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Teatro

- Publicada em 14 de Fevereiro de 2020 às 03:00

Autoritarismo e fascismo do discurso de Alvim - Parte 2

A criação do Concurso Nacional das Artes, na perspectiva do discurso que o publicizou, proferido pelo então secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim, pretendia estabelecer critérios para o conceito do que fosse arte nacional/arte brasileira. Criava, por antecipação, regras que excluiriam os verdadeiros artistas, inclusive porque os integrantes destes eventuais júris deveriam certamente comungar com tais princípios.
A criação do Concurso Nacional das Artes, na perspectiva do discurso que o publicizou, proferido pelo então secretário nacional da Cultura, Roberto Alvim, pretendia estabelecer critérios para o conceito do que fosse arte nacional/arte brasileira. Criava, por antecipação, regras que excluiriam os verdadeiros artistas, inclusive porque os integrantes destes eventuais júris deveriam certamente comungar com tais princípios.
Imagino-me membro do recente Prêmio Camões, de literatura, que homenageou Chico Buarque, proibido de votar no compositor; lembrei-me, aliás, do júri de que participei, pelo então Serviço Nacional de Teatro (SNT), em plena época da ditadura (1977), que premiou Patética, de João Chaves Neto, peça que denunciava o assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos cárceres do DOI-CODI de São Paulo... Quando ficou evidente que o júri de que eu participava, ao lado, dentre outros, de Maria Helena Kühner e Fernando Peixoto, iria sacramentar este resultado, passamos a sofrer pressões e ameaças, a menor das quais é que, saindo da reunião de premiação, iríamos todos direto para a cadeia. Felizmente, a ação corajosa e perseverante do diretor do SNT, na época, Orlando Miranda, após uma série de negociações, acabou conseguindo que se chegasse a bons resultados. Aliás, a peça foi montada tendo em seu elenco justamente a atriz Regina Duarte, que vivia a figura da esposa do jornalista. As voltas que o mundo dá...
Pois, voltando ao assunto: se boa parte da produção artística de uma sociedade depende em parte de mecenas particulares ou públicos, é grave que uma administração pública estabeleça políticas que cerceiem a liberdade e, na prática, contradigam o próprio conceito do que seja cultura. É surpreendente e lamentável que um artista como Roberto Alvim, que certamente sempre reivindicou esta liberdade para as suas criações, agora proponha outras regras. Leiamos estas passagens, frases selecionadas de seu discurso, que encontrei na íntegra no acervo do jornal O Estado de São Paulo (acervo.estadao.com.br):
"A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa";
"(Este será o) ano do renascimento da arte e da cultura no Brasil";
"Sua implementação e perpetuação ao longo dos próximos anos (do concurso) irá redefinir a qualidade da produção cultural em nosso país".
O que significa, exatamente, uma arte heroica? Foram heroicos os espetáculos que o próprio Alvim realizou em seu Club Noir? E onde a nacionalidade? A nacionalidade/regionalidade da literatura de Guimarães Rosa é essencial em sua obra ou ela é universal exatamente porque os demais aspectos são externos à sua criação, ainda que importantes para a sua consecução?
Fala-se em renascimento da arte e da cultura: estamos em decadência? Esta afirmação exigiria uma avaliação rigorosa, verdadeira enquete com os mais diversos setores da criação nacional. E que decadência seria esta, ou, ao contrário: que renascimento estaria sendo proposto?
Por fim, uma ameaça grave: a proposta de perpetuação destas regras, certamente através das premiações, irá redefinir as tendências da produção cultural nacional... Ou seja, de um lado, quem não seguir as regras, não terá oportunidade de ser premiado (reconhecido). Sem reconhecimento, não terá possibilidade de apoio ou financiamento... Sem estas alternativas, ou se calará, ou se adequará ao figurino (e então não fará arte, com certeza) ou simplesmente desistirá. Em todo o caso, isso significará que teremos uma ditadura do gosto, assim como o realismo socialista pretendeu institucionalizá-lo.
Não quero me alongar. Cito duas últimas passagens:
"A Pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus";
"Queremos uma cultura dinâmica, mas ao mesmo tempo, enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes".
Qual o exato compromisso da arte com a Pátria, a família ou quaisquer outros mitos fundantes, exatamente porque são mitos e não necessariamente verdades históricas? O que vemos, o mais das vezes, é que os grandes artistas e a grande arte viram-se, inúmeras vezes, a enfrentar tais valores. Lembremos o Émile Zola de Jaccuse, rebelando-se e denunciando como farsa o processo que condenara Alfred Dreyfus, ou o Eça de Queirós de O crime do padre Amaro, em que discutia o farisaísmo de parte da Igreja Católica de Portugal no século XIX. E o que dizer do dramaturgo Arthur Miller e sua peça As feiticeiras de Salém que, a propósito de um episódio da história colonial norte-americana, na verdade denunciava o maccarthismo dos anos pós-guerra? Os exemplos podem ser multiplicados. Fiquemos por aqui.
O que me moveu a escrever este texto são duas questões: primeiro, fugir do emocionalismo imediatista, mas justiceiro, que acabou marcando o episódio, que ficou apenas no aspecto exterior do alegado pensamento nazifascista de Roberto Alvim. De outro, mostrar que a essência desse pensamento é fascista e autoritária, mesmo que não fizesse nenhuma alusão direta a Joseph Goebbels.
São os valores trazidos pelo agora ex-secretário nacional de Cultura que são fascistas e profundamente autoritários. A arte nunca será subjugada por modelos, regras, leis, mandamentos, porque a arte é essencialmente revolucionária, subversiva, contestatória e rebelde. Sem isso, ela deixa de se arte. Ou, agora sim, parafraseando Alvim, se ela não se comportar assim, não será nada.
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