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reportagem cultural

- Publicada em 06 de Setembro de 2018 às 06:45

Casa que abriga antigo ateliê de Danúbio Gonçalves está a perigo

Danúbio Gonçalves em registro de 2010 para filme de Henrique de Freitas Lima - hoje, artista vive em casa de repouso e seu legado está ameaçado

Danúbio Gonçalves em registro de 2010 para filme de Henrique de Freitas Lima - hoje, artista vive em casa de repouso e seu legado está ameaçado


equipe filme/divulgação/jc
Com um martelo na mão, um homem golpeia a cabeça do boi, que cai. O rabo do animal é puxado para impulsionar o corpo pesado. Na frente, outro homem puxa e corta sua língua. Às vezes, o animal está vivo quando começam a tirar sua pele para transformar em couro. O tutano dos ossos é aproveitado, assim como a gordura. A carne será salgada e transformada em charque. O sangue corre para o rio mais próximo, pintando-o de vermelho. Os trabalhadores das charqueadas estão habituados a matar.
Com um martelo na mão, um homem golpeia a cabeça do boi, que cai. O rabo do animal é puxado para impulsionar o corpo pesado. Na frente, outro homem puxa e corta sua língua. Às vezes, o animal está vivo quando começam a tirar sua pele para transformar em couro. O tutano dos ossos é aproveitado, assim como a gordura. A carne será salgada e transformada em charque. O sangue corre para o rio mais próximo, pintando-o de vermelho. Os trabalhadores das charqueadas estão habituados a matar.
Na década de 1950, o artista gaúcho Danúbio Vilamil Gonçalves acompanhou a rotina dos carneadores das charqueadas, estâncias que produziam charque no Rio Grande do Sul. A observação das cenas foi transformada nas xilogravuras da série Xarqueadas, de 1953, que compõem acervos como os do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. As obras realistas, em um período em que vigorava a arte abstrata, também circularam internacionalmente, em mostras nos Estados Unidos e no Japão, por exemplo, e dão a medida da importância de Danúbio no cenário das artes visuais.
Trineto de Bento Gonçalves, líder da Revolução Farroupilha, o artista é o único remanescente do conceituado Grupo de Bagé, formado também por Carlos Scliar (1920-2001), Glauco Rodrigues (1929-2004) e Glênio Bianchetti (1928-2014). Atualmente, Danúbio, com 93 anos de idade, vive em uma casa de repouso na capital gaúcha, sem condições de conceder entrevistas ou de lecionar, como fez ao longo da vida.
Sua obra continua gerando grande interesse. Um exemplo é a já citada série Xarqueadas, destaque em sua carreira e que escapa do ocaso. "Meu pai fornecia gado para a charqueada bageense. Estupefato fiquei com a monumentalidade do tema encontrado nas várias dependências do matadouro, em plena efervescência da safra. Trabalho este que aliciava pessoal vindo da lide campeira. Entusiasmado, por três meses, frequentei este estabelecimento industrial, desenhando, aquarelando e anotando com croquis as variadas operações, da matança ao preparo do charque", relembra Danúbio em depoimento publicado em livro do pesquisador José Antonio Mazza Leite, um dos estudos sobre a série.
"Fato curioso foi estar vivenciando o fim da Era do Charque e, sem saber, documentando-a, uma vez que não existe registro fotográfico dos trabalhadores em ação, tanto no Brasil como no Uruguai ou na Argentina. Embora artisticamente motivado, o meu trabalho relativo à charqueada alcançou a condição histórica, inédita, de memorial", acrescentou Danúbio ao depoimento.
Ligado ao movimento comunista, embora nunca tenha sido filiado ao partido, Danúbio dedicou atenção ao tema dos trabalhadores. Além dos carneadores, o artista observou e retratou mineradores, e não escapou da crítica a políticos. Uma litografia de 1984, chamada Presidenciáveis, faz uma sátira de candidatos, tema que segue extremamente atual, como a obra do artista.
Enquanto sua obra está preservada em importantes acervos do Estado e do Brasil, parte do seu legado em Porto Alegre sofre com o abandono, como mostra a reportagem a seguir.

