Poucas pessoas no mundo tiveram um enterro tão roqueiro quanto Raul Seixas. O Cemitério Jardim da Saudade, em Salvador (BA), estava lotado de fãs naquele 23 de agosto de 1989, muitos desesperados à beira da histeria pela morte do ídolo. Alguns, por outro lado, acharam que o Maluco Beleza merecia uma homenagem menos tristonha e formal: invadiram a igreja, aos gritos de "viva a Sociedade Alternativa", e colocaram o caixão nas costas, ameaçando levá-lo embora. A ideia, segundo diziam, era levar o cantor para dar um rolê, tomar umas cervejas e fumar uns cigarros naturais antes do reencontro definitivo com o Universo.
Segundo o amigo e também músico Marcelo Nova, foi preciso que ele e algumas outras pessoas, aos gritos, demovessem a turma da insólita ideia. Não que, sejamos sinceros, ela fosse de todo disparatada: dona Maria Eugênia, mãe de Raul, admitiu que o filho provavelmente teria adorado aquela bagunça toda, se pudesse ter visto a cena.
Porque uma coisa precisa ser dita: Raul Seixas veio ao mundo para bagunçar as coisas, no melhor sentido. Nascido há 75 anos, mais precisamente em 28 de junho de 1945, o cantor e compositor é amplamente reconhecido como uma das figuras máximas do rock brasileiro, tendo deixado um legado que mistura ironia, contestação, filosofia e misticismo. A devoção dos fãs é quase tão lendária quanto o próprio artista, em uma intensidade que chegou a entrar para o folclore urbano brasileiro: quem não terá ouvindo alguém gritar - ou mesmo terá gritado - o indefectível "toca Raul!" em algum show por aí?
Nascido em uma família de classe média de Salvador, o jovem Raul Santos Seixas nunca teve jeito para a escola: repetiu ano várias vezes, a cabeça absorvida desde a pré-adolescência pelo fascínio do rock. A partir da metade dos anos 1960, o conjunto Os Panteras transformou-se em sensação local, ao ponto de encorajar Raulzito a tentar a sorte musical no Rio de Janeiro. Porém, o único álbum da banda, lançado em 1968 pela prestigiada EMI-Odeon, vendeu pouco à época, e o músico chegou a passar fome antes de, derrotado, voltar brevemente para a Bahia.
Com o apoio do amigo Jerry Adriani, o cantor teria uma segunda chance no Rio, tornando-se produtor e chegando a comandar o projeto Sociedade Grã Ordem Kavernista, que lançou um LP em 1971. O sucesso de duas músicas no Festival Internacional da Canção, em 1972, garantiu um novo contrato com a gravadora Philips - mas foi a partir do segundo álbum solo, Krig-ha, bandolo! (1973), que a carreira de Raul Seixas realmente disparou.
Dividindo composições com o escritor Paulo Coelho, o vocalista mergulhou na sua fase mais transcendental, ao ponto de idealizar uma ordem filosófica inspirada pelo bruxo inglês Aleister Crowley. A ditadura militar, no entanto, não gostou dessa conversa de Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei, e perseguiu Raulzito por muitos anos. A situação rendeu letras censuradas e até sessões de tortura nas mãos dos militares - tudo para saber quem eram os "guerrilheiros" da tal Sociedade Alternativa.
Autor de hinos eternos do rock nacional, como Gita, Ouro de tolo, Eu nasci há 10 mil anos atrás e Metamorfose ambulante, Raul Seixas colecionou tantos percalços quanto sucessos. Os excessos da vida de roqueiro o levaram ao alcoolismo, que inviabilizou vários dos seus relacionamentos amorosos e destruiu lentamente sua saúde. Desenvolveu diabetes e hipertensão, precisou fazer uma cirurgia (em 1979) para retirar parte do pâncreas e chegou ao ponto de cheirar éter etílico, já que o estômago não aguentava mais bebidas destiladas. O álcool chegou a pôr em risco até a aparentemente inabalável idolatria dos fãs: em 1982, estava tão bêbado durante um show em Caieiras, São Paulo, que precisou ser retirado pela polícia para não ser linchado, já que a plateia jurava estar diante de um impostor.
Com a saúde destroçada, o Maluco Beleza acabou falecendo em 21 de agosto de 1989, em um infarto fulminante disparado pela pancreatite. Dias antes, havia lançado o LP A panela do diabo, ao lado de Marcelo Nova - disco que acabou se tornando um sucesso de vendas e é visto por muitos críticos e fãs como um dos melhores de sua carreira.
Se já era lenda antes de partir para outro plano, sua estrela segue iluminando a música nacional. Não resta dúvida de que, quando os shows presenciais voltarem no Brasil pós-pandemia, haverá quem erga a voz para gritar "toca Raul!" - um misto de deboche e devoção bem ao gosto do homenageado, e que garante a justa presença de Raulzito em qualquer lugar onde esteja rolando o rock'n'roll.