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reportagem cultural

- Publicada em 28 de Março de 2019 às 21:35

Tido por louco na Porto Alegre do século XIX, Qorpo-Santo tem obra para o teatro reconhecida

Extensão universitária produzirá jogo digital sobre obra do dramaturgo Qorpo Santo
Legenda original: Obra do dramaturgo ganhou reconhecimento apenas na década de 1960, cem anos após ser publicada

Extensão universitária produzirá jogo digital sobre obra do dramaturgo Qorpo Santo Legenda original: Obra do dramaturgo ganhou reconhecimento apenas na década de 1960, cem anos após ser publicada


ARTE DE EDER SANTOS/DIVULGAÇÃO/JC
Na segunda metade do século XIX, circulava pela cidade de Porto Alegre um tipo curioso. José Joaquim Campos de Leão era o seu nome, mas ganhou notoriedade com a alcunha que ele próprio criou: Qorpo-Santo. Tornou-se, assim, um dos melhores exemplos de autores cuja vida se mistura com a produção literária. Uma história envolta em mistério muito devido a um diagnóstico de monomania, que o levou a ser marginalizado pela sociedade e pela intelectualidade literária da época.
Na segunda metade do século XIX, circulava pela cidade de Porto Alegre um tipo curioso. José Joaquim Campos de Leão era o seu nome, mas ganhou notoriedade com a alcunha que ele próprio criou: Qorpo-Santo. Tornou-se, assim, um dos melhores exemplos de autores cuja vida se mistura com a produção literária. Uma história envolta em mistério muito devido a um diagnóstico de monomania, que o levou a ser marginalizado pela sociedade e pela intelectualidade literária da época.
Não que sua produção compartilhasse dos mesmos ares românticos em vigor, ao contrário, parecia apontar novos caminhos. O tempo acabou o encontrando somente no século seguinte, na década de 1960, quando descobriram a importância do seu trabalho. E não foi qualquer descoberta: Yan Michelski, na época o maior crítico de teatro brasileiro, escreveu que Qorpo-Santo seria o precursor mundial do Teatro do Absurdo. E foi além: disse que a história do teatro brasileiro escrita até então se encontrava obsoleta por não incluir Qorpo-Santo.
Mas é interessante deixar o próprio Qorpo-Santo se apresentar. Na Ensiqlopédia, ou seis mezes de huma enfermidade (uma espécie de coletânea de suas obras publicadas pelo próprio em 1877), ele redige uma autobiografia, dando detalhes da sua vida. Teria nascido em 1829 na então Vila do Triunfo, província de São Pedro do Rio Grande. Depois que o seu pai morreu, em 1839, foi estudar gramática nacional em Porto Alegre. Acabou se dedicando por alguns anos ao comércio.
Já no ano de 1857, por motivos de saúde da família, Qorpo-Santo se desloca para Alegrete, fundando o Colégio Alegretense. Conta-se que era figura respeitada na cidade, onde, além de professor, exercia a função de jornalista e comerciante. Em 1861, volta a Porto Alegre para lecionar e dá início à sua Ensiqlopédia.
Ao mesmo tempo, é quando começa a se manifestar os primeiros sintomas dos distúrbios psicológicos que mudaram completamente a sua vida. Durante 1862 e 1864, tem início o processo judicial de interdição por doença mental, e o artista é suspenso do cargo de professor. As causas e o desenvolvimento dessas perturbações são um capítulo obscuro na sua biografia, e essa situação o perseguiria pela vida inteira. Há uma lenda - conforme escreve o pesquisador Flávio Aguiar no livro Os homens precários - segundo a qual Qorpo-Santo teria sido espancado na cabeça por dois delinquentes e que isso teria ocasionado sua doença. Durante esse processo, produziu a maioria das suas peças entre janeiro e junho de 1866.
Em 1868, o Juiz de Órfãos e Ausentes de Porto Alegre, Augusto César de Pádua Fleury, decide enviá-lo para o Rio de Janeiro, a fim de submetê-lo a exame médico. Ele foi avaliado na Casa de Saúde Doutor Eiras, onde lhe deram o atestado oficial dizendo que apresentava, por vezes, uma atividade mental excitada, mas era a única irregularidade que observavam.
De volta a Porto Alegre, porém, o juiz local determina nova avaliação, na qual Qorpo-Santo recusa-se a comparecer duas vezes. Então, é declarado incapaz de gerir "sua pessoa, seus bens e sua família". Nesse mesmo ano, edita o jornal A Justiça, em que é o proprietário e único redator. Utiliza o periódico para publicar poemas, artigos e se defender da acusação de louco que lhe faziam. "Porto Alegre, na época, tinha 14 mil habitantes. O autocentramento e o provincianismo eram dominantes. Ele era o ex-cêntrico - para usarmos o sintagma da Linda Hutcheon -, o que devia ser excluído da comunidade dos cidadãos de bem", diz o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que utilizou Qorpo-Santo como personagem em seu aclamado romance Cães da província, de 1987.
Ele também lembra, entretanto, que Qorpo-Santo tinha fortíssimos traços megalomaníacos e paranoicos. "Além disso, era misógino em alto grau: o nome Qorpo-Santo, e é ele quem expressamente o diz, adotou num período da vida em que decidiu afastar-se por completo das mulheres, expulsando de casa a esposa e as filhas", completa.
Em 1877, Qorpo-Santo abre uma tipografia na rua General Câmara com o objetivo de "imprimir as obras de sua autoria". Nesse momento, edita os volumes de sua já citada Ensiqlopédia, ou seis mezes de huma enfermidade, obra que reúne poemas, confissões, receitas culinárias e suas 17 peças teatrais.
A grafia ensiqlopédia surge de uma reforma ortográfica proposta pelo autor e defendida em artigo no jornal A Justiça em 23 de outubro de 1868. É daí que também surge a grafia para o seu famoso nome literário. Lendas e apelidos à parte, Qorpo-Santo recebeu o devido reconhecimento de sua obra quase 100 anos após a publicação das mesmas, na década de 1960. Muito do seu trabalho tem sido motivo de pesquisa acadêmica e encontra nos palcos o local certo para sua reverência.