Patrimônio cultural a perigo

Casa de Danúbio Gonçalves, no bairro Petrópolis, sofre com o abandono

Casa de Danúbio Gonçalves, no bairro Petrópolis, sofre com o abandono


MARCO QUINTANA/JC
Com pé direito alto, iluminação natural, repleto de quadros, pincéis e tintas, o ateliê de Danúbio Gonçalves também serviu como espaço para receber aprendizes como ele foi um dia. Contrariando o desejo do pai, Danúbio não quis estudar medicina e optou por ser artista. Ainda garoto, na década de 1940, frequentou o ateliê de Cândido Portinari, no Rio de Janeiro, onde morou por 14 anos. Lá, também conviveu com o paisagista e pintor Burle Marx. Entre 1949 e 1951, estudou em Paris.
O ateliê fica nos fundos da sua casa, no bairro Petrópolis. O desejo de Danúbio é transformar o local em uma fundação. Ali, além de um local para manter parte de seu acervo, poderia existir um espaço para atividades culturais, como oficinas de artes plásticas e saraus, por exemplo. Entretanto, a residência ficou vazia depois que o artista precisou ser internado há alguns anos. Com a casa desocupada, ladrões invadiram o local e roubaram objetos. Moradores de rua chegaram a ocupar a residência. "Só não levaram a prensa da litografia porque é muito pesada", conta a filha Sandra. Ela lamenta não ter recursos para restaurar a casa e cobra do poder público auxílio para criar e manter a fundação sonhada pelo pai.
Qualquer mudança na casa, porém, exige cuidado, porque a construção faz parte do Inventário do Patrimônio Cultural - Bens imóveis da cidade. O inventário visa preservar a memória arquitetônica de Porto Alegre, evitando a demolição de construções com valor cultural para a especulação imobiliária. São centenas de imóveis listados no bairro Petrópolis. A filha de Danúbio, porém, se queixa que o inventário afasta interessados no imóvel, que está à venda. A casa está inventariada como imóvel para "estruturação", o que significa que não pode ter seu exterior alterado ou, ainda, ser destruído.
Procurada, a prefeitura alega que não pode "aplicar recursos em bens privados". "Sendo assim, a responsabilidade de manutenção desses bens é dos seus proprietários. Os mesmos podem, se assim quiserem, constituir um instituto ou fundação, como forma de viabilizar o uso público da edificação e a sua recuperação, como ocorre com sucesso, atualmente, com o Vila Flores, na rua São Carlos, 753, 759, 765, com a rua Hoffmann, 477 e 459. Essa é uma ação que parte dos próprios proprietários", explica o coordenador da Memória Cultural da SMC, Eduardo Hahn.
 

Matisse dos pampas

Obra da série Xarqueadas

Obra da série Xarqueadas


REPRODUÇÃO/JC
O escritor e crítico de arte Armindo Trevisan compara Danúbio Gonçalves ao francês Henri Matisse (1869-1954), mas não por que ambos estudaram na Academia Julian, em Paris. "Creio que ele é o mais matissiano de nossos artistas. Formalmente, Danúbio sempre privilegiou o traço, as cores fortes e vibrantes, a elegância. Foi qualificado, às vezes, de versátil e decorativo, acusações que também foram dirigidas a Matisse", explica Trevisan. Para o crítico, o pintor buscou "um estilo mais novo, mais comunicativo e popular, servindo-se de estímulos do art nouveau".
"(Meus quadros) não têm sombra e luz. É tudo plano, chapado, um processo de modernidade. O quadro é uma superfície plana, não quero dar ilusão de profundidade", explicou Danúbio no documentário sobre ele, confirmando a impressão de Trevisan.
Se Danúbio desceu nas minas de Butiá e experimentou a sensação de trabalhar embaixo da terra para retratar os mineiros, ele também pintou mulheres em telas com apelo erótico. Para Trevisan, esses quadros femininos "impressionam pelo seu traço nervoso e de uma morbidez surpreendente".
"Acho que está na hora de se levar a cabo uma abordagem cuidadosa, e até mais maliciosa, do erotismo de suas gravuras coloridas. Nunca esquecer que, numa sociedade machista como a gaúcha, a arte de Matisse exibe um viés antimachista. Há qualquer coisa, repito, na sua estética, que denuncia nosso provincianismo", opina Trevisan.

