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Teatro

- Publicada em 21 de Março de 2019 às 21:49

Estreia contundente

Definitivamente, a temporada teatral de Porto Alegre começa muito bem em 2019. Depois da revelação de Milhões contra um, que comentei na semana passada, temos este Deus é um DJ, do alemão Falk Richter, realização do Grupojogo, com apoio do Instituto Goethe e direção de Alexandre Dill.
Definitivamente, a temporada teatral de Porto Alegre começa muito bem em 2019. Depois da revelação de Milhões contra um, que comentei na semana passada, temos este Deus é um DJ, do alemão Falk Richter, realização do Grupojogo, com apoio do Instituto Goethe e direção de Alexandre Dill.
O espetáculo ocorre no espaço da galeria de arte do instituto e o cenário é uma espécie de construção isolada por paredes de plástico transparente. Dentro desta bolha, os dois intérpretes, Gustavo Susin e Louise Pierosan, interpretam um casal que aceita a tarefa de viver 24 horas por dia de sua vida privada de maneira pública, na medida em que são constantemente acompanhados por câmeras que, depois, exibem as cenas na própria galeria de arte em que eles se encontram (e também nós, espectadores). A maior parte das resenhas que li a respeito deste texto, o primeiro deste dramaturgo, considerado um dos dois "enfants terribles" da atual dramaturgia alemã (ao lado de Thomas Ostermeier), a ser encenado no Brasil (já teve espetáculo dirigido por Marcelo Rubens Paiva, no Rio de Janeiro) chama a atenção para o fato de que o texto foi escrito em 1998 e a peça estreou no ano seguinte, em produção do Sttatstheater de Mainz, na própria alemã, antecipando em um ano o surgimento do programa Big Brother, que sobrevive até hoje. Na verdade, eu também tomaria como referência o filme O show de Truman, de Peter Weir, curiosamente também realizado em 1998. Ambas as obras antecipam o que se tornaria uma espécie de lugar comum, nos anos subsequentes, que é esta transformação da vida privada em vida pública, inclusive com a utilização de postagens no Twitter, Facebook e Instagram.
Creio, no entanto, que a discussão proposta por Richter vai um pouco mais além. Há uma espécie de desdobramento do tema, numa reflexão mais profunda, de que este aspecto da perda de privacidade é apenas o lado externo do problema a ser discutido. Na medida em que se perde a privacidade, de certo modo o indivíduo morre para si mesmo, ainda que viva para os demais. Ou seja, o sujeito só está vivo se estiver sendo visto pelos outros. Mas isso o leva a abrir mão de sua vida íntima, de sua subjetividade. Isso fica evidente no diálogo que se estabelece entre os personagens: ambos estão sempre preocupados com o que fazem, porque o que fazem está sendo constantemente filmado e apresentado aos espectadores da galeria de arte em que se encontram, isolados, de um lado e, ao mesmo tempo, amplamente disponibilizados, através das imagens. Ao mesmo tempo, e como que casualmente, a mulher introduz uma questão que só aparentemente é de menor importância para a vida de ambos: ela está grávida e quer saber se o companheiro pretende ser pai, isto é, se o casal aceita ter a criança. Faltam poucos dias para o aborto ser ainda possível, com certa segurança para a mulher. Mas o homem não a ouve ou, ao menos, não lhe responde, contestando.
Depois, entra o segundo tema aparentemente menor, mas que logo se transforma no centro dramático, juntando-se ao outro e, afinal, levando a encenação ao clímax: as memórias do homem levam-no a recordar a violência de que foi vítima junto ao pai, inclusive violência de estupro. Assim, entende-se que a artificialidade da vida que o homem leva de certo modo tenta encobrir a morte que lhe vai na alma, a partir daquela experiência do passado. Na culminância da cena, a antecipação da mulher quanto à maternidade se amalgama com esta morte do homem: a vida é derrotada, a morte se afirma entre os dois e de nada adianta eles trocarem juras de amor entre si. Ambos estão mortos, mortos em vida, e nada é mais verdadeiro que isso, tudo o resto é pura artificialidade, a imagem falsa que eles transmitem através das câmeras.
A encenação de Dill é inteligente e sensível, auxiliado por Guilherme Conrad. O espetáculo exige o uso de mídias, e aí o cenário de Reynaldo Neto, a luz de Lucca Simas, a cenotécnica de Henrique Strieder, o vídeo de Gabriel Pontes, o figurino do próprio diretor e a trilha sonora criada pelo próprio ator são fundamentais. O público, sentado em torno da bolha de plástico, abrange toda a cena que deveria ser privada e participa deste ritual que, para além da artificialidade do cotidiano, acaba se tornando um rito de morte.
Excelente espetáculo, difícil espetáculo, oportuno momento de reflexão a respeito da contemporaneidade, neste texto que integra a herança da dramaturgia pós-dramática, na acepção de Hans-Thies Lehmann.
 
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