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Cultura

- Publicada em 26 de Maio de 2020 às 20:02

Após quase 30 anos, Maria Rita Stumpf lança seu terceiro disco, 'Inkiri Om'

Redescoberta por DJs e colecionadores de LPs, cantora gaúcha retoma a carreira discográfica com álbum que se conecta com as raízes da sua obra

Redescoberta por DJs e colecionadores de LPs, cantora gaúcha retoma a carreira discográfica com álbum que se conecta com as raízes da sua obra


DEMIAN GOLOVATY/DIVULGAÇÃO/JC
Daniel Sanes
O oroboro está presente em várias culturas. Trata-se de uma serpente (ou dragão, dependendo da representação histórica) que come o próprio rabo, em um ciclo de movimento e continuidade. Um processo de evolução que é, ao mesmo tempo, um eterno retorno às origens.
O oroboro está presente em várias culturas. Trata-se de uma serpente (ou dragão, dependendo da representação histórica) que come o próprio rabo, em um ciclo de movimento e continuidade. Um processo de evolução que é, ao mesmo tempo, um eterno retorno às origens.
Não é por acaso que esta figura mitológica foi escolhida para estampar a capa do terceiro disco de Maria Rita Stumpf, o primeiro em quase três décadas, com arte do designer Juliano de Oliveira Moraes a partir de uma pintura do rosto da cantora gaúcha feita por Julio Saraiva e obra de Miguel Gontijo. Depois de dois álbuns marcados pela ousadia e pela mistura de ritmos, que vão de cantos indígenas à música eletrônica (Brasileira, de 1988, e Mapa das nuvens, de 1993), a artista retoma a carreira discográfica com Inkiri Om, que será lançado nesta sexta-feira (29) em plataformas digitais como Spotify e no YouTube.
Apesar do longo espaço entre os trabalhos, a conexão entre eles é evidente desde a primeira faixa, Inkiri Om (Cântico brasileiro nº 7) - "Inkiri", "o amor em mim saúda o amor em ti", é um cumprimento usado por uma tribo que viveu na região de Piracanga, na Bahia; "Om" é o mantra mais importante do hinduísmo. "O Brasileira se insere dentro do Inkiri Om de uma forma até óbvia, porque a faixa-título é como uma continuação do Kamaiurá (Cântico brasileiro nº 3), que abre o primeiro disco", compara Maria Rita. "E, infelizmente, a situação dos povos indígenas no País, que era ruim na época, não melhorou. Na verdade, só piorou, e agora é gravíssima, com essa pandemia podendo dizimar populações inteiras e sem o cuidado que deveria existir por parte do governo."
O retorno de Maria Rita à música pode parecer surpreendente, mas deu-se de forma gradual, e a partir de uma série de acontecimentos - estes, sim, inusitados. Nascida na zona rural de São Francisco de Paula, ela concluiu os estudos em Caxias do Sul e, já em Porto Alegre, se graduou em Jornalismo e cursou Música pela Ufrgs. Viveu por anos no Rio de Janeiro - onde estudou com o compositor e arranjador Luiz Eça, que viria a ser seu parceiro musical - e até no Peru, antes de se estabelecer em São Paulo. Quando interrompeu a carreira como cantora, já estava consolidada na área cultural por meio da Antares Promoções, produtora pela qual trouxe ao Brasil alguns dos maiores nomes da música clássica e da dança, de Philip Glass a Mikhail Baryshnikov.
Em 2015, Brasileira foi redescoberto por DJs e colecionadores, o que levou ao relançamento do LP, em 2017. Na esteira do reconhecimento internacional, Maria Rita lançou o EP Brasileira remixes e foi incluída na coletânea Outro tempo: electronic and contemporary music from Brazil, 1978-1992, do pesquisador anglo-espanhol John Gómez. Desde então, foi tema de documentário e fez diversos shows. Para a retomada ser completa, só faltava um disco de inéditas.