Quatro andares com obras de Danúbio

Possivelmente, a última exposição individual de Danúbio, que contou com sua presença na abertura, tenha sido também a maior. Em 2013, a mostra Glória do pincel expôs trabalhos de toda a sua carreira artística. A retrospectiva ocorreu na Galeria Duque, no Centro Histórico da Capital. O espaço é privado, mas aberto ao público, e tem quadros de artistas como Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. "Foi a maior e mais completa exposição, uma vez que privilegiou toda carreira do artista. Foram quatro andares com obras, algumas inéditas e muitas antigas restauradas", relembra o galerista Arnaldo Buss. Mesmo debilitado, recorda Buss, Danúbio interagiu com os convidados e atendeu jornalistas.
Danúbio tem personalidade reservada e fala pouco, descrevem as pessoas próximas. Costumava enfrentar o frio da Campanha para pintar as paisagens típicas do Pampa e chegou a fazer voo de balão para pintar o colorido festival de balonismo de Torres. Por ser obstinado e mais íntimo do silêncio, Danúbio surpreendeu ao aparecer no documentário Danúbio (2010), dirigido por Henrique de Freitas Lima, no qual expressa sua opinião. Ele tem uma visão crítica sobre instalações artísticas e banalizações de certas técnicas, como a fotografia, por exemplo.
"É um vale-tudo. Eles pegam uma tábua, botam uns tijolos em cima, derrubam tinta amarela e chamam de pintura. E agora? 'É arte conceitual'. Só dando um pontapé na bunda desses caras. Com câmera digital, todo mundo é fotógrafo. Ser fotógrafo não é isso. É o cara que sabe revelar, que tem tarimba. Não é assim", indignou-se, no documentário.
"Ele tinha uma visão muito crítica das instalações, discordava de que o artista tinha que depender de quem o bancasse. Ele é de uma geração de artistas como Vasco Prado, Xico Stockinger, que viviam da venda das próprias obras. Por suas opiniões, passou a ser visto como conservador e até ser meio ridicularizado. Mas continua muito valorizado", lembra Lima.
Aos alunos, costumava dar lições importantes. "Eu dizia 'vocês têm que fazer 10 trabalhos ruins para fazer o 11º melhor", confessou o artista no filme.

Murais monumentais pela cidade

Obra criada por Danúbio pode ser vista no exterior da Estação Mercado da Trensurb (foto pode ir para outra página)

Obra criada por Danúbio pode ser vista no exterior da Estação Mercado da Trensurb (foto pode ir para outra página)


LUIZA PRADO/JC
Danúbio Gonçalves acredita que a arte deveria ser acessível a todos e de fácil compreensão. Não é por acaso que dominou e ensinou as técnicas de xilogravura e litografia, que permitem a impressão e a reprodução das obras praticamente de forma infinita. Nessas técnicas, a madeira, a pedra ou o metal servem como matriz, na qual o desenho será minuciosamente talhado. Depois, o desenho recebe uma camada de tinta, que "carimba" o papel com ajuda de uma prensa.
O artista fundou tanto o Clube da Gravura de Bagé como o de Porto Alegre. Na capital gaúcha, foi professor de gravura por 30 anos no Atelier Livre, da prefeitura, e lecionou no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). O sentido de popularização da arte foi uma influência do Taller de Gráfica Popular, do México. Dos mexicanos, também herdou a admiração pelos murais, que levam a história e a cultura do país à população. Danúbio foi elogiado pelo muralista mexicano Diego Rivera, que foi casado com Frida Kahlo. Rivera exaltou o gaúcho em entrevista à revista Horizonte, de Santiago do Chile.
"Sempre tive atração pela arte mural. Com poucas oportunidades para realizá-la (...). Lamento, pois as fachadas ou os muros externos favorecem o diálogo direto do artista plástico com o público. Mais abrangente do que o quadro confinado na coleção particular", afirmou o bageense no livro Danúbio Gonçalves: caminhos e vivências, que resgata sua obra.
Embora não tenha feito tantos murais quanto gostaria, Danúbio deixou dois exemplos em espaços de livre circulação em Porto Alegre. O mais conhecido deles é o Epopeia Rio-grandense, Missioneira e Farroupilha, em frente ao Mercado Público. O outro é o Centenário da imigração judaica no Rio Grande do Sul, na rótula das avenidas Carlos Gomes e Protásio Alves. Ambos são painéis com azulejos pintados. Por causa do maior alcance junto ao público, as obras têm significado especial para Danúbio. Porém, ambos necessitam reparos, e não há informações concretas sobre quando e como serão feitas as manutenções.
"Seguramente, o mural da Epopeia Farroupilha é a obra de arte mais vista de Porto Alegre. A vertente dos murais sempre foi importante para Danúbio, que tinha uma admiração pelos muralistas mexicanos. Ele tem muito orgulho desse trabalho porque podia se comunicar. Ele acha muito importante que as obras falem com as pessoas. Danúbio costumava dizer que obra de arte não é remédio, pois não precisa de bula para entender", conta o cineasta Henrique de Freitas Lima, que dirigiu o documentário sobre o artista. No filme, Lima acompanha Danúbio durante quase cinco anos, captando imagens, inclusive na inauguração do mural, em 2008. Na ocasião, o artista aparece sorridente, concede entrevistas e até dá autógrafos.
O mural tem 16,5 metros de largura e três de altura. São 555 azulejos que narram a história gaúcha desde os indígenas, passando pelo conflito com os espanhóis e a Revolução Farroupilha, liderada pelo seu trisavô, Bento Gonçalves. A técnica utilizada era complexa. Primeiro, Danúbio fez os esboços. Depois, no seu ateliê, projetou as imagens sobre os azulejos e os pintou com uma tinta especial. Em seguida, foram levados ao forno e queimados a 800 graus.
Prontas, as peças foram numeradas e depois coladas na estrutura da Estação Mercado, da Trensurb. Passados mais de 10 anos de sua inauguração, há azulejos faltando, quebrados e partes danificadas. "Isso aí me tira o sono. Cada vez que passo por lá, tenho vontade de chorar. Nem a prefeitura, nem a Trensurb quer se responsabilizar. Os azulejos vão cair todinhos, é um efeito dominó. É necessário fazer um mutirão e a restauração precisa de um artista. Caiu até uma parte que tinha desenho", relata Sandra Gonçalves, de 60 anos, filha de Danúbio.
A Trensurb informa apenas que a prefeitura está à frente do projeto de manutenção e não diz quando nem como o restauro será feito. Por usa vez, a prefeitura relata que já fez o orçamento da restauração, sem data para início. "Tendo em vista a escassez de recursos por parte da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), estamos buscando alternativas junto a empresas que devem contrapartidas ao município para a sua execução", relata Eduardo Hahn, coordenador da Memória Cultural da SMC.
"Para mim, é uma obra muito importante. Já vi várias pessoas fotografando o painel. Nunca apareciam os Lanceiros Negros. Ninguém botava (nas obras) o Sepé-Tiaraju. Ali, passam milhares de pessoas todos os dias. Então, tinha quer ser um mural com bastante explicação", afirmou Danúbio para o documentário.
O outro mural, na rótula da Carlos Gomes, que comemora o centenário da imigração judaica no Estado, tem 13 metros de largura por três metros de altura e foi inaugurado em 2005. A obra foi um presente da comunidade judaica à cidade. "Pintei o navio, o trem, os mascates e a dança", relembra Danúbio. O mural mostra homens e mulheres trabalhando no campo e vendedores com suas maletas com artigos para comercialização. A obra que homenageia os imigrantes judeus também precisa de reparos. O orçamento já foi feito, garante a prefeitura, e não há previsão para o início das obras. "Estamos em tratativas com o Sinduscon para viabilizar a sua restauração", afirmou Hahn.

Danúbio Gonçalves

Murais em Porto Alegre
  • Na Estação Mercado da Trensurb (Centro Histórico)
  • No viaduto da rótula das avenidas Protásio Alves e Carlos Gomes (Petrópolis)
Obras no Rio Grande do Sul
  • Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Praça da Alfândega, s/n°), Porto Alegre
  • Galeria Duque (Duque de Caxias, 649), Porto Alegre
  • Pinacoteca Aldo Locatelli (Paço dos Açorianos, praça Montevidéu, 10), Porto Alegre
  • Igreja de São Sebastião, Porto Alegre
  • Santuário do Sagrado Coração de Jesus, São Leopoldo
  • Igreja de São Roque, Bento Gonçalves
  • Museu Dom Diogo de Souza, Bagé
  • Museu da Gravura Brasileira, Bagé
  • Pinacoteca Unibanco, Pelotas
No Brasil
  • Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro
  • Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo
  • Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo
  • Casa da Gravura de Campos do Jordão, Campos do Jordão/SP
  • Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador/BA
  • Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Curitiba/PR
  • Museu de Arte de Santa Catarina, Florianópolis/SC
No exterior
  • Museu de Artes Plásticas Puchkon, Rússia
  • Association des Amis de la Collection Cérès Franco, Lagarsse, França