No século XX, a consagração da obra

Luís Francisco Wasilewski estudou as primeiras montagens da obra de Qorpo-Santo

Luís Francisco Wasilewski estudou as primeiras montagens da obra de Qorpo-Santo


MARCO QUINTANA/JC
Da mesma forma que, no século XIX, as peculiaridades de Qorpo-Santo agitaram a provinciana Porto Alegre, no século XX a sua obra, finalmente, começava a fervilhar nos meios literários da cidade. Sabe-se que foi ignorado e até motivo de chacota pelos escritores e intelectuais da época, mas não é verdade que desde a sua morte, em 1883, até quando seu trabalho foi finalmente encenado, em 1966, fora esquecido.
Há registros de autores como Múcio Teixeira, um dos fundadores do Partenon Literário, que recordou em crônica do "maluco" Qorpo-Santo para declarar, ainda que de forma jocosa, que "futuristas e modernistas não tinham inventado nada, pois a eliminação da rima, da metrificação e da gramática, além do bom senso, na poesia, já tinha sido praticada por Qorpo-Santo anos antes".
Já Athos Damasceno, um dos mais importantes historiadores da Capital, relata no livro Imagens sentimentais de Porto Alegre, de 1940, Qorpo-Santo como o "primeiro suprarealista, o precursor da grande revolução poética brasileira, uma espécie de Tiradentes do movimento modernista do País". Nesse momento, entretanto, seu conhecimento fica perpetuado principalmente por meio da oralidade, pois se acreditava que os textos, os fascículos da sua Ensiqlopèdia estariam perdidos.
Tudo começa a mudar quando dois nomes entram em cena: Aníbal Damasceno, professor, jornalista e cineasta, e Guilhermino César, professor e intelectual das Letras e da História.
Segundo informações da pesquisadora Maria Clara Gonçalves, em tese defendida na Unicamp em 2017, o jornalista Damasceno interessa-se por Qorpo-Santo ao ter contato com sua poesia ainda na juventude, ao ler um poema do autor publicado pelo seu tio, Athos Damasceno. Atraído pelos versos, ele inicia um processo de investigação acerca de sua produção literária.
O professor Luís Augusto Fischer foi um amigo próximo de Aníbal Damasceno e relata que ele dizia ter "gostado da singularidade do autor; não achava que era um gênio, e tinha boas razões para saber que ele tinha sido um maluco na vida real; mas o texto era interessante. Isso o levou a fazer a divulgação da sua obra".
No início dos anos 1960, Aníbal encontra na casa do advogado Dário Bittencourt dois volumes da Ensiqlopédia. Ao revelar esses livros a seu amigo Sena, nessa época, aluno do curso de Artes Dramáticas e que mais tarde seria o diretor responsável por dirigir a primeira montagem da obra do autor, descobriu-se que Qorpo-Santo havia produzido teatro. Nesse momento, houve também apoio e interesse de Fausto Fuser, professor na recém-criada escola de Artes Dramáticas da Ufrgs.
Aníbal, animado com sua descoberta, empresta os livros a Guilhermino César que, logo depois, viaja a Portugal para dar aula na Universidade de Coimbra sem devolvê-los. A procura por Guilhermino se justifica por ele ser um dos intelectuais mais respeitados da época, autor de História da literatura do Rio Grande do Sul (1737-1902).
Sena, Fausto e Aníbal recuperaram os livros com o filho de Guilhermino e escolheram as três peças para uma tentativa de encenação e as mimeografaram.
Ainda segundo a pesquisa de Maria Clara Gonçalves, o diretor do curso de Artes Dramáticas, quando soube que os livros haviam sido tirados daquela forma da casa de Guilhermino César, sem que ele estivesse presente, não permitiu a encenação e mandou devolvê-los.
Fausto acabou voltando para São Paulo. "Aníbal não desistiu e continuou sua propaganda, aproveitando uma onda da época, o chamado Teatro do Absurdo, que tinha prestígio de coisa muito nova. Começaram a dizer que o Qorpo-Santo era um precursor; o Aníbal me contava que não acreditava nisso, mas concluiu que isso beneficiaria sua divulgação", explica Fischer.
O pesquisador Luís Francisco Wasilewski estudou justamente as primeiras encenações da obra de Qorpo-Santo que ocorreram em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, nos anos de 1966 e 1968. Wasilewski conta que a amizade entre Aníbal e Sena foi importante para esse processo, assim como o movimento do Teatro do Absurdo. "O Sena me contou em entrevista que eles leram a peça Mateus e Mateusa, de Qorpo-Santo, e acharam o enredo muito semelhante com o de As cadeiras, de Eugène Ionesco", diz.