"Fazer arte no Brasil, de forma geral, é uma missão muito difícil, e, dependendo do que tu estás fazendo... Muita gente dizia que a minha música estava à frente do tempo. As dificuldades se tornam tão grandes que, em um determinado momento, tu acabas desistindo", reflete a cantora. "Sou muito grata à juventude, ao John Gómez, aos meninos do duo Selvagem (os DJs Millos Kaiser e Trepanado, donos do selo Selva, que relançou Brasileira), que trouxeram meu trabalho de volta, a pessoas como o Gil Petersen, da BBC, que tocou minha música lá atrás e que está tocando ela agora. Acho que talvez tenha sido isso o que aconteceu: não era a hora, não era o momento. Felizmente, muita coisa mudou e as cabeças se abriram para outras estéticas, que vieram lá de trás", acredita.
A conexão com as novas gerações, porém, também traz uma situação inédita para Maria Rita, hoje com 62 anos: a questão da apropriação cultural. Quando ela criou suas primeiras músicas, não imaginava que hoje isso poderia ser motivo para julgamento - o fato de uma mulher gaúcha e branca abordar temáticas ligadas aos povos ancestrais. "Posso entender que o movimento negro ou o indígena precisem se separar para tentar se defender, mas nunca na minha vida acreditei em divisão, e sim em união. Além disso, o artista deve ser livre para manifestar aquilo que sente, o que lhe toca, para que em seu trabalho exista honestidade e sinceridade. Quando fiz isso lá atrás, fiz por essas razões, e, se sigo agora, é porque continua sendo uma coisa que me diz respeito", pontua.
Honestidade e sinceridade compartilhadas por muitos músicos, amigos que Maria Rita fez naquela época e que gravaram Inkiri Om. No estúdio Aprazível, de Philippe "Doudou" Ingrand, a cantora reuniu nomes como o multi-instrumentista Ricardo Bordini (que, junto com ela, assina a direção artística do álbum), o violoncelista Lui Coimbra (responsável pela direção musical), o violonista Maurício Carrilho, o guitarrista Paulo Rafael e os percussionistas Marcos Suzano, Paulo Santos (do grupo Uakti) e Jovi Joviniano. Completam o time os "novatos" Matheus Câmara (de nome artístico Entropia-Entalpia, guitarras e programações), Danilo Andrade (pianos, teclados e programações) Kassin Kamal (baixo e produção), João Lyra (viola caipira), Ayran Nicodemo (violino), João Senna (viola) e Eduardo Neves (flautas). "A contribuição deles é essencial. Alguns são meus amigos há muito tempo e outros conheci mais recentemente, mas tivemos uma conexão imediata", afirma.
O disco tem 11 faixas, cinco de Maria Rita, sendo uma, Hai kai das borboletas, em parceria com o músico canoense Zé Caradípia. As demais são composições que a cantora já imaginava gravar há muito tempo. "Algumas eu já cantava nos shows, e sentia que poderia ter composto, tamanha era a identificação", explica. Tanto que uma delas, Canoa, canoa, de Nelson Angelo e Fernando Brant, foi escolhida para encerrar o disco. "Nada é por acaso no álbum. Está tudo amarrado, desde a ordem das faixas ao encarte, que partiu da ideia de um diário de viagem. Tem 24 páginas, então fazer um LP com ele tornaria o Inkiri Om o disco mais caro do mundo (risos). Mas estará lá no site (www.mariaritastumpf.com). Acho que é um complemento legal para a audição", completa.
Por enquanto, a obra estará disponível apenas na internet. O plano é lançá-la em LP, o que deve acontecer futuramente. "Decidimos lançar o álbum de forma virtual agora para oferecer algo às pessoas neste momento de pandemia, que, aliás, era uma situação pela qual nunca imaginava que iríamos passar. Espero sinceramente que nós, como seres humanos, consigamos sair dessa situação um pouco melhores."
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