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Cultura

- Publicada em 17 de Junho de 2019 às 03:00

Adriana Calcanhotto encerra trilogia de álbuns em homenagem ao mar com 'Margem'

Novo disco da cantora compõe a trilogia inaugurada em 'Maritmo' (1998)

Novo disco da cantora compõe a trilogia inaugurada em 'Maritmo' (1998)


LEO AVERSAS/DIVULGAÇÃO/JC
Adriana Calcanhotto estava distraída quando brotou a voz da TV: "Essa obra de arte de Deus...". A fala a atraiu. Que obra de arte? Que Deus? Era um noticiário, e as palavras eram de um pescador, maravilhado com um cardume de sardinhas perto da costa, na Barra da Tijuca, bairro da capital fluminense. A cena é descrita em Ogunté, uma das canções centrais de Margem (Sony), novo disco da cantora e terceira parte da trilogia inaugurada em Maritmo (1998) e que continuou em Maré (2008).
Adriana Calcanhotto estava distraída quando brotou a voz da TV: "Essa obra de arte de Deus...". A fala a atraiu. Que obra de arte? Que Deus? Era um noticiário, e as palavras eram de um pescador, maravilhado com um cardume de sardinhas perto da costa, na Barra da Tijuca, bairro da capital fluminense. A cena é descrita em Ogunté, uma das canções centrais de Margem (Sony), novo disco da cantora e terceira parte da trilogia inaugurada em Maritmo (1998) e que continuou em Maré (2008).
O pescador que se maravilha com o peixe é um personagem da mitologia realista que Adriana cria na canção - e que se espalha pelo álbum. Um disco que procura dar conta não só das questões do mar contemporâneo - da poluição à geopolítica -, mas também da fluidez filosófica desse espaço de passagem, de limite, de não lugar (ou de entre-lugar) que é a margem.
"Aquilo puxou um fio de meada, dos oceanos como corredores por onde passam as civilizações: refugiados, crianças se afogando, pacotes luxuosíssimos de cruzeiros que jogam todo o lixo no mar, ilhas de plástico, caixas pretas no fundo, baleias, lágrimas negras do Atlântico, a história", explica Adriana.
O olhar histórico, cru, sujo, realista sobre o mar, Adriana defende, é quase inevitável: "O disco não é de contestação, mas de constatação. Esse é o mar hoje. Claro que dá para fazer vários recortes. Daria pra fazer a capa (que traz a cantora na água, em meio ao lixo de centenas de garrafas plásticas) numa ilha grega com mar turquesa. Mas pra mim ficaria difícil, você tem que tirar muita realidade".
Ela resiste, contudo, em definir sua percepção do mar como anticaymmica. "Primeiro porque o mar é o mar, ele mantém sua integridade tanto em Caymmi quanto agora", argumenta Adriana. "E o arquétipo do pescador de Caymmi também é de uma dureza enorme. Ele é um homem que nunca sabe se volta, num mar em que tudo vai e volta. Mas um pescador que se espanta com o peixe é, sim, muito mais violento."
O mar de Margem se define também por outro personagem, o surfista de O príncipe das marés. Na canção de Péricles Cavalcanti, o homem faz do mar sua terra, seu cavalo, seu céu, seu castelo. Assim como Os ilhéus (de Antonio Cicero e Zé Miguel Wisnik), ela foi prevista para estar em Maré. Mas na época, insatisfeita com as soluções dadas às músicas, Adriana acabou guardando-as. Sabendo e sem saber, ela já articulava Margem, gravado ao longo do último ano com Bem Gil, Bruno Di Lullo e Rafael Rocha.
A margem de Adriana é a que define as fronteiras da identidade (na canção-título, em Tua). Ou a que determina o fim de ciclos para o começo de outros, das civilizações (Os ilhéus) aos amores (Dessa vez, Era pra ser). Ou mesmo ser aquela que não pode ser capturada por palavras (Lá lá lá). Ou ser , simplesmente, o movimento (Meu bonde, funk 150 bpm, subgênero em voga do batidão).
Margem abre o disco com um arranjo elegante de gafieira moderna, sopros e percussão, num clima de orquestra imperial que aparece de vez em quando ao longo do disco. As canções tristonhas de violão - na onda de Devolva-me, versão de Leno e Lílian que até hoje é uma das mais ouvidas da cantora gaúcha - são outra face visível no disco.
A poesia de Adriana, aliás, sempre um de seus ativos mais valiosos, se mostra, mais uma vez, inspirada, com momentos geniais como o início de Dessa vez e suas proparoxítonas - "vírgulas", "metáforas", "vísceras" etc. -, com as quais o jovem Chico Buarque de Construção ficaria orgulhoso.
Uma terceira margem do rio é a Adriana Calcanhotto caetânica, moderna, do afoxé com batida de MPC (a bateria eletrônica básica do funk raiz) Lá lá lá - uma das melhores do disco - e de Ogunté e Meu bonde, cujos arranjos simples e criativos dão destaque a versos sérios e sofisticados: "Já não há Aleppo, já não há Palmira/ E perfuram-te as entranhas atrás de óleo negro", diz a primeira, que acaba em um melancólico canto de sereia.
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