A escolha do representante brasileiro para disputar a categoria de melhor filme internacional no Oscar 2020 foi acirrada. Aclamado pela crítica e às vésperas de uma bem-sucedida trajetória nos cinemas, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, era considerado favorito, mas acabou superado por A vida invisível, de Karim Aïnouz. A decisão ampliou as atenções em torno do drama, com estreia nos cinemas brasileiros marcada para 21 de novembro.
A conclusão do time de especialistas pode causar estranhamento em quem tenha se encantado com o faroeste distópico estrelado por Sônia Braga, mas muda de figura quando se assiste o escolhido pelos especialistas. Baseada no romance de Martha Batalha, A vida invisível é uma obra que engrandece a produção atual do cinema brasileiro, com qualidades que se sustentam muito além de uma eventual "cara de Oscar", que ninguém sabe direito como definir.
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A sequência de abertura mostra as irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) descendo um morro do Rio de Janeiro para fugir da chuva, gritando uma para a outra enquanto tentam não se perder em meio à vegetação densa. A cena introduz, em um equilíbrio de força, tensão e sutileza, o drama que vai se desenrolar durante todo o filme: o esforço de duas mulheres para superar um mundo que insiste em forçar sobre elas o apagamento, a submissão e a separação.
O golpe decisivo na vida das duas surge quando Guida fica grávida do namorado e é rejeitada pelo pai, que passa a impor uma barreira de silêncio em torno dela. A partir desse evento, o longa passa a ser a história de mulheres que, mesmo distantes, influenciam uma à outra na vida que constroem no decorrer do anos, sempre lutando de todas as formas para alcançar o reencontro.
As atrizes principais trazem interpretações fortes e consistentes, que realçam as diferenças entre as duas mulheres. A Guida decidida e vigorosa de Julia Stockler é espelho e, ao mesmo tempo, complemento da Eurídice talentosa, sonhadora e introvertida proposta por Carol Duarte. Mesmo diferentes, ambas são resistentes, cada uma a seu modo. A construção das tramas paralelas reforça essa ideia de coesão em universos opostos, com cortes de cena às vezes abruptos e surpreendentes, além de uma fotografia apurada e cuidadosa. Tudo desembocando na poderosa e emotiva parte final, na qual Fernanda Montenegro domina cenas e olhares como a versão mais velha de Eurídice.
Um dos pontos fortes da narrativa de Karim Aïnouz está na construção do ambiente machista das décadas de 1940 e 1950. A lente não é bondosa com os homens em cena, mas nunca apela para a caricatura. Manuel (António Fonseca) é um patriarca severo e que, ao mesmo tempo, mostra-se desajeitado em suas tentativas esporádicas de afeto e cuidado familiar, enquanto Antenor (Gregório Duvivier) é um marido que ama a esposa, mas a sufoca o tempo todo para que encaixe no desconfortável molde de uma típica boa família carioca.
Os muros que afastam as protagonistas de seus sonhos e reaproximações estão no ambiente familiar: são os homens de quem se supõe amor e cumplicidade, e que agem exatamente do jeito que se esperava que agissem à época, talvez do jeito que se espere deles ainda hoje. Não há maldade explícita: há, isso sim, um mundo que sufoca e hostiliza a experiência feminina, simbolizado em homens movidos pela própria urgência em cumprir à risca seus papéis na sociedade. Os antagonistas podem ser nossos pais e irmãos; Guida e Eurídice, nossas mães, irmãs, amigas, esposas.
Em A vida invisível, o mundo é onipresente e inescapável. Guida busca respiro nos sambas de fim de semana, Eurídice tenta a transcendência nas notas do piano, mas a realidade está sempre lá. As reviravoltas têm, por vezes, um tom de folhetim, sem nunca perder o toque poético, realçado na constante presença da voz de Eurídice, lendo as cartas enviadas por Guida - cartas que, na verdade, nunca chegavam de fato em suas mãos.
Estamos diante, possivelmente, do mais sólido longa brasileiro a buscar vaga no Oscar em muitos anos. Não é à toa que venceu a mostra Um certo olhar, em Cannes, e não é por caridade que foi escolhido para, quem sabe, representar o País em Hollywood. Sensível, profundo e impactante, A vida invisível é cinema de primeira qualidade, que merece as mesmas filas e aplausos que Bacurau trouxe aos cinemas do Brasil.