Anos 1960: as primeiras peças chegam aos palcos

 Ivo Bender como Qorpo-Santo no palco, em 1968

Ivo Bender como Qorpo-Santo no palco, em 1968


DELMAR MANCUSO/DIVULGAÇÃO/JC
A obra de Qorpo-Santo sobe ao palco somente no dia 26 de agosto de 1966. Uma encenação que reunia as comédias As relações naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou vida; eu não sou morte. A peça, dirigida por Antônio Carlos Sena, tinha no elenco José Gonçalves, Milla Cibelli, Aparecida Dutra, Marcos Schames, Vaniá Brown e Marcos Wainberg. A trilha sonora foi especialmente composta por Flávio Oliveira.
"A montagem ocorreu no Clube de Cultura e pretendia ser uma temporada de apenas cinco dias, mas o grande sucesso a levou para o Teatro Álvaro Moreira (na rua Gen. Vitorino), que outrora era o Teatro de Equipe", explica Luís Francisco Wasilewski. Começara, então a vida pública de Qorpo-Santo, exatamente 100 anos após ele escrever as primeiras peças.
Com o êxito em Porto Alegre, o grupo recebeu um convite para participar do Festival do Teatro do Estudante de Paschoal Carlos Magno, no Rio de Janeiro em 1968. Com mudanças no elenco, o grupo vai para o Rio em maio de 1968. Na segunda montagem, o diferencial é que, além da encenação dos textos de Qorpo-Santo, havia uma reconstituição de como teria sido a sua vida na Porto Alegre do século XIX.
"Ivo Bender interpretava Qorpo-Santo. E o Sena era um dos diretores da peça, que se chamava Ensiqlopèdia ou seis mezes de huma enfermidade. Os outros diretores, além de Sena nessa segunda montagem, eram Delmar Mancuso e Cláudio Heemann. Araci Esteves e Ida Celina também atuaram", afirma Wasilewski.
É nesse momento que Yan Michalski assiste à peça e escreve que Qorpo-Santo seria o precursor mundial do Teatro do Absurdo. Há, ainda, algumas disputas sobre quem seria o verdadeiro responsável pelo descobrimento da obra de Qorpo-Santo, suscitado por acusações de apropriação por parte de Guilhermino César, que escreve o primeiro grande estudo biográfico e crítico sobre a obra integral do autor, relegando uma "nota de rodapé" para o papel de Aníbal Damasceno.
Esse tema aparece de forma recorrente na maioria das pesquisas que se debruçaram sobre Qorpo-Santo, ora uns apoiando e trazendo à tona o papel de Damasceno, outros abordando os estudos de Guilhermino, que de fato demorou a reconhecer o valor da obra. Para Assis Brasil, a demora se deu "porque era novidade num meio culturalmente conservador. E por que houve a natural preguiça em saber o que era aquilo. Melhor ignorá-lo".
Para Fischer, a obra de Qorpo-Santo ainda não é conhecida o suficiente. "Isso é uma vergonha para nós que sequer providenciamos uma edição da obra completa dele até hoje", afirma.

