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reportagem cultural

- Publicada em 07 de Março de 2019 às 22:21

As histórias de Bataclan, personagem popular de Porto Alegre

Cândido José dos Santos é Bataclan, propagandista de rua que marcou época na Capital

Cândido José dos Santos é Bataclan, propagandista de rua que marcou época na Capital


/ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Em cinco décadas de peripécias, Cândido José dos Santos (1941–1990) garantiu, com o seu alter-ego “Bataclan”, o status de maior personagem popular da história de Porto Alegre. Contemporâneo de Marimbondo, Maria Chorona, Homem dos Cachos, Terezinha Morango, Arlindo Alfaiate, Gurizada Medonha e outros tipos folclóricos eternizados na memória afetiva da capital gaúcha, o propagandista de rua também combinou simplicidade com elegância ao fazer do estilo de vida saudável e das campanhas beneficentes uma pauta constante. A sua grande façanha, porém, foi ter sido levado a sério pela cidade que adotou.
Em cinco décadas de peripécias, Cândido José dos Santos (1941–1990) garantiu, com o seu alter-ego “Bataclan”, o status de maior personagem popular da história de Porto Alegre. Contemporâneo de Marimbondo, Maria Chorona, Homem dos Cachos, Terezinha Morango, Arlindo Alfaiate, Gurizada Medonha e outros tipos folclóricos eternizados na memória afetiva da capital gaúcha, o propagandista de rua também combinou simplicidade com elegância ao fazer do estilo de vida saudável e das campanhas beneficentes uma pauta constante. A sua grande façanha, porém, foi ter sido levado a sério pela cidade que adotou.
Imagine a cena. A unha encravada respira o ar da primavera, no dedão que se revela pelo recorte à tesoura no tênis Conga tão humilde quanto o seu recheio. Repetindo uma prática diária, o "Atlas de Ébano" prepara mais uma demonstração de saúde. O alvoroço na Praça da Alfândega acontece sob os olhares de dezenas de curiosos, incluindo o médico norte-americano Kenneth Cooper, inventor do famoso método de avaliação física que leva o seu sobrenome.
Inimigo do álcool e da carne vermelha, kriptonytas de um Super-Homem sem cabine de telefone ou rapidez sônica para a troca de identidade, o elegante propagandista de rua retira a muda de roupas de uma sacola no banco de madeira em frente ao Clube do Comércio. Agora na persona do atleta simplório, Cândido oferece ação, fotogenia e declarações impagáveis às câmeras e aos microfones.
Breve alongamento, pula-corda, saudação ao Sol, um rápido discurso sobre longevidade e está tudo pronto para que o velho moleque cumpra a sua promessa: seis voltas em torno da praça, correndo os exatos 2,4 mil metros do teste de avaliação criado pelo fisiologista texano. "Nunca vi tamanho vigor!", espanta-se o gringo, que se une ao corredor-polonês na Rua da Praia. Alguém deu a largada! Lá vai o velho Bataclan...
Ocorrido às 11h de segunda-feira, 8 de setembro de 1975, esse episódio pode ter surpreendido mister Cooper, destaque de um seminário na Pucrs e que havia sido convidado a presenciar a homenagem, após um encontro com o vice-governador Amaral de Souza no Palácio Piratini. Já para os demais, apenas a nova proeza de sua mais querida figura popular desde 1941, quando se tornara um dos então 272 mil habitantes de Porto Alegre.
Naquele ano, o forasteiro negro e eloquente chegou causando furor, incensado pela imprensa com os melhores adjetivos, diferente do que ocorrera durante a sua primeira e despercebida passagem pela região, com um grupo teatral, em 1923. À custa de muito trabalho, elegância, ecletismo e um tremendo senso de autopromoção, logo caiu nas graças de jornais como Folha da Tarde, Última Hora e Diário de Notícias.
Até a exigente Revista do Globo tratou com reverência - mais de uma vez - o sujeito cujo sustento provinha do anúncio verbal e performático dos mais variados itens: sapato, perfume, sabão, abacaxi em calda, café, pomada, colchão, pasta de dente, chocolate, água mineral, confeitaria, cinema. Sobrava até uma "licença poética" para as qualidades de cigarros, charutos, conhaques e vermutes, contrariando uma filosofia de vida saudável que se tornaria uma de suas facetas mais notórias.
O figurino também não decepcionava: geralmente embrulhado em uma combinação de terno branco, cravo vermelho na lapela, sapato bicolor e chapéu panamá, o corpo atlético com mais de 1m80cm também recebia indumentárias de mágico, pirata, marroquino, baiana, malandro, arlequim, borboleta, dândi, anjo, rei, melancia e Papai Noel.
"Em troca de um refrigerante, eu e um irmão fomos cobaias de alguns reclames em plena Rua da Praia", relembra o motorista aposentado João Abraão, 66 anos, um dos três remanescentes dos oito filhos de três casamentos de Cândido. "A gente deitou de pijama em um colchão de molas Aladdin, diante do antigo Café Rian, enquanto ele 'vendia o peixe' para o povo aglomerado ali em volta."

