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reportagem cultural

- Publicada em 11 de Julho de 2019 às 23:57

Entre poemas dispersos, a vida breve de Eduardo Guimaraens

Obra de poeta gaúcho é redescoberta mais de três décadas depois de seu falecimento

Obra de poeta gaúcho é redescoberta mais de três décadas depois de seu falecimento


ACERVO FAMILIAR/DIVULGAÇÃO/JC
Os versos abaixo pertencem a um poeta gaúcho considerado um dos mais importantes do movimento literário simbolista brasileiro: Eduardo Guimaraens. Embora tenha falecido com apenas 36 anos, no início do século passado, sua poesia atualmente está sendo revisitada, sendo objeto de pesquisas na área da literatura em diferentes universidades. 
Os versos abaixo pertencem a um poeta gaúcho considerado um dos mais importantes do movimento literário simbolista brasileiro: Eduardo Guimaraens. Embora tenha falecido com apenas 36 anos, no início do século passado, sua poesia atualmente está sendo revisitada, sendo objeto de pesquisas na área da literatura em diferentes universidades. 
"Quero saber da tua boca, Peregrina,
se ainda o meu nome te perturba e te fascina.
Se ainda, através de todo o mal, de todo o encanto,
fui a saudade que consola e seca o pranto (...)"
(Trecho de Adágio Apassionato, em A Divina Quimera)
Além disso, boa parte do seu trabalho permanece inédito - há um acervo considerável de poemas, peças de teatro e material jornalístico de posse de seus herdeiros, verdadeiros guardiões dessa memória.
Eduardo Guimaraens nasceu no ano de 1892, em Porto Alegre, filho do português Gaspar da Costa Guimarães e da brasileira Balbina Silveira Guimarães. Seu pai se viu obrigado a deixar Portugal devido às suas ideias políticas antimonárquicas. Foi ele que estimulou os precoces talentos literários do filho, tendo pago do seu bolso, quando ele fez 16 anos, a impressão de uma coletânea de versos, intitulada Caminho da vida. A literatura foi o seu destino, tendo fortes influências principalmente do simbolismo francês e também do grande poeta italiano Dante Alighieri.
Na cena brasileira, até os últimos anos do século XIX, estavam em voga as ideias de cunho estético realista e parnasiano cujas composições buscavam apresentar uma representação fiel da realidade. A saturação dessa forma de expressão acabou também levando os autores da época a buscarem novas ideias. Eduardo Guimaraens, apesar de nunca ter saído do Brasil, era muito atento à produção literária de outros países, principalmente da Europa.
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"Acho que um dos grandes feitos dele foi trazer a lume obras que não eram tão conhecidas no Brasil naquela época, como As flores do mal, do Baudelaire. Ele vai ter uma forte ligação com esse texto, assim como as obras de Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, todos grandes expoentes do simbolismo francês, por qual Eduardo era apaixonado", diz a doutora em Letras Lívia Petry. Ela estudou o poeta gaúcho em um projeto de pesquisa da Ufrgs, que acabou resultando no livro A poesia metafísica no Brasil - Percursos e modulações, lançado em 2009.
De fato, Baudelaire foi uma das grandes influências. Tanto que Guimaraens chegou a traduzir 83 poemas de As flores do mal, que nunca foram publicados. "Todos tinham que seguir uma forma definida, isso vinha do romantismo, do parnasianismo, o tanto de estrofes silábicas. Daí chegam os poetas simbolistas e eles são responsáveis por abrir as para portas para movimentos como o dadaísmo, o futurismo, vários movimentos modernos do século XX", acredita Lívia. Ao proporem uma espécie de revolução na lírica, os poetas franceses trouxeram uma nova estética para a poesia.
Outra grande fonte de inspiração para Eduardo Guimaraens era o italiano Dante Alighieri e A Divina Comédia, como vemos no próprio nome do livro mais importante lançado pelo poeta gaúcho: A Divina Quimera, de 1916. A obra clássica do renascentismo europeu, escrita no início do século XIV, é uma espécie de peregrinação do próprio autor e personagem desde as esferas do inferno até o paraíso, na esperança de encontrar a sua amada, Beatriz. "Baseado nessa obra, ele escreveu A Divina Quimera, também exaltando a mulher divina, essa era uma das grandes características dele: não enxergava a amada apenas como um objeto de desejo, mas amada, sobretudo, como alguém que os céus tinham trazido para ele", explica Lívia.
Para o escritor Mansueto Bernardi, seu grande amigo e que escreveu uma espécie de prefácio-biografia da edição definitiva de A Divina Quimera, lançada em 1944, a grande comparação, entretanto, seria com outra obra de Dante: Vita Nuova, que narra a história de amor de Dante por Beatrice Portinari. Da semelhança entre as obras e dos autores vem o amor quase sagrado pela musa. Bernardi destaca que seu amigo Eduardo Guimaraens relatou, certa feita, uma visão que teve pela primeira vez de sua Beatriz, "aquela que havia de ser, depois a rainha do seu coração, a inspiradora dos seus versos, a companheira do lar, a admirável mãe dos seus filhos". A Beatriz de Guimaraens se chamava Maria Etelvina. É importante lembrar também que ele traduziu o Canto Quinto, de A Divina Comédia, que foi publicado ainda em vida.
Entre os principais temas de Eduardo Guimaraens, além do amor divinal, está a musicalidade em sua poesia e a capacidade subjetiva de representar nos seus textos. "A poesia do Eduardo vai ser subjetiva no sentido de que ela te remete a um estado de alma, a uma sensação, a uma sugestão, ela vai te sugerir um estado de alma, mas ela não vai ser clara e objetiva como os parnasianos eram, eles descreviam um vaso e tu via um vaso na tua frente, então, era ao contrário. O Eduardo sugere, era uma poesia sugestiva, musical, e cada um vai entender de acordo com a sua leitura de mundo", explica Lívia.

