Há 300 anos, era publicada em Lisboa a primeira narrativa utópica da língua portuguesa. Escrito décadas antes pelo padre português Antonio Vieira, mas não publicado até bem depois de sua morte, o livro traduz, em palavras e arte, a ideia de um país do futuro: vislumbrado por profetas, abençoado por Deus e abundante de riquezas naturais, mas consumido até as cinzas por um povo insensível e corrompido. Só após a decadência seria possível rearranjar os escombros e construir um país renovado, efetivamente capaz de liderar a humanidade em uma nova era de harmonia e civilidade.
De 18 a 21 de julho, nesta quinta-feira até domingo, quem estiver no Teatro do Centro Histórico-Cultural Santa Casa (Independência, 75), às 20h, poderá ver uma interpretação viva e vibrante de tantas expectativas. Adaptada e interpretada por Caco Coelho, a peça História do futuro reverbera a profecia de Vieira em um Brasil que convulsiona na incerteza sobre o amanhã. Os ingressos (R$ 40,00, com meia entrada para estudantes, idosos e classe artística) estão à venda no local.
Com supervisão de direção de Vera Holtz e direção cênica de Eduardo Severino, o espetáculo traz mais uma presença ilustre, ainda que virtual. Em uma aparição audiovisual, o ator Lima Duarte surge como um profeta, que introduz e estimula as palavras e movimentos de Caco em cima do palco.
A aproximação entre Lima e Caco teve ajuda de Vera Holtz, e foi a partir de conversas sobre as raízes da brasilidade que a ideia de levar a obra profética ao palco nasceu. Caco, que estudava os sermões de Antonio Vieira por conta de sua influência sobre a poesia de Fernando Pessoa, não conhecia História do futuro - e foi imediatamente arrebatado pela "espantosa atualidade" da obra.
"Por um lado é deslumbrante como literatura, talvez um dos textos mais bonitos da língua portuguesa; por outro, é um soco no estômago. É um texto com três séculos de idade e que, ao mesmo tempo, parece ter saído do editorial do jornal de domingo", diz, sem disfarçar o assombro.
Fiel às características desenvolvidas em 40 anos de carreira artística, Caco propõe trabalhar a presença cênica em termos de ambientação, com poucos elementos de palco. O único objeto em cena é uma cadeira - futurista, mas retirada diretamente dos anos 1950. Referência a um Brasil que sonhou-se moderno e influente, que enxergou em si mesmo o "país do futuro" exaltado na obra homônima de Stefan Zweig. Um futuro que, simplesmente, não veio.
Diante desse cenário aberto, o texto e o movimento saem realçados. E a presença de Lima Duarte, trazendo profecias em latim, torna-se fundamental. "Ele me perguntou 'Caco, como é que posso te ajudar?'", relembra. "Falamos então sobre a parte das profecias. Eu disse 'grava algo no celular' e ele 'não, pode deixar que eu vou fazer bem feito'. Se preparou durante duas semanas, gravou em estúdio, com a sua equipe, e me mandou um material deslumbrante."
Responsável pela direção cênica de História do futuro, Eduardo Severino explica que sua função é trazer "um olhar de fora", buscando formas de fazer com que a voz e o corpo de Caco Coelho preencham o palco de forma ainda mais significativa. "É um texto maravilhoso e denso, e estamos pensando em momentos para abrilhantá-lo ainda mais, ou dar uma leveza maior. Caco é muito estudioso e muito disciplinado, ele encara muito bem as propostas que trago. Ele está flutuando no texto e no espaço", elogia.
Unindo três séculos de pensar e de projetar o ser brasileiro, História do futuro é, para seu ator e idealizador, também uma forma de manifestar-se sobre o presente do País. "O artista tem um lugar onde estabelecer a sua luta, que é o palco. Cabe ao artista, em um momento como esse, trazer aquela que é a sua coisa mais profunda, que é a arte", reflete Caco.
"Acho que o artista errou nos últimos anos. Deixar chegar a situação ao que se transformou hoje é um erro muito grande. Mas nós, artistas, temos essa condição de perceber os erros, e de ajudar a construir, coletivamente, a percepção do erro. Somos um país imensamente rico, mas estamos pobres humanamente."