Em 1923, boa parte do Japão foi atingida por um devastador terremoto. Com epicentro na região de Kanto, o abalo provocou grande destruição na capital Tóquio. E teve efeitos duradouros na personalidade de Akira Kurosawa, então um menino de 13 anos. Seu irmão mais velho, Heibo, levou o jovem para uma área elevada da cidade, onde era possível ter uma visão ampla da destruição. Diante dos edifícios destruídos e corpos espalhados pelo chão, Akira quis desviar o olhar, mas Heibo o impediu: segundo ele, o irmão mais novo precisava ser mais forte que o medo, encarando-o de frente.
A história, contada por Akira Kurosawa em seu livro de memórias, tem muito a ver com a abordagem que o futuro cineasta adotaria em sua obra. Nascido há exatos 110 anos, no dia 23 de março de 1910, o gênio japonês desenvolveu uma obra dinâmica e ousada, na qual os acontecimentos trágicos – causados ou não pela ação do homem – são uma constante que define personalidades, sociedades e trajetórias de vida. Algo que não afasta (na verdade, aproxima) da tela a grandeza humana, o conteúdo existencial e a poesia.
O contato de Kurosawa com a arte foi encorajado desde a infância: seu pai, instrutor de educação física, era uma pessoa aberta à cultura ocidental, encorajando os filhos a assistirem filmes e peças teatrais. A primeira inclinação do jovem Akira foi a pintura, mas logo seu entusiasmo passou para outro tipo de tela: em 1935, começou a atuar como assistente de direção para os estúdios Toho, acumulando depois a função de roteirista. Sua estreia na direção foi em 1943, com Sanshiro sugata – lançado em DVD no Brasil em 2013 com o nome A saga do judô.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os filmes de Kurosawa foram perdendo o tom propagandístico inicial, imposto pelo regime japonês, e ganhando uma personalidade cada vez mais singular. É possível dizer que O anjo embriagado (1948) é a sua primeira grande obra, e a primeira a definir elementos que seriam centrais em sua filmografia, como o personagem que enfrenta as circunstâncias em nome de gestos de grandeza – no caso, o doutor que enfrenta a Yakuza para curar pacientes com tuberculose. A película marca também o começo da longa e produtiva parceria com o ator Toshiro Mifune, que participaria de 17 filmes de Kurosawa.
Mas foi a partir de Rashomon (1950) que Kurosawa virou uma figura de renome internacional. O filme, no estilo jidaigeki (espécie de drama de ação baseado na vida dos samurais), traz um enredo cheio de visões subjetivas e contraditórias sobre um mesmo incidente trágico, e não chegou a ser um grande sucesso comercial em seu país de origem. No exterior, porém, a obra foi aclamada: ganhou o Leão de Ouro no festival de Veneza de 1951 e um prêmio honorário no Oscar do ano seguinte.
A influência de Kurosawa vai muito além desta primeira obra seminal. Os sete samurais (1954) é outro clássico do cinema mundial, escolhido como o melhor filme em língua não inglesa da história em uma lista da BBC em 2018. O filme gerou uma adaptação hollywoodiana já em 1960, Sete homens e um destino, faroeste com Steve McQuenn. Até a mesmo a Pixar, em 1998, usou o longa do diretor japonês como inspiração para a animação Vida de inseto.
O Japão antigo foi cenário de vários filmes seminais de Kurosawa, como Kagemusha (1980), Trono manchado de sangue (1957) e Ran (1985) – os dois últimos, aliás, fazem referência direta a Shakespeare, com enredos inspirados em Hamlet e Rei Lear, respectivamente. Conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com Dersu Uzala (1975), e desafiou o próprio formato cinematográfico com Sonhos (1990), dividido em histórias curtas e com fortes elementos de realismo fantástico.
A saúde de Akira Kurosawa deteriorou-se a partir de 1995, quando fraturou a base da espinha em uma queda. Desde então, ele passou a usar uma cadeira de rodas, o que o impediu de dirigir filmes nos últimos anos de vida. O realizador japonês, que criou obras inesquecíveis e colocou seu país no cenário internacional do cinema, faleceu em 6 de setembro de 1998, após sofrer um ataque cardíaco na cama em que passou confinado durante os últimos meses de vida.
Colaborou Frederico Engel
Dez filmes fundamentais de Kurosawa
Rashomon (1950) - No Japão feudal, quatro testemunhas narram, de formas distintas, um crime trágico envolvendo um samurai.
Ikiru (1952) - Um dos filmes mais humanos de Kurosawa, sobre um burocrata que descobre um câncer no estômago.
Os sete samurais (1954) - Um vilarejo acossado por bandidos contrata sete ronins (samurais sem mestre) para enfrentar a ameaça.
Trono manchado de sangue (1957) - Um guerreiro assassina seu rei e se vê mergulhado em uma sangrenta luta pelo trono.
Yojimbo (1961) - Em um vilarejo onde a vida pouco vale, dois reis do crime tentam garantir os serviços de um recém-chegado ronin.
Céu e inferno (1963) - Um empresário tem o filho raptado e precisa enfrentar os sequestradores, que pedem uma fortuna como resgate.
Dersu Uzala (1975) - No ambiente inóspito da Sibéria, um explorador russo e um caçador ermitão desenvolvem uma profunda amizade.
Kagemusha - A sombra do samurai (1980) - Um criminoso sem fama assume como sósia de um senhor feudal e se torna um poderoso líder.
Ran - Os senhores da guerra (1985) - Um velho senhor da guerra decide abdicar em favor de seus três filhos, o que gera uma sangrenta disputa familiar.
Sonhos (1990) - Baseados em sonhos do próprio Kurosawa, oito segmentos abordam temas como maturidade, morte e espiritualidade.