Hoje: grupos locais valorizam o autor

Espetáculo Miscelanea qurioza será encenado em abril, no Centro da Capital

Espetáculo Miscelanea qurioza será encenado em abril, no Centro da Capital


JÉSSICA BARBOSA/DIVULGAÇÃO/JC
As peças e a trajetória de Qorpo-Santo seguem mais vivas do que nunca. Sempre encenado ao longo dos anos, atualmente coletivos como o Ubanda Grupo e o Santo Qoletivo atualizam e trazem novas perspectivas e leituras para o texto do autor.
O Ubando Grupo surge em 2012, com o objetivo de iniciar uma pesquisa sobre o Teatro Físico, com ênfase na linguagem corporal, bem como, com o anseio de explorar possibilidades narrativas. Aline Ferraz e Renan Leandro, formados na Terreira da Tribo, encontraram na escrita de Qorpo-Santo o estímulo para desenvolver seu projeto artístico-pedagógico.
Já o Santo Qoletivo foi criado a partir de uma pesquisa com orientação da professora e diretora teatral Ines Marocco em parceria com a pró-reitoria de extensão da Ufrgs. Eles viveram um processo de imersão desde 2013, com seminários que tiveram convidados o já citado Sena, que dirigiu o primeiro espetáculo sobre Qorpo-Santo, e Luiz Antonio de Assis Brasil, entre outros.
No ano de 2016, os dois coletivos iniciaram uma parceria no Projeto de Extensão Para percorrer Qorpo-Santo, do Departamento de Arte Dramática da Ufrgs. Esse encontro resultou na montagem Santo Qorpo ou O louco da província, e na pesquisa e construção do cortejo-espetáculo Miscelanea Qurioza, uma criação coletiva.
Um desafio para encenar as obras de Qorpo-Santo é colocar em cena o texto do autor. Apesar de rico, o material pode impor dificuldades visuais: em uma das várias rubricas que acompanham os textos há uma bem conhecida, a da "iluminação de mil luzes", por exemplo. "Sua narrativa não linear, ora ilógica, ora irracional, o ambiente caótico e as características extracotidianas de sua verve literária emanam variadas referências estéticas tornando-se, dessa maneira, um terreno fértil de investigação ao processo criativo do ator", afirma o Coletivo Ubando.
O fato de as obras nunca terem sido encenadas enquanto o dramaturgo era vivo é lembrado pelo Coletivo Santo Qorpo. "Muitas foram escritas durante os meses em que Qorpo-Santo ficou internado e tentava, ao mesmo tempo, provar sua sanidade. Utilizamos partes de várias peças e, além disso, queríamos juntar a obra escrita com a viagem biográfica. A vida e as injustiças que sofreu são chocantes e queríamos dialogar sobre isso", afirmam.
Perguntados sobre a influência entre os pesquisadores e grupos de teatro pela obra de Qorpo-Santo, ambos os coletivos concordam que o autor está à margem da historiografia. "Acreditamos que o trabalho de Qorpo-Santo ainda possui pouca influência entre os pesquisadores e grupos de teatro na cidade, sofrendo ressalvas quando se pensa em um novo projeto ou mesmo pesquisa. Pelo País existem algumas montagens espalhadas por estados, como Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Amazonas", aponta o Coletivo Ubanda.
Por sua vez, o Santo Qorpo afirma que o autor gaúcho não tem o destaque que merece, "mas sim o lugar que esse mundo torto reservou para ele, o de marginalizado até hoje". O roteiro-espetáculo pelas ruas do Centro Histórico chamado Miscelânea Qurioza irá acontecer nos dias 11, 12 e 13 de abril, às 16h, tendo como ponto de encontro a Praça da Matriz.
O ano de 2019 guarda outras homenagens ao dramaturgo, com a 1ª Bienal de Dramaturgia Qorpo-Santo, no Theatro Municipal União, em Triunfo. Em junho, deve ocorrer na cidade um workshop e um seminário sobre dramaturgia.