De herói a ator, saborosas histórias do genial Bataclan

Mesmo parentes próximos desconhecem detalhes do propagandista, nascido em Santa Catarina

Mesmo parentes próximos desconhecem detalhes do propagandista, nascido em Santa Catarina


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
As reminiscências de Bataclan podiam soar eventualmente contraditórias e ou inverossímeis, mas eram tão convictas, detalhadas e saborosas que ele parecia crer nas próprias atochadas, tal como se fosse uma espécie de versão afrobrasileira do Barão de Münchausen (1720-1797), militar germânico celebrizado em livros e filmes por suas memórias que mesclavam realidade e fantasia em doses cavalares.
Megalomania, talvez. Mas dava gosto de ler ou ouvir sobre um passado glorioso: filho de um herói da Guerra do Paraguai, neto de escravizados da Guiana Francesa, ator em companhias de teatro ligeiro, grumete da Marinha, trombonista de orquestra, camelô, jornaleiro, cabaretier e choffeur no Rio de Janeiro, jogador do Flamengo, sapateador de Pixinguinha.
Some-se a esse inventário longas temporadas em Nova Iorque, Barcelona, Roma, Berlim, Xangai, Cairo, Maputo, Paris. A troca do apelido artístico "Moleque Dodô" por "Bataclan", aliás, teria sido uma homenagem à famosa casa de espetáculos fundada em 1865 na capital francesa - e que, por sua vez, tomara emprestado o título Ba-Ta-Clan de uma opereta composta 10 anos antes por Jacques Offenbach.
E quem seria desmancha-prazeres o suficiente para fazer pouco caso de uma saga repleta de pormenores sobre o povo asiático, ruas da Espanha, óperas italianas e poemas em francês? "Ele costumava me saudar em alemão com um animado Hallo! Wie gehts? ["Olá, como vai?"] e se despedir com Auf wiedersehen ["Até logo"] sempre que batíamos um papo no Centro", rememorou o historiador e livreiro Leandro Telles (1929-2017) em depoimento a este jornalista, 10 anos atrás.
Com base em pistas fornecidas por parentes, o pouco que se sabe de sua fase pré-1941 indica o nascimento e infância em Florianópolis (SC) no dia 8 de abril de 1914, irmão de Valdemar e Flordovina, todos filhos da lavadeira Demetildes com o ex-militar Luiz. Mesmo os parentes mais próximos desconhecem os detalhes da vida pregressa de Bataclan.
"Nunca vimos qualquer documento de papai, exceto a certidão de óbito, que também não explica muita coisa", lamentam a vendedora de cosméticos aposentada Maria Carmen, 77 anos, e a manicure Maria Beatriz, 76. "O Cândido era dado a aumentar as coisas", entrega a dona de casa Zélia Santos, 90 anos, ao traçar um breve perfil do primo, com quem chegou a morar em Florianópolis e Curitiba (PR).

'Não comemos cadáveres!'