A família como guardiã da memória

Neta de Eduardo Guimaraens, Maria Etelvina cuida dos textos originais

Neta de Eduardo Guimaraens, Maria Etelvina cuida dos textos originais


/MARIANA CARLESSO/JC
Quando Eduardo Guimaraens morreu, quem ficou como guardiã de sua obra e dos vários manuscritos foi sua esposa e inspiração dos seus poemas, Maria Etelvina. Curioso é que, agora, quem assume o papel de uma espécie de protetora desse material histórico é a neta do casal, que leva o mesmo nome de sua avó. Aliás, os nomes dos filhos de Eduardo e de Etelvina representam o grande afeto que Eduardo tinha pelos dois escritores já citados: chamaram-se Dante (em homenagem ao italiano) e Carlos (em homenagem ao francês Charles Baudelaire). Etelvina, a neta, conta que não chegou a conhecer a avó, que morrera um pouco antes de ela nascer. "Em 1967, o acervo foi dividido entre o meu tio Carlos Rafael e meu pai Dante Gabriel. Em 1969, Eduardo foi o patrono da Feira do Livro. E, digamos assim, essa é a primeira homenagem que eu me lembro nesse período. Naquela época, os homenageados do evento eram falecidos", explica.
É visível o esforço que Maria Etelvina faz para juntar os dados e investigar nos manuscritos, buscando traçar uma espécie de biografia do seu avô, cuja presença sempre foi tão constante, apesar de nunca tê-lo conhecido pessoalmente. E o material inédito, porque não foi publicado antes? "Meu pai morreu em 1969, e deixou minha mãe com três filhas pequenas. Ela teve que trabalhar, ralar. E acho que com o tio Carlos aconteceu a mesma coisa, ele era jornalista e trabalhava muito. Então, o que eles fizeram foi guardar", conta.
Rafael Guimaraens, filho de Carlos Rafael, e primo de Maria Etelvina, e também jornalista e escritor, recorda que a família vivia bastante na casa da tia-avó Olinta Braga. Ela havia sido uma grande cantora, noiva de Araújo Vianna e prima de minha avó Etelvina. "Na casa, havia muitos retratos, objetos, móveis e originais de meu avô, assim que ele esteve sempre presente em nossa infância. Eram retratos de um homem jovem e ficava difícil vê-lo como um avô. Então sua imagem para nós era de uma pessoa importante, um artista, um poeta. Na escola, essa condição de netos do poeta era falada, nos orgulhávamos disso", diz.
Por volta de 1995, Maria Etelvina foi em um evento que homenageou os antigos diretores da Biblioteca Pública do Estado, e, na ocasião, a professora Maria Luiza Berwanger palestrou sobre Eduardo Guimaraens (ele dirigiu a instituição entre 1922 e 1928). Na época, Maria Etelvina a procurou e disse que tinha um grande material com poemas inéditos. Maria Luiza já havia estudado a obra de Eduardo em seu mestrado e o simbolismo gaúcho em seu doutorado. "Passei o material que eu tinha e ela devolveu tudo organizado. Acabamos fazendo, então, o livro de poemas Dispersos, lançado em 2002 pela editora Libretos. Mantivemos muito da forma original do material, aliás a nossa ideia é que sempre que tiver manuscrito, a gente coloque o fac-símile, ou seja a reprodução, ao lado do traduzido, uma vez que o Eduardo escrevia em francês os poemas", conta a neta. O livro acabou ganhando o Troféu Açorianos de Prêmio Especial Poesia (2003). Levou o nome Dispersos, porque eles não tinham uma lógica ordenada por Guimaraens.
Foi um primeiro passo na proposta de resgatar a memória e de publicar a obra inédita. Em 2009, então ano da França no Brasil, a família achou que era um bom gancho para lançar outra obra inédita. "Na época, o Rafael fez esse projeto e a Pucrs se interessou, mas no contrato que eles nos passaram a família abriria mão dos direitos autorais de toda obra", explica Maria Etelvina. Como ela é advogada de formação, aposentada no momento, refez o contrato e propôs que poderia abrir mão dos direitos autorais apenas do livro que viria a ser publicado - o negócio não foi adiante. O livro Poemas só seria lançado em 2018 (por sinal, recém indicado ao Prêmio Especial do Troféu Ages 2019) e, ao invés da França, outro país seria responsável por trazer a lembrança do poeta Eduardo Guimaraens à tona novamente.
 

Outras facetas do poeta

A época em que Eduardo Guimaraens viveu em Porto Alegre ficou conhecida como belle époque da cidade, quando surgiram os cafés, as livrarias, os cinemas e a arquitetura ganhava ares europeus. "Ali nasceu uma grande geração de escritores, como Álvaro Moreyra, Felipe de Oliveira, Augusto Meyer, Marcelo Gama, Dyonélio Machado, que se reuniam em vários grupos: o grupo da Praça da Piedade, da Praça da Harmonia, do Café Colombo, mas interagiam entre si. Meu avô era um dos mais expressivos e admirados por seus colegas", explica Rafael Guimaraens.
Além da poesia, quando Maria Etelvina começou a organizar o material reparou que havia muitos outros estilos. "O que eu fiz, primeiramente, foi separar o que era atividade jornalística da atividade de poeta. Não é só jornalismo, tem crônica, teatro, que eu não sabia. Comecei a descobrir um Eduardo diferente daquele que eu conhecia, diferente não, mas mais complexo", explica ele. O pai também o influenciou no caminho que tomou como profissão: foi homem de imprensa. Eduardo colaborou com diversos periódicos de Porto Alegre, entre eles Folha da Manhã, Diário, Federação e Correio do Povo. Entre 1912 e 1913 viveu no Rio de Janeiro, onde colaborou nos jornais A Hora, Rio-Jornal, A Imprensa e Boa Hora. Retorna à capital federal em 1916, para a publicar Divina Quimera e para estudar o sistema de catalogação da Biblioteca Nacional. "Ele era funcionário da Biblioteca Pública aqui do Estado e, em um período que ele morou no Rio, foi justamente para implementar o sistema deles aqui. Ele começou como funcionário, depois vice-diretor e então diretor da biblioteca", explica Maria Etelvina. Além disso também atuou como tradutor, e uma das ideias da família é justamente publicar a sua tradução inédita de parte do Flores do mal, do Charles Baudelaire.
Eduardo Guimaraens morreu em 13 de dezembro de 1928, no Rio de Janeiro. Viajou para lá em busca de tratamento para uma doença que o acometia. Os familiares não sabem dizer a causa da morte de modo exato. Anos depois, os seus restos mortais foram transportados para Porto Alegre.
 

Os esquecidos simbolistas

O surgimento do simbolismo no Brasil foi marcado por conflitos políticos e sociais. O País se encontrava em plena transição do regime escravocrata para o assalariado. A virada do século XIX para o século XX traz expectativas por um "novo mundo", mas são muitas as frustrações e angústias por ainda não ter se atingido a consolidação dos ideais republicanos. O simbolismo, diferente do positivismo, acaba abordando um caráter mais universalista.
Segundo a pesquisadora Lívia Petry, na mesma época eclodiu o pré-modernismo e o modernismo no Brasil. "Os modernistas eram ateus, revolucionários na arte; eles queriam uma arte tipicamente brasileira e que ia contra todo esse modelo francês. E antes deles, os pré-modernistas também lutaram por uma ciência que fosse ligada a ciência, as descobertas científicas da época", explica.
Por exemplo, Os sertões, de Euclides da Cunha, foi lançado em 1902 e é considerado um dos marcos do pré-modernismo, revelando também a influência da ciência e da busca por uma identidade nacional na produção literária. "Então ele está no meio do caldeirão cultural fervilhante e que é absolutamente revolucionário. E aí isso acaba abafando a questão do simbolismo, daquela coisa mais divinal", afirma a pesquisadora. De acordo com Mansueto Bernardi, Eduardo Guimaraens circulava entre diferentes artistas. "Ele sentiu o apogeu do parnasianismo. Viveu a reação do simbolistas contra aquela escola e não hostilizou o ulterior advento do modernismo, aqui no Rio Grande do Sul propagado por Guilherme de Almeida", escreve ele.
 

A redescoberta em Portugal

Poeta gaúcho colaborou com a revista portuguesa Orfeu em 1915

Poeta gaúcho colaborou com a revista portuguesa Orfeu em 1915


ACERVO FAMILIAR/DIVULGAÇÃO/JC
Em 2016, Maria Etelvina e o marido foram visitar o filho na Europa, quando resolveram parar em Lisboa para conhecer a Casa Fernando Pessoa, que recebia a exposição Nós, os de Orpheu. "Entramos no elevador, uma vez que a mostra começava no último andar e fomos descendo. Quando olho para baixo na escada tem um grande painel e um retrato do meu avô", relembra, emocionada. Era dedicado a "Eduardo Guimaraens: o brasileiro esquecido".
A história descrita nas paredes dizia que, em 1913, o escritor português Luís de Montalvor, que integrava a equipe da Orpheu, chegou ao Rio de Janeiro e conheceu a revista Fon-Fon! (importante para os jovens intelectuais brasileiros da época) e conviveu com seus colaboradores, dentre os quais estava Eduardo Guimaraens. Em 1915, Luís de Montalvor escreve a Ronald de Carvalho, outro grande nome da poesia brasileira, pedindo que lhe envie poemas de brasileiros. Ronald responde: "Escreverei ao Eduardo para satisfazer o que me pedes". Esta correspondência deu origem à publicação de três poemas de Guimaraens na segunda edição de Orpheu. São eles: Sobre o cysne de Stéphane Mallarmé; Folhas mortas e Sob os teus olhos sem lágrimas.
A revista Orpheu foi um marco no modernismo português, lançada em 1915 por um grupo de rapazes de 20 e poucos anos, liderado por ninguém menos que Fernando Pessoa, e que mudou para sempre a paisagem cultural e literária do país europeu. O pesquisador português e doutor em literatura portuguesa do Centro da Faculdade de Letras de Lisboa Rui Sousa escreveu um artigo sobre os bastidores brasileiros na Orpheu. Mas o que fazia Eduardo Guimaraens, identificado como simbolista nas escolas literárias brasileiras, andando com modernistas? Sousa acredita que o poeta gaúcho se manteve bem mais simbolista. "Há uma atração profunda dele pela poesia simbolista francesa, um rigor com a musicalidade admirável, uma erudição que deve menos à ruptura vanguardista e mais a um modernismo perfeitamente ciente do diálogo produtivo entre tradição e novidade", relata Sousa. Mas em textos publicados em Fon-Fon! é possível observar outras características do poeta. "Eduardo revela também o desejo de uma voz inovadora, de um espírito de colaboração dos novos, de uma poesia plural e ligada à originalidade de cada poeta", complementa o português.
Aquele momento da descoberta (ou seria redescoberta?) do avô em Portugal impressionou tanto Etelvina que, de volta ao Brasil, ela começou a se dedicar com mais afinco no sentido de organizar o material. "Passei o ano de 2017 escaneando muito, organizando o material", informa a neta. Ela ainda publicou um texto sobre o acontecido em uma rede social, e que acabou chegando à curadora Ceres Storchi, que estava planejando a mostra Fernando Pessoa: Minha arte é ser eu, vista no Santander Cultural no fim de 2018. Foi incluída, então, uma memorabilia de Eduardo Guimaraens na exposição.
Para Rafael Guimaraens, a ausência de memória é um problema nacional e afeta todos os grandes escritores, músicos e artistas. "Sabemos mais sobre os militares do que sobre os nomes da nossa cultura. Em outros países, os grandes artistas são lembrados em reedições, em exposições, em festividades. Para voltarmos a falar de Eduardo Guimaraens foi preciso vir a Porto Alegre uma exposição sobre Fernando Pessoa", destaca ele.
Há uma forte disposição em valorizar a memória do avô pela família. Maria Etelvina conta que está organizando um site para disponibilizar vários materiais sobre Eduardo Guimaraens e criou um grupo da família, no qual são compartilhadas ideias sobre o acervo. "O objetivo do site é fazer uma biografia sem compromisso acadêmico, mas proporcionando que possa ser pesquisado, conhecido pelas pessoas", afirma. O site ainda não tem prazo para ser lançado, mas a família pretende fazê-lo ainda em 2019.
 

'A Divina Quimera': uma leitura musical

Doutora em Literatura e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, Ellen Guilhen estudou A Divina Quimeta em sua tese intitulada A organicidade musical de Divina Quimera (1916), de Eduardo Guimaraens, defendida em 2017. Conversamos com a pesquisadora, que realizou uma espécie de leitura musical sobre o livro.
JC - Quais são as principais características de A Divina Quimera?
Ellen Guilhen - Em primeiro lugar, é importante destacar que o livro não se apresenta como uma simples recolha de poemas. Há um poema de abertura, intitulado Prelúdio, seguido por cinco partes numeradas. A Parte IV recebe o subtítulo Sonata sentimental. A última parte é composta pelo poema Final. Ao mesmo tempo, essa sequência não produz uma narrativa com sentido inequívoco ou uma progressão temática; antes, observamos repetições, retomadas, mudanças bruscas de tom (da Parte I para Parte II, por exemplo). O livro proporia uma ordem diferente da que estamos acostumados. É uma ordem que remete à música, como se o livro devesse ser escutado como uma peça. Divina Quimera estaria, portanto, na intersecção entre uma ordem ainda concebível no século XIX e a fragmentação que marca o século XX, apresentando um pouco das duas características.
JC - Quais as influências de Eduardo Guimaraens e como elas aparecem em A Divina Quimera?
Ellen - Prefiro o termo "diálogos" a "influências". No senso comum, "influências" remete a uma concepção de literatura em que um ou mais mestres, em geral estrangeiros, são imitados por um iniciante. Não me parece ser o caso. Eduardo era um bibliófilo. Consultei listas de aquisições da Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul durante a administração de Vitor Silva (1906-1922) e de Eduardo (1922-1928) e observei que ambos solicitaram livros bastante raros de autores que lhes interessavam. Isso significa que, além das obras mais conhecidas, ele leu escritos de Mallarmé, Baudelaire, Dante, Poe, entre outros, difíceis de encontrar no Brasil. Conhecia profundamente a obra de cada um deles. O projeto de Divina Quimera é, na minha leitura, uma fusão muito peculiar de todas essas conversas. A estrutura macro, calcada na alternância de caráter das cinco partes, permite-nos aproximar Divina Quimera da forma musical fantasia, ao mesmo tempo em que "redivive" o projeto de Mallarmé de incorporar nas Letras a anatomia da música, elegendo o ritmo (e não a progressão lógica) como princípio organizador da coletânea. A ambivalência baudelaireana aparece por toda parte, inclusive no título: divina ilusão. De Dante destacaria as menções ao poder constrangedor do sublime, que aterroriza e eleva, algo presente na descrição do Paraíso da Divina Comédia. De Poe, a importância do artesanato rítmico e a metalinguagem. De Chopin a combinação beleza-tristeza numa mesma expressão artística (doçura nos indícios de morte). Só para citar alguns. A Parte II de Divina Quimera é justamente uma sequência de nove poemas dedicados aos mestres - Dante, Chopin, Baudelaire, Mallarmé, Poe, Shakespeare, São Francisco de Assis... - nos quais Eduardo desenha sua própria poética
JC - Qual é a contribuição de A Divina Quimera na literatura brasileira?
Ellen - Com apenas três edições pouco acessíveis (1916, 1944 e 1978), é difícil avaliar o impacto da obra em outras produções brasileiras. Mesmo assim, o livro, sempre que mencionado, é bastante elogiado pelos críticos pela musicalidade. Acredito que a obra de Eduardo Guimaraens teria uma ressonância maior se ele não tivesse morrido tão cedo, aos 36 anos.
 

Publicações de Eduardo Guimaraens

  • Caminho da Vida (poesias) Porto Alegre: Livraria Americana, 1908, 45 p.
  • A Divina Quimera (Divina Chimera) (poesias) 1ª ed. Rio de Janeiro: Oficina Tipográfica Apollo. - Vieira da Cunha & Cia, 1916, 107 p. Desenhos de Correia Dias.
  • A Divina Quimera. 2ª ed. Edição definitiva com prefácio de Mansueto Bernardi. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1944. 443 p.
  • A Divina Quimera. 3ª ed. Porto Alegre: EMMA/DAC, SEC, IEL, 1978, 93 p.
  • Dispersos (poesias reunidas). Organização de Maria Luiza Berwanger da Silva. Porto Alegre: Libretos, 2002. 148 p.
  • Poemas. Porto Alegre: Libretos, 2018. 88 p.
 

*Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação pela Ufrgs e editor-fundador do Coletivo de Jornalismo Cultural Nonada – Jornalismo Travessia