lirismo.
Considerando a falta de pudores em meter o dedo na ferida, além do erotismo sempre presente, não surpreende que Nelson Rodrigues tenha tido problemas com as autoridades. Ele mesmo se autoproclamava o escritor mais censurado do Brasil: a peça Álbum de família, com seus retratos crus de incesto, pedofilia e estupro no coração de uma tradicional família carioca, foi publicada em 1944, mas só pôde ser encenada mais de 20 anos depois.
Teve problemas também com a ditadura militar, que muito defendeu de início. Para ele, que detestava os "vermelhos" acima de tudo, o regime de exceção era necessário para proteger o País - e os relatos de tortura, desmentidos cara a cara pelo próprio general Médici, uma mentirada inventada por comunistas. As coisas mudaram quando seu próprio filho, Nelsinho, foi preso e torturado pelos militares em 1977. Além de torná-lo em defensor da anistia nos últimos anos de vida, o sofrimento do filho esquerdista o levou a retomar o relacionamento com Elza Bretanha, sua esposa por quase 25 anos e de quem tinha se separado mais de uma década antes.
O anjo sem vergonha e inclinado aos temas sórdidos faleceu em 21 de dezembro de 1980, em decorrência de complicações cardíacas. Fiel ao ideal conservador, e contradizendo os críticos: em um ambiente familiar feliz, deixando amorosas saudades na esposa e nos filhos.