Adepto do estilo de vida saudável, Bataclan também pregava o vegetarianismo

Adepto do estilo de vida saudável, Bataclan também pregava o vegetarianismo


ACERVO MARCELLO CAMPOS/DIVULGAÇÃO/JC
Em uma Porto Alegre na qual as churrascarias já faziam parte do cenário, muita gente deve ter torcido o nariz quando Bataclan incorporou ao seu discurso a defesa do vegetarianismo, no começo da década de 1950. "Não comemos cadáveres!", bradava o intrépido marqueteiro, ao fazer da ginástica e dos hábitos frugais uma bandeira constante de suas campanhas, várias delas focadas na caridade. Surgia um personagem três em um: propagandista, atleta e bem-feitor.
Inspirado em leituras franciscanas, ele abriu espaço na agenda para a prática da corrida de rua e demonstrações de exuberância física. Embora haja testemunhos sobre algum bife sorrateiro (publicamente, ele só admitia o consumo esporádico de peixe), ficaria impressa no imaginário local também a sua versão "Atlas de Ébano", de calção, regata e pés nus, em contraste com a elegância vespertina. "As criaturas são divinas e o homem não possui dentes caninos, então não deve comer carne", repetia. Ateu, Cândido fazia da relação homem-natureza a sua fé, o que incluía "banhos de orvalho", rolando apenas de bermuda na grama ainda úmida pela madrugada: "O homem fica com medo, por excelência, de doenças, velhice e morte. Eu superei as três".
Essas e outras pérolas filosóficas também constavam em folhetos datilografados nos kits de ações beneficentes. Em troca de um valor para uma causa nobre, os colaboradores recebiam uma colher plástica ou outro mimo simbólico. "Com o transcorrer do tempo empreendido no regime miraculoso que é o vegetarianismo, forma-se o elo indissolúvel para a saúde de ferro e uma personalidade fora do comum", enaltecia em um desses libelos.

Lupi e Érico entre os fãs do propagandista

Lupicínio Rodrigues guardava uma foto com dedicatória do propagandista

Lupicínio Rodrigues guardava uma foto com dedicatória do propagandista


ABR/DIVULGAÇÃO/JC
Dentre os admiradores do propagandista estão expoentes da cultura no Rio Grande do Sul. O artista plástico Joseph Lutzenberger (1882-1951) o retratou em uma aquarela de 1947, anunciando calçados. Exatos 30 anos depois, o fotógrafo Leonid Streliaev o incluiria entre as 37 personalidades porto-alegrenses clicadas para a exposição Caras & Coroas. O compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974), por sua vez, guardava uma foto com dedicatória.
Outro desses fãs era o escritor Erico Verissimo (1905-1975), apreço confirmado pelo filho Luis Fernando, 82 anos. Ele guarda uma recordação especial do Natal de 1942, quando Erico e a esposa, Mafalda, cumpriram a promessa de levar Papai Noel em pessoa para a noite da véspera na recém-adquirida casa da família na rua Felipe de Oliveira, bairro Petrópolis.
Apesar de mais alto que o imaginado, o Bom Velhinho estava dentro do script: roupa vermelha, barba branca, bochechas rosadas, barrigão, botas, luvas brancas, saco de presentes. Eis que, momentos depois, a surpresa: "Ao ir para o quarto, abraçado à minha bola de futebol novinha em folha, passei pela cozinha e o vi sentado à mesa, já sem máscara e traçando uns comes e bebes. Era o Bataclan!".
E o que dizer do advogado e procurador fiscal aposentado Ernani Machado, 90 anos? Ligado ao movimento negro, ele fez de Cândido um amigo e inspirador: "Ele andava de cabeça erguida!". Seu contemporâneo Getúlio Marcantônio (1930-2010), quatro vezes deputado estadual, divertia-se em contar como foi poupado do trote dos "bixos" da Faculdade de Direito, em 1952, simplesmente por estar fantasiado de Bataclan.
Na casa de Cândido (foram diversos endereços), entretanto, eram outros quinhentos, conforme revela o filho João Abraão: "Nossa infância foi dureza. O pai viajava muito e chegou a ficar sete anos fora da cidade. Não fosse a ajuda de uma família de amigos, não sei o que seria de mim, já órfão de mãe. E quando estava por perto, era enérgico, às vezes cruel. Imagine aquele homem forte castigando a gente com a corda de pular...".

A maratona final

Ex-propagandista recebeu pensão vitalícia do Estado até morrer em 1990

Ex-propagandista recebeu pensão vitalícia do Estado até morrer em 1990


ARQUIVO/JC
Em mais de seis décadas de estripulias pela cidade, teria sido mais fácil topar com Bataclan em churrascarias do que consultórios. Mas o tempo é implacável e costuma apresentar a conta, ainda que tardiamente. A regra também se aplica a um herói que, já de cabelo branco, comemorava os seus aniversários na Praça da Alfândega com performances, presentes para os engraxates e votos de juventude perpétua.
Vangloriando-se por não saber o que era uma internação (mentirinha, já que em 1966 ele amargara uma longa baixa por estafa, no Hospital das Clínicas de São Paulo, após "forçar a máquina" nas piruetas durante um intervalo de jogo no estádio do Pacaembu), Cândido ressurgiu no noticiário porto-alegrense em outubro de 1983, de volta aos flashes. Só que, desta vez, era ele quem precisava de auxílio.
Morando em um hotel no Centro e sem qualquer dinheiro guardado ou cobertura previdenciária, ele dera entrada como indigente na Santa Casa de Misericórdia, devido a problemas urinários. "Eu vivo embriagado por um ideal e durante toda a minha vida tenho procurado dar tudo o que posso aos meus semelhantes, mademoiselle, mas acabei esquecendo de mim", desabafou a uma repórter, dentro do quarto.
A sociedade porto-alegrense se comoveu com o drama do propagandista que não poupava energia, muito menos dinheiro - como o que havia recebido, meses antes, como garoto-propaganda em um panfleto comemorativo das duas gestões consecutivas do prefeito anterior, Guilherme Socias Villela. Mas seria o governador Jair Soares o responsável pela ação mais efetiva em prol do velho Bataclan.
Transferido para cirurgias de próstata e hemorroidas no antigo Hospital de Reumatologia, no bairro Rio Branco, ele recebeu tantas visitas e mensagens que os enfermeiros precisaram colocar ordem no furdunço. Foi quando um enviado do Palácio Piratini chegou com a boa notícia: a Secretaria do Trabalho e Assistência Social havia providenciado uma pensão vitalícia. Nada mal pra quem pedira apenas uma vaga no asilo Padre Cacique.
"Estou vendo se a coisa melhora em benefício dessa carcaça. Se não houver empecilho, a gente dá umas corridinhas pra animar a gurizada e botar a velharada a comer frutas e legumes", falou a um canal de TV que o encontrou se recuperando em uma apartamento próximo à Usina do Gasômetro. Em 1984, viria o título "Cidadão de Porto Alegre", concedido pela Câmara de Vereadores.
Pronto para outra, o tríplice personagem seguiu toureando a senilidade, em ritmo mais light. E assim foi até 26 de setembro de 1990, quando a notícia se espalhou antes que o comércio abrisse as suas portas naquela quarta-feira: o coração do "Atlas de Ébano" havia descansado, após quatro dias de internação decorrente de mal-estar associado um princípio de AVC, aos 76 anos - ou 94, nos seus próprios cálculos.
Mantido em observação no Hospital Conceição desde sábado, o paciente dera sinais de melhora e, apesar da surdez galopante, interagia com o pessoal e dava corridinhas em torno do prédio, embalado pela expectativa de alta. O clima era de faceirice ao retornar de um desses exercícios. Sentado, pediu que o colega de quarto lhe alcançasse uma maçã. Não houve tempo para a segunda mordida: a fruta caiu da mão e a cabeça pendeu suavemente, à 8h15min. Enfim, Bataclan se tornava imortal.

Aplaudido pelas torcidas colorada e gremista

Quando não podia recorrer à voz imponente para dar os seus conselhos, Bataclan fazia da própria resistência um exemplo a ser seguido. Ainda no final da década de 1980, as torcidas aplaudiam de pé o negro idoso que corria a volta olímpica nos estádios durante intervalos de partidas de Grêmio e Inter - em 6 de abril de 1969, ele havia madrugado para garantir lugar na festa inaugural do Beira-Rio.
O músico e jornalista Nelson Coelho de Castro, 64 anos, conta o que testemunhou em 1977, quando produzia o programa Portovisão e levou Bataclan ao estúdio como convidado: "A figuraça deu uma dica surreal de boa forma feminina, receitando que a mulherada pegasse, um a um, palitos coloridos espalhados pelos cantos do cenário. A explicação era de que se agachar dava um ótimo exercício".
Ok, alguns o achavam meio doido, mas essa ideia era contrabalanceada por iniciativas que contribuíam para um status diferenciado. Enquanto as outras figuras insólitas se limitavam a abastecer o anedotário local com esquisitices e lances dignos de boas gargalhadas, Cândido ia além, lançando mão de seu magnetismo para promover e executar iniciativas nobres.
Com um balaio de legumes a tiracolo, ele percorria empresas e jornais, angariando donativos para lares de excepcionais, asilos e crianças carentes. Várias dessas ações eram levadas a cabo de um jeito espirituoso, como na tarde em que reuniu a gurizada de uma vila para encontrar ninhos de Páscoa escondidos no Parque da Redenção.
Tamanha pró-atividade e simpatia fizeram com que baixas, médias e altas camadas sociais o levassem a sério, em um reconhecimento incomum para personagens folclóricos - e que seria decisivo em sua reta final. Não por acaso, a mídia o recebia de portas escancaradas, em busca de frases de efeito até sobre o espinhoso tema do racismo.
"O branco já não bate com a porta no nariz do negro, porque existe a Lei Afonso Arinos. Mas ele vai fechando devagarinho...", comentou em um perfil publicado pela Última Hora de maio de 1968, citando o documento promulgado 17 anos antes pelo governo de Getúlio Vargas.

Cravos e homenagens

Velório de Cândido foi no Salão Nobre da Prefeitura e atraiu anônimos e ilustres

Velório de Cândido foi no Salão Nobre da Prefeitura e atraiu anônimos e ilustres


CESAR LOPES/PMPA/JC
O velório de Cândido no Salão Nobre da Prefeitura e o sepultamento na urna 20.704 do cemitério São Miguel e Almas, no dia 27 de setembro de 1990, atraíram ilustres e anônimos, alguns deles depositando cravos vermelhos sobre o caixão. Nos jornais, a despedida mereceu chamadas de capa, páginas inteiras e dedicatórias emocionadas de colunistas como Paulo Sant'Ana, Mendes Ribeiro, Hugo Amorim e Moacyr Scliar.
Hoje, o afamado apelido está presente em duas outras homenagens. O músico porto-alegrense Richard Serraria batizou de Bataclã F.C. a sua banda, fundada em 1999 na Faculdade de Letras da Ufrgs. No ano seguinte, uma lei proposta pelo então vereador Cláudio Sebenelo nomeou Alameda Bataclan a pista central do Parque Marinha do Brasil. "Foi uma iniciativa da qual muito me orgulho", diz o médico e sociólogo de 79 anos.

Uma fauna sortida

No álbum de tipos pitorescos que borboletearam pela Porto Alegre da época em que Bataclan (ou "Bataclã", na versão agauchada pela mídia local) fez do burburinho das ruas o seu ganha-pão, muitos estão na memória da cidade.
  • Maria Chorona, a jornaleira que pronunciava o seu mantra lamurioso no Largo dos Medeiros: "Correeeeeeeio! Diaaaaaaário!". Territorial, enxotava concorrentes e piás marotos que se divertiam em arremedá-la.
  • Homem dos Cachos, o ocultista de túnica branca, cabelo "comanche" e a inseparável mala com uma "janela" a exibir punhados de cédulas. Suas previsões faziam a alegria da imprensa.
  • Professor Brilhante, de boina e cavanhaque, a pincelar e vender seus quadros na rua Vigário José Inácio. Seu nome batizou oficialmente o largo de desenhistas e pintores em frente ao Shopping Rua da Praia.
  • Tom Mix, mandalete do Cine Apolo e que realizava suas fantasias de mocinho de bang-bang com o dedo indicador a desferir tiros imaginários em desafetos na Praça da Alfândega.
  • Marimbondo, o gringo alto que não poupava ninguém. Por qualquer "cachê", topava os desafios mais estapafúrdios, como lamber o pescoço de um inocente casal que deixava o Cine Guarani.
  • Terezinha Morango, a torcedora que agitava o Beira-Rio e bares do Centro. Nem o Inter escapou: dizendo-se desprestigiada ao não receber uma ajuda financeira do clube, virou a casaca para o Grêmio.
  • Volnei Salles, o vendedor de loterias cujo bordão "Gurizada Medonha!", nas cercanias da rua Uruguai, rendeu o próprio apelido e se tornou uma expressão popular que perdura na boca do povo.
  • Arlindo Alfaiate, o enigmático senhor a desfilar como um dândi, de cartola e terno boquirrotos, mala de viagem e guarda-chuva. Tudo coberto por "anúncios" escritos à mão.
  • Manoel, o ambulante que ainda hoje, aos 71 anos e sem os braços, desperta o carinho e curiosidade dos porto-alegrenses, ao oferecer loterias e, principalmente, um tremendo exemplo de obstinação. 

* Marcello Campos

Formado em Jornalismo e Publicidade & Propaganda (ambas pela Pucrs) e Artes Plásticas (Ufrgs). Tem quatro livros já publicados. Há mais de uma década, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses.