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Teatro

- Publicada em 19 de Junho de 2020 às 03:00

Relembrando Retamar

Em 1978, se não me engano, através de Frei Betto, recebi um convite surpreendente: integrar o júri do prestigiado Prêmio Literário Casa de las Americas, que aquela instituição promovia, anualmente, e que há dois anos criara uma nova categoria específica, destinada à produção dos escritores brasileiros. O encontro ocorria sempre em Havana.
Em 1978, se não me engano, através de Frei Betto, recebi um convite surpreendente: integrar o júri do prestigiado Prêmio Literário Casa de las Americas, que aquela instituição promovia, anualmente, e que há dois anos criara uma nova categoria específica, destinada à produção dos escritores brasileiros. O encontro ocorria sempre em Havana.
Embora o Brasil se encaminhasse para a anunciada abertura política, ir a Cuba naquele momento era uma temeridade. Não havia voos diretos. Ao aceitar o convite (conhecer Cuba? Que fantástico!), tomei o avião da Varig em Porto Alegre e fui até São Paulo, seguindo depois para Lima. Como havia estado de sítio no Peru, passamos a madrugada no aeroporto. Na manhã seguinte, agora com um avião da empresa aérea Cubanas, seguimos para La Habana. No aeroporto de Lima, alertavam-nos para não deixar nenhum bem de valor dentro das malas, que em geral eram rasgadas e roubadas - o que ocorreu com minha câmera fotográfica. Acabaria comprando uma, de fabricação soviética, barata, apesar da tecnologia de ponta da época, numa loja destinada a turistas. As autoridades locais não desconheciam os percalços a serem enfrentados por um brasileiro que voltasse ao País após ter estado em Cuba. Por isso, não carimbavam passaportes brasileiros. Para todos os efeitos, o período na ilha seria contado como o em que permanecêramos, no meu caso, no Peru, mas poderia ser México, Panamá etc.
A Casa de las Americas foi criada por Haydée Santamaria, revolucionária de primeira hora, companheira de Fidel Castro, imediatamente após a vitória da revolução, em 1959. Pretendia promover o ideal de José Martí quanto à integração da América Latina. Primeiro, os países hispanos, depois, incluiu-se categoria específica para os brasileiros. Antes de mim, já havia integrado o júri Antonio Candido, por exemplo.
Em Havana, fomos instalados no Hotel Riviera, muito perto da Casa de las Americas. Ali, à beira da piscina e com um mojito sempre à disposição, líamos os originais que nos eram apresentados, naquele ano, mais de 40. No júri, eram meus companheiros o escritor angolano José Luandino Vieira e os brasileiros Frei Betto e Marina Colasanti e o professor mineiro Fábio Lucas. No fim da tarde, sempre tínhamos alguma atividade: participávamos de palestras, ouvíamos artistas cubanos, falávamos a respeito da cultura brasileira etc. Na segunda semana, quando a leitura havia avançado, fomos levados a visitar o interior da ilha. Conheci, entre outras cidades, Sancti Spiritus e, ali pertinho, Trinidad, que, no século XIX, havia sido moradia de Alexander von Humbolt, que depois visitaria a região da Serra dos Órgãos, no Brasil. Lá, nos reuníamos com escritores, músicos, artistas de teatro, trocando experiências e conhecimento.
O animador incansável deste conjunto de atividades era o então presidente da Casa, o poeta e ensaísta Roberto Fernandez Retamar, que se formara em Filosofia e Letras em 1954, mas aderira posteriormente, com entusiasmo, à revolução e se tornara, em 1986, seu terceiro presidente, cargo que ocupou até sua morte, em 20 de julho de 2019. Por que trago o tema? Porque a Casa de las Americas não só tem cumprido os objetivos para a qual foi criada, como os ultrapassou, inclusive com a criação de publicações especializadas. Na área do ensaio e da literatura, temos a principal delas, que é a Revista Casa de las Americas; mas há também a Música del Caribe, a Horizontes e a Conjunto, esta dedicada às artes cênicas, desde 1964 - atualmente, inclusive, disponibilizada em formato eletrônico. Uma das publicações mais relevantes no universo das artes cênicas, Conjunto traz, na última edição, ensaios sobre Eugenio Barba ou a poeta argentina Alfonsina Storni enquanto leitora de Shakespeare (ela é a personagem da conhecida canção Alfonsina y el mar, de Ariel Ramirez, na interpretação de Mercedes Sosa). E o registro da morte de Retamar e a inspiração em Shakespeare para um de seus ensaios mais importantes para a interpretação crítica da América Latina (revivendo o personagem Calibán, de 1971).
Retamar sempre evidenciou forte relação com o teatro. Deixar sua morte passar despercebida, mesmo que redigida quase um ano depois, seria uma enorme injustiça com este intelectual. Fica aqui, pois, o registro. Com Conjunto e um festival anual de teatro, ele deu, através da Casa de las Americas, uma das principais contribuições para o desenvolvimento das artes cênicas no continente. Fica o registro de justiça tanto quanto a tristeza por seu desaparecimento.
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