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Cultura

- Publicada em 14 de Abril de 2020 às 20:37

"Não somos estatísticas", afirma escritora Julia Dantas sobre pandemia

Autora de 'Ruína y leveza' está na fase final do doutorado em Escrita Criativa

Autora de 'Ruína y leveza' está na fase final do doutorado em Escrita Criativa


ARQUIVO PESSOAL/DIVULGAÇÃO/JC
Roberta Requia
Aos 35 anos e com um livro indicado ao Prêmio Açorianos, a escritora e jornalista Julia Dantas sente falta das caminhadas, dos momentos de lazer com os amigos e dos almoços de quinta-feira com a família. Na fase final do doutorado em Escrita Criativa, planejava um período recluso por conta da produção de um romance e um ensaio para a conclusão do grau.
Aos 35 anos e com um livro indicado ao Prêmio Açorianos, a escritora e jornalista Julia Dantas sente falta das caminhadas, dos momentos de lazer com os amigos e dos almoços de quinta-feira com a família. Na fase final do doutorado em Escrita Criativa, planejava um período recluso por conta da produção de um romance e um ensaio para a conclusão do grau.
Porém, o confinamento em função da pandemia de Covid-19 levanta questionamentos diferentes do isolamento voluntário. Afinal, o período implica questões de saúde, de vida ou morte. A problemática em torno da quarentena virou outra. "Imagino que obras escritas agora serão marcadas por essa sensação difusa de ameaça externa e pela solidão do corpo", diz Julia.
Para ela, o difícil neste período não é a falta de produtividade em si, mas o turbilhão de informações e o pânico a todo momento. "Tenho o hábito de desligar o Wi-Fi quando vou escrever para não cair na tentação do celular. Mas, agora, fazer isso me gera um medo de perder algo importante. 'E se acontecer uma tragédia, e se alguém precisar de mim?' É irracional, claro, sei que ninguém que amo vai precisar de mim num minuto exato ou então morrer."
Jornalistas e escritores sempre marcaram a história como escrivães dos fatos e acontecimentos. Para Julia, é difícil imaginar como as marcas deixadas pela pandemia irão refletir na produção literária. Segundo ela, as narrativas sobre traumas no coletivo mundial sempre trazem traços como a fragmentação, a reconstrução da memória e os relatos testemunhais. "Possivelmente, irá se fortalecer o caráter intimista e autoficcional da literatura contemporânea, já que estamos todos mais voltados para dentro de nós mesmos e o outro se encontra mais distante", avalia.
Em seu primeiro romance, Ruína y leveza (Não Editora, 2015), a protagonista desiste de emprego e relacionamento estáveis para embarcar em uma viagem de autoconhecimento no Peru. Movimento esse que parece ser pendular de geração em geração, desde os beatniks embalados pela literatura de Jack Keuroac até os millennials da premiada série de Azis Ansari, Master of none.
Questionada sobre as reflexões a respeito da imposição do sucesso, da estabilidade financeira e do reconhecimento perante a sociedade, Julia acredita que, individualmente, todos irão rever prioridades pessoais: "Vamos perceber as coisas que mais nos fazem falta e o que já não queremos mais nas nossas vidas. A proximidade com a morte sempre nos obriga a refletir sobre o que estamos fazendo com a nossa vida, enquanto a temos".
Para este período, a escritora indica dois títulos de leitura: Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, "livro que nos faz pensar sobre o que é essa tal de humanidade"; e o sucesso esgotado de Valêncio Xavier, O mez da grippe, que constrói uma narrativa sobre o surto de gripe espanhola no Brasil a partir de recortes de jornais.
Julia criou o blog Diário da pandemia, onde publica diariamente uma crônica/relato de um dia na vida de alguém em isolamento. A proposta começou com amigos e se espalhou. Segundo ela, a periodicidade dos textos a ajuda a sentir-se menos solitária e a marcar a passagem do tempo: "Ultimamente, mal sei se é terça ou sexta-feira, mas sempre sei que estamos no dia X de quarentena. Sinto que estou fazendo algo com esse tempo, ajudando a construir uma obra coletiva sobre nossos dias". Cerca de 30 crônicas já foram publicadas.
A escritora acredita que a qualidade dos textos não implica diretamente em talento para a escrita. O que surpreende são as narrativas sobre o instante pessoal de cada um. "São pessoas que dedicaram seu tempo e sensibilidade à tarefa de olhar com atenção para si mesmas e para o mundo. Quando a gente olha com cuidado para as coisas, nossa mente dá um jeito de achar as palavras que façam jus a esse olhar."
Julia se interessou por relatos individuais sobre este período. Histórias de pessoas comuns e suas rotinas diárias confrontadas por algo implacável e de peso imensurável. "Precisamos de registros além das informações frias de jornais, análises e estudos. No futuro, vão olhar para nós como estatísticas: morreram tantos, outros quantos ficaram miseráveis. Mas não somos apenas isso: somos pessoas que tiveram suas vidas, de alguma forma, interrompidas ou atravessadas por algo muito maior que nós. Nós não somos estatísticas", afirma.
Ainda sobre o papel do escritor em épocas tão difíceis, ela fala sobre o desafio de transpor em palavras todos os sentimentos que estão no ar e que ainda não foram de certa forma traduzidos: "É uma investigação do próprio escritor, mas também uma tentativa de criar contato com as outras pessoas". Afinal, as palavras dos escritores são uma extensão dos sentimentos, de coisas que, muitas vezes, não conseguimos expressar.
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