A despedida

Qorpo-Santo morre em maio de 1883, aos 54 anos de idade, de tuberculose pulmonar, deixando como herdeiros mulher e quatro filhos. Seu inventário mostra que possuía uma fortuna razoável em bens imóveis para a época. Nesse momento, homens ilustres de Porto Alegre que foram seus alunos o acompanharam até o cemitério. Há uma crônica de Aquiles Porto-Alegre, jornalista e historiador e que viveu na mesma época que Qorpo-Santo, no livro Através do passado, que sintetiza:
"Chamava-se José Joaquim Leão do Qorpo-Santo. Era alto, magro, moreno, de uma palidez de morte. Usava cabeleira comprida como os velhos artistas da Renascença. Trajava calça brancas sobrecasaca preta, toda abotoada como uma farda, bengala grossa para afugentar os cães e chapéu de seda lustroso. Andava sempre apressado, como se fosse tirar o pai da forca. Fora muitos anos mestre-escola, mas com certo preparo não vulgar, que o punha em destaque. Quando a luz da razão apagou no seu cérebro, tornou-se, então, taciturno, fugindo da convivência dos mais."
 

'Qorpo-Santo tem lugar único na literatura brasileira'

A pesquisadora Denise Espírito-Santo se debruçou sobre uma das partes pouco exploradas da obra do autor gaúcho: os poemas. Denise descobriu um dos volumes até então perdidos, justamente o que continha 537 poemas escritos por Qorpo-Santo. Foram 10 meses vasculhando sebos e bibliotecas particulares de Porto Alegre até encontrar a raridade.
JC Viver - Como foi a descoberta dos poemas do Qorpo-Santo?
Denise Espírito-Santo - Essa pesquisa iniciou em meados de 1992, quando eu fazia mestrado na Faculdade de Letras da Ufrgs. Tinha notícias através de alguns pesquisadores e do meu orientador, Edwaldo Machado Cafezeiro, de que o Qorpo-Santo teria muita coisa ainda a ser conhecida da sua. Então decidi empreender uma busca pelos volumes esquecidos da Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade, que foram impressos pelo autor em sua tipografia particular no ano de 1877 aproximadamente. Depois de muitas buscas, cheguei ao colecionador Julio Petersen, que possuía em sua casa em Porto Alegre, senão me engano, dois volumes raros da Ensiqlopédia. Outros volumes acessei nos acervos de instituições públicas, tais como o Instituto Histórico e Geográfico de Porto Alegre. E, passo a passo, fui conhecendo algumas figuras muito importantes para a minha pesquisa, como o professor Aníbal Damasceno. Pude então me dedicar a estudar a obra poética de Qorpo-Santo. Naquela época totalmente desconhecida do público, mesmo dos que já tinham conhecimento do teatro qorpo-santense. A pesquisa ficou pronta, eu defendi a dissertação e, em seguida, o trabalho ganhou algumas matérias de jornais importantes, como O Globo, a Folha de S.Paulo e Estadão, além de revistas da época. Foi quando eu me dei conta de que para publicar o material teria que empreender uma jornada junto às editoras, e foi isso que fiz.
Viver - Quais eram as principais características desses poemas?
Denise - Os poemas são diversos, abordam desde questões cotidianas com um toque de humor e nonsense, até questões históricas, como as guerras ocorridas no Sul do Brasil e suas sequelas para aquela população indefesa. Também estão ali temas autobiográficos, um dos quais o processo de interdição judicial pela acusação de loucura. Mas os poemas do Qorpo-Santo revelam nos aspectos formais, temáticos, uma espantosa originalidade em relação ao cânone romântico, daí serem uma descoberta muito interessante.
Viver - Para você, qual o grande legado de Qorpo-Santo?
Denise - Acredito que ele tem uma importância única na história literária brasileira, em especial, no romantismo, pois foge completamente aos cânones da época. Muito em razão da sua história pessoal, Qorpo-Santo sofreu ao longo da sua vida um processo de interdição por loucura, que o levou a uma ruína emocional e física, mas o que mais nos surpreende é como um homem que foi injustamente diagnosticado como louco, privado dos seus bens e do convívio com a sua família, conseguiu imprimir os nove volumes de sua obra principal. Acho essa história muito forte e muito linda.

Assinatura

Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação pela Ufrgs e editor-fundador do Coletivo de Jornalismo Cultural Nonada-Jornalismo Travessia