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Teatro

- Publicada em 20 de Janeiro de 2022 às 19:08

Exorcismo de fôlego

Antonio Hohlfeldt
O 23º Porto Verão Alegre iniciou-se na quinta-feira da semana passada, com a estreia da peça O inverno do nosso descontentamento - Nosso Ricardo III, espetáculo dirigido por Luciano Alabarse, com dramaturgia dele mesmo, de Marcelo Adams e de Margarida Peixoto, eles, por seu lado, os dois únicos intérpretes (e totalmente suficientes) deste trabalho. O ponto de partida é a tragédia Ricardo III, de William Shakespeare, obra que se supõe ter sido escrita por volta de 1592 e que estaria, pois, completando 430 anos de existência.
O 23º Porto Verão Alegre iniciou-se na quinta-feira da semana passada, com a estreia da peça O inverno do nosso descontentamento - Nosso Ricardo III, espetáculo dirigido por Luciano Alabarse, com dramaturgia dele mesmo, de Marcelo Adams e de Margarida Peixoto, eles, por seu lado, os dois únicos intérpretes (e totalmente suficientes) deste trabalho. O ponto de partida é a tragédia Ricardo III, de William Shakespeare, obra que se supõe ter sido escrita por volta de 1592 e que estaria, pois, completando 430 anos de existência.
Desde o título, o espetáculo que comemora os 20 anos da Cia. Teatro ao Quadrado evidencia, simultaneamente, uma profunda, amadurecida e bem elaborada recriação da obra do bardo inglês, de tal maneira que a torna totalmente contemporânea. Mais que isso, fortemente vinculada aos fatos imediatos do século XX e especialmente dos anos mais recentes da história nacional, aproximando o personagem inglês do século XVI do personagem brasileiro do século XXI que se pretende ser seu êmulo, o atual ocupante do Palácio do Planalto.
Por isso, a simbologia do "nosso Ricardo III": em tudo onde aparecer o rei britânico, veja-se o mandatário brasileiro. Aliás, o título escolhido é apropriação retrabalhada da primeira fala do personagem: "Ora pelo sol de York o frio inverno do descontentamento foi mudado" (versão de Carlos Alberto Nunes que uso para este comentário; Melhoramentos, sem data, p. 17).
A paráfrase do título é tão criativa quanto evidencia o estudo aprofundado do texto - o que ocorre ao longo de todo o roteiro que sustenta o espetáculo: o frio inverno original propõe um jogo de palavras porque faz referência à vitória da casa de York contra a de Lencastre, sendo que o rei Henrique VI, que é o rei vitorioso, traz em seu escudo três sóis. Assim, pois, o sol transforma o inverno...
No título da obra, temos o inverno do nosso descontentamento com um evidente deslocamento semântico: introduz-se o nosso, que traduz a apropriação que a obra brasileira se propõe a fazer em relação ao texto inglês e, com isso, evidentemente, apresenta-se uma (re)leitura, que o próprio Alabarse, em texto escrito para o programa da peça, caracteriza como uma desconstrução. Ocorre que toda a desconstrução pressupõe, igualmente, uma reconstrução, sem o quê a obra original desapareceria e nada seria criado ao seu lado, para com ela dialogar, o que não é o caso.
O espetáculo proposto por Alabarse, Adams e Margarida é esta desconstrução/reconstrução que se transforma, como indica o título desta coluna, em exorcismo de fôlego. Exorcismo é quando se realiza um ritual para esconjurar/expulsar ao demônio. Ora, Ricardo III foi o demônio de seu tempo (menos de 3 anos de reinado), e o espetáculo propõe que hoje temos um novo demônio no Planalto Central, que precise ser exorcizado.
Este exorcismo, antecipo no título, é de fôlego: insisto, de múltiplo fôlego. O primeiro fôlego é a recriação dramatúrgica que serve de base para o espetáculo. Ela é admirável sob todos os aspectos, porque desentranhou/reentranhou no interior do novo texto o original inglês, com uma eficiência de releitura a toda prova.
O outro grande fôlego foi a produção, que não contou com apoio governamental, se concretizando mediante iniciativa do próprio grupo e de um restrito círculo de amigos e parceiros. Por fim, de fôlego extraordinário foi o espetáculo em si: Alabarse retorna a seus melhores momentos de diretor de cena quanto de ator; Adams é simplesmente fantástico, e sua transformação em cena, logo na abertura, quando aparece enquanto ator e depois se torna o personagem, é antológica.
Os dois grandes monólogos, um pela amplitude, o outro pela rapidez com que é apresentado, sem qualquer titubeio, tornar-se-ão referência obrigatória para todo ator. Margarida, longe de ser apenas uma escada, como se diz na gíria teatral, sem dizer uma única palavra, apresenta-se como uma figura que emula os nefastos eunucos e eternos puxa-sacos das autoridades que pululam por todos os palácios, e certamente não apenas em Brasília.
O espetáculo, de pouco mais de hora e meia, jamais deixa o espectador respirar. Os figurinos de Antonio Rabadan são surpreendentes; a cenografia do próprio Alabarse, com material descartado de hospitais, é muito apropriado em todos os sentidos, pois reflete o absoluto caos da contemporaneidade, a cultura do lixo de luxo; a iluminação de Maurício Moura e João Fraga é fundamental para guiar a atenção do espectador.
A trilha sonora pesquisada pelo diretor e por Adams vai de Teixeirinha a Mozart com propriedade, inesquecível (aliás, como sempre, em Alabarse), enriquecendo a proposta de leitura. Esta é obra maior, torna-se desde logo clássica e referencial, porque é o melhor depoimento do amor e da paixão pelo teatro que estes artistas possuem.
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