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Cultura

- Publicada em 19 de Maio de 2020 às 18:59

José Francisco Botelho fala sobre a tentação do ócio em tempos de quarentena

Além de trabalhos de tradução, escritor tem pelo menos quatro projetos literários em andamento

Além de trabalhos de tradução, escritor tem pelo menos quatro projetos literários em andamento


CLAITON DORNELLES/ARQUIVO/JC
Igor Natusch
Os primeiros dias de isolamento forçado pela pandemia do novo coronavírus foram, para José Francisco Botelho, marcados por uma espécie inusitada de euforia. Afinal, o ócio - em especial, o criativo - não deixa de ser inebriante. "Inicialmente, parece haver algo de agradável em ser instruído a ficar quieto; ocasião em que a preguiça deixa de ser um pecado e se torna uma virtude ou, ao menos, uma fatalidade", diz o autor do premiado Cavalos de Cronos (2018). "Nesses momentos de estaqueada alegria, pode-se, inclusive, escrever muito."
Os primeiros dias de isolamento forçado pela pandemia do novo coronavírus foram, para José Francisco Botelho, marcados por uma espécie inusitada de euforia. Afinal, o ócio - em especial, o criativo - não deixa de ser inebriante. "Inicialmente, parece haver algo de agradável em ser instruído a ficar quieto; ocasião em que a preguiça deixa de ser um pecado e se torna uma virtude ou, ao menos, uma fatalidade", diz o autor do premiado Cavalos de Cronos (2018). "Nesses momentos de estaqueada alegria, pode-se, inclusive, escrever muito."
Uma espécie de embriaguez com o nada-fazer que, como todas as euforias geradas pelo excesso, logo se desfaz. E deixa apenas a ressaca atrás de si. "Em breve, chegou a compreensão de que aquilo não era de fato um ócio, que eu ainda tinha à minha frente todas as obrigações normais da vida não isolada; apenas tinha de dar um jeito de cumpri-las encerrado no quarto", lamenta, em entrevista ao Jornal do Comércio.
Uma vez que a realidade de um longo confinamento cheio de compromissos se torna palpável, a tendência de romantizar o isolamento - seja para o escritor ou para qualquer outra pessoa - tende a se dissipar. "O isolamento urbano se parece a uma eterna ressaca num dia de trabalho", descreve Botelho. "Em alguns dias, tudo o que desejava era levar meu caderno para a Lancheria do Parque e escrever lá, tomando café no copinho, como sempre fiz."
Não que falte o que fazer na rotina entre paredes. Ao contrário: no momento, além de vários trabalhos de tradução, o escritor e jornalista tem pelo menos quatro projetos literários em andamento. "Como sempre, iniciei mais coisas do que poderei terminar", diz ele. Além de um livro de poemas ("algo que há muito me cobram e que apenas agora, durante a quarentena, resolvi compilar"), o autor trabalha em um romance histórico passado no século XIX, bem como uma coletânea de ensaios e textos publicados na imprensa e uma nova coleção de contos. "(Serão) relatos de inclinação noir, uma espécie de gótico sulino envolvendo celerados, crápulas, aberrações e farsantes de diversas épocas, perdidos em algum confim do continente", descreve, animado com a trabalheira criativa que está por vir.
A contradição é apenas aparente. Afinal, da mesma forma que abrir uma cerveja ajuda a neutralizar a ressaca de quem não quer parar de beber, produzir literatura (ou, pelo menos, projetá-la) é uma boa forma de tirar do corpo a sensação desagradável do tempo intencionalmente desperdiçado. Uma relação entre extremos que, para José Francisco Botelho, tem a ver com a própria escrita - ela também é uma ponte entre o espontâneo e o obstinado, a espera e a insistência.
"Todo relato, longo ou curto, nasce de uma espécie de epifania momentânea e, às vezes, obscura. Nem sempre é uma sensação agradável; às vezes, pode se parecer à angústia ou ao medo", afirma. "Já tive de interromper conversas e, certa vez, quase parei uma palestra que estava dando, porque o gérmen de uma estória começou a ofegar dentro de minha cabeça e eu precisava ir lá dentro ver o que era. Mas, para que uma ideia se transforme num relato digno, é preciso, além de persistência, teimosia e certa rabugice."
Uma teimosia que se impõe, em tempos nos quais a cultura é tratada como dispensável e, até mesmo, perigosa por muitos - e, ao mesmo tempo, mostra-se fundamental para reafirmar algo humano que não pode desaparecer. "Na atual conjuntura de escárnio contra o conhecimento e o elogio à estultícia, todas as artes sofrem o ataque de um utilitarismo tacanho e desinformado, ou são relegadas a uma indiferença vagamente escandalizada, típica da raposa que não alcança as uvas e sai grunhindo. Recusar-se a dobrar a espinha à tolice, nesse contexto, me parece ser a melhor contribuição que não apenas um escritor como qualquer pessoa sã poderia dar ao mundo", acentua.
Literatura como antídoto contra uma ressaca coletiva, talvez? "Eu ainda me apego a uma ideia que há muito saiu de moda, de que a leitura de ficção e poesia nos ajuda a compreender o espírito humano", diz o autor. "A vantagem do leitor contumaz é sempre a de contar com um universo imaginário que é, ao mesmo tempo, alheio, paralelo e suplementar a este outro universo, o não imaginário, na falta de melhor adjetivo."
Para os dispostos a explorar avenidas novas nessa busca, Botelho deixa algumas sugestões. "Nas últimas semanas, li A harpa e a sombra, de Alejo Carpentier; e Véspera: Debris, de Pedro Mohallem. Reli os contos de José J. Veiga, Horacio Quiroga e Juan José Morosoli. Sou aficionado por ficção científica, e o melhor que li no gênero recentemente foram os romances Ilium e Olympos, de Dan Simmons. Todos são altamente recomendados."
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