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Teatro

- Publicada em 22 de Fevereiro de 2019 às 01:00

Inesperado mergulho na Idade Média

Aldeia medieval Saint-Guilhem-le-Désert fica no Sul da França

Aldeia medieval Saint-Guilhem-le-Désert fica no Sul da França


PIXABAY/DIVULGAÇÃO/JC
Pouco mais de meia hora de carro me levam da cidade de Montpellier, no Sul da França, a Saint-Guilhem-Le-Désert. Mais do que um deslocamento espacial, contudo, trata-se de um deslocamento temporal. Situada no Vale do Verdus e cortada pelo rio Hérault, que dá nome a toda a região, Saint-Guilhem-Le-Désert tem este batismo não apenas porque homenageia um santo da igreja Católica quanto faz referência ao isolamento original deste lugar, a que se pode chegar apenas cruzando uma ponte significativamente chamada Ponte do Diabo.
Pouco mais de meia hora de carro me levam da cidade de Montpellier, no Sul da França, a Saint-Guilhem-Le-Désert. Mais do que um deslocamento espacial, contudo, trata-se de um deslocamento temporal. Situada no Vale do Verdus e cortada pelo rio Hérault, que dá nome a toda a região, Saint-Guilhem-Le-Désert tem este batismo não apenas porque homenageia um santo da igreja Católica quanto faz referência ao isolamento original deste lugar, a que se pode chegar apenas cruzando uma ponte significativamente chamada Ponte do Diabo.
Vamos à história. É a partir do século IX que se tem notícias desta região. Nestes vales isolados, duas abadias são construídas quase que simultaneamente, a de Gellone e a de Saint-Guilhem-Le-Désert. Quando se chega à região, ainda encontramos vestígios de antigas torres de defesa que foram, também, moinhos de água trabalhados pelo Hérault. Grutas profundas também podem ser visitadas por toda a região. E bem no alto das montanhas, no pôr do sol, com a ajuda de uma luz transparente, vislumbramos vestígios de um antigo castelo que era também uma espécie de torreão de vigia contra as invasões eventuais, sobretudo séculos depois, quando das guerras entre católicos e protestantes (século XVII). Todas estas primeiras abadias foram construídas entre os anos de 1025 e 1030, assim como a chamada torre do diabo. Isso pode ser comprovado pelos materiais utilizados e pelas técnicas que os especialistas identificam.
A Occitânia, que é esta Região do Sul da França, sofreu dois tipos de ataques, um dos visigodos e outro dos árabes. Em torno do ano 732, com a vitória de Poitiers, o poder francês se firma na região. Mas Charles Martel quer garantir a posse do território e por isso decide que monges, camponeses e soldados ocuparão estes vales e montanhas. Sob o nome de Benoit, um dos filhos do Conde Maguelone funda, em 804, duas abadias. Guillaume, o conde de Toulouse (Guilhem, em occitano) é primo de Carlos Magno e desenvolveu campanhas militares sempre vitoriosas, mas no ano 806 ele se retira da vida pública, tornando-se um religioso dedicado a orações. Contam as lendas que Carlos Magno teria lhe dado um pedaço da verdadeira cruz em que Jesus Cristo fora crucificado para ele introduzi-la na abadia então construída.
Aliás, este tesouro ainda se encontra guardado na igreja. Por outro lado, também contam as lendas que, desde esta ponte, Guilhem teria enfrentado e derrotado o Diabo, jogando-o no rio. De todo o modo, verdade ou não, a ponte original, ainda existente, ao lado de outra, mais nova, para dar passagem aos veículos, nos conduz da contemporaneidade diretamente para a Idade Média. A administração regional fez construir, logo abaixo de ambas as pontes, uma espécie de lago, onde se instalou uma estação de águas que é intensamente visitada pelos moradores locais.
Fomos adiante. Deixado o automóvel num estacionamento público, andamos cerca de uns 100 metros e, então, a inesperada e deslumbrante descoberta: uma pequena aleia nos leva, entre muros de antigas casas, de repente, a uma praça que, embora hoje em dia ocupada por visitantes do século XXI, não nos impede de imaginar a praça da então aldeia do século XI. Um conjunto de casas, todas construídas em pedra, forma esta praça. Uma das construções, naturalmente, é a velha abadia, que já sofreu ataques e depredações; depois da revolução de 1789 foi inclusive parcialmente desmontada e vendida por partes e pedras, mas que hoje em dia se acha reconstituída.
A construção da ponte original foi cofinanciada por ambas as abadias, mesmo que, em anos subsequentes, surgissem disputas entre as duas comunidades, só interrompidas com a decisão do Papa Urbano III de reconhecer a independência de ambas. À medida em que as abadias ampliavam a presença de sacerdotes, formavam-se as comunidades em torno delas. Hoje, podemos visitar um prédio que nos faz saltar para um tempo quase desconhecido. Entrar na abadia, em primeiro lugar, significa experimentar um lugar com uns cinco graus de temperatura a menos que o ambiente exterior. Isso se deve ao fato de que ela está construída toda em pedra, com paredes extremamente grossas, prédio realmente dedicado ao isolamento, à meditação e à oração. O corpo da igreja, em si, não é grande. Mas pode-se descer pequena escadaria, ao lado do altar principal, e vai-se conhecer a antiga cripta, com seus tesouros, origem do prédio original. Esta parte evidencia a história do prédio e da comunidade, graças às peças sacras ali reunidas, às técnicas de construção identificadas e à compreensão da função desta cripta, justamente a guarda dos bens sagrados mais preciosos.
A abadia tem um belo jardim interno, com arcadas, lugares pelos quais certamente os frades muito transitaram. Mas a abadia é, de certo modo, o ponto de partida para a visita à cidade, cujas ruelas são tão estreitas que, evidentemente, não permitem a passagem de carros (felizmente). O rio Hérault, que vem correndo pelo vale, corta toda a cidade, fornecendo água potável para os moradores. Mas se o visitante pensar que ele é um riozinho simpático e inofensivo, vai se enganar. Philippe Joron, que é meu guia, chama a atenção para o fato de que a maioria das portas, na parte de baixo, é guardada por uma dupla e grossa tábua ou mesmo uma densa lâmina de metal. Isso é para quando o rio deixa seu leito e invade a cidade, transbordante e destruindo tudo que encontrar pela frente.
Qual a importância de Saint Guillem-le-Désert, além deste patrimônio extraordinário, cidade medieval viva e pujante, quase que uma projeção virtual da Idade Média e da Renascença? Basta prestar atenção para uma boa porção de casas: ali se encontra estampada a imagem de uma concha, ou de um sol ou de um girassol estilizado: são os símbolos dos devotos e peregrinos de Saint Jacques de Compostela. Saint Guilhem situa-se justamente num destes caminhos que leva a Compostela, saindo do Sul da França para chegar ao Norte da Espanha. Pelas ruas, encontramos o símbolo da peregrinação que identifica o caminho a ser seguido. E as casas que ostentam a concha, cuja carapaça está no alto, indica que aquele lugar recebe peregