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Teatro

- Publicada em 21 de Fevereiro de 2020 às 03:00

O dramaturgo Márcio Souza e o Tesc

Antonio Hohlfeldt
Em 1976 chegava-me às mãos, numa edição quase artesanal, o livro Galvez: O imperador do Acre, romance que mais tarde seria transformado em folhetim televisivo, pela Globo. Fiquei fascinado com a leitura. Dos tempos de criança, conhecia um pouco da história do território do Acre, o papel desempenhado pelo Brasil na apropriação daquele território e a figura militar do sul-rio-grandense Plácido de Castro, que garantiu, pelas armas, e depois pela astúcia do Visconde do Rio Branco, aquela área para o nosso país.
Em 1976 chegava-me às mãos, numa edição quase artesanal, o livro Galvez: O imperador do Acre, romance que mais tarde seria transformado em folhetim televisivo, pela Globo. Fiquei fascinado com a leitura. Dos tempos de criança, conhecia um pouco da história do território do Acre, o papel desempenhado pelo Brasil na apropriação daquele território e a figura militar do sul-rio-grandense Plácido de Castro, que garantiu, pelas armas, e depois pela astúcia do Visconde do Rio Branco, aquela área para o nosso país.
Era um romance juvenil do paulista Francisco Marins, da editora Melhoramentos, Território de bravos, que narrava aquela saga. O autor deste romance folhetim, grotesco, muitas vezes, engraçadíssimo sempre e altamente crítico à história oficial do Brasil, coisa perigosa naqueles tempos de final de ditadura cívico-militar, era Márcio Souza. Descobri, depois, que ele era o dramaturgo e diretor de espetáculos como As folias do látex e Tem piranha no pirarucu, comédias inspiradas na tradição das revistas e rebolados do teatro brasileiro dos finais do século XIX e princípios do século XX, que também falavam da Amazônia, em especial da história do estado do Amazonas e da cidade de Manaus, da época áurea e da derrocada da borracha.
Márcio Souza fundara e dirigia o Teatro Experimental do Sesc do Amazonas (Tesc), grupo formalmente amador, mas que foi capaz, com o apoio institucional do Sesc, de se transformar num conjunto praticamente profissional, com cursos de formação de ator, produções cuidadas e bem acabadas, textos sempre inéditos e críticos em relação à realizada amazonense e uma forte incidência na cena cultural do estado e da capital. Começou como crítico de cinema, fixou-se como jornalista, acabou se aproximando do teatro e, enfim, não apenas notabilizou-se como romancista, com obras traduzidas em diferentes idiomas, quanto criou uma importante casa editorial, a Marco Zero, com sede no Rio de Janeiro.
Souza é um excelente exemplo de como o regionalismo e o universalismo nada tem de opostos, mas de complementariedade. Ele sempre oscilou entre o Amazonas e os grandes centros industriais e culturais, como São Paulo, onde estudou e começou a ter problemas com a polícia da ditadura, e o Rio de Janeiro, onde chegou a ocupar funções diretivas em organismos culturais federais, sendo Diretor do Departamento Nacional do Livro e depois Presidente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), no governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje em dia, reside em Manaus, onde preside o Conselho Municipal de Cultura, e foi assim, por um convite seu, que, em maio do ano passado, visitei a cidade e participei de um seminário a respeito do imaginário que a grande cidade produz junto a pessoas que dela não são originárias, como o meu caso.
Através de sua editora Marco Zero, em 1997, Souza editou três volumes com os seus textos dramáticos. Aí encontramos A paixão de Ajuricaba, a respeito da fundação de Manaus e do personagem mítico que foi este cacique manauara; Dessana, dessana, Jurupari, a guerra dos sexos, A maravilhosa aventura do sapo Tarô-Bequê e Contatos amazônicos de terceiro grau. Todos são textos diretamente vinculados às matrizes da cultura amazonense, inclusive o último, divertida paráfrase ao conhecido filme.
O segundo volume apresenta textos mais abertos e que marcaram a história do Tesc, como Pequeno teatro da felicidade, As folias do látex e Tem piranha no pirarucu. Por fim, o terceiro volume apresenta textos mais diretamente políticos e que correspondem a uma série de produções marcadas pela abertura política, criação dos novos partidos políticos e a aproximação do dramaturgo a uma militância bastante decidida, da qual depois se afastaria.
No ano passado, depois de um certo distanciamento do autor da dramaturgia e do teatro em geral, eis que a Academia Amazonense de Letras, em comemoração ao seu centenário, editou um novo volume com outros três textos de Márcio Souza. Aí encontramos As mil e uma noites, recriação contemporânea dos velhos contos de Sherazade; Carnaval Rabelais, em que comemora a passagem do aniversário do francês François Rabelais; e, por fim, Eretz Amazônia, a respeito da migração dos judeus para aquela região do Norte do País. No primeiro texto, a história das mil e uma noites é narrada pelo próprio pai de Sherazade e os enredos são apresentados em cena, em tom burlesco, em que não faltam alusões à realidade imediata brasileira. No caso de Rabelais, a cena ocorre "num boteco pé-sujo", como escreve o dramaturgo na rubrica de abertura, onde Rabelais enfrenta problemas pois gosta de jogar mas é um perdedor. A cena de abertura é a do nascimento de Gargantua, numa cena engraçadíssima e que, de certo modo, reanima a então conhecida história do nascimento do principal personagem de Lazarillo de Tormes (1554), de autor anônimo, e que depois seria retomado por O perfume, do suíço Patrick Suskind. Por fim, o terceiro texto muda a tonalidade do registro e apresenta uma quase epopeia da chegada dos primeiros judeus à região amazônica e sua saga junto à extração da borracha.
A unidade e, ao mesmo tempo, a variedade de inspirações dos três textos evidenciam a qualidade do dramaturgo, sua vitalidade e sua criatividade. Creio que o Palco Giratório, do mesmo Sesc, deveria aproveitar este fato e pautar a presença de Souza entre nós, neste ano. Fica aqui a sugestão, inclusive porque, sendo característica do Palco Giratório a possibilidade das trocas culturais e do maior conhecimento da cultura de uma região por outras do País, acho que um encontro ou algumas oficinas com Márcio Souza seria uma grande oportunidade e um grande momento para o festival. Principalmente porque mostra o quanto o Sesc tem presença importante no desenvolvimento cultural do País, mesmo que nem sempre reconhecida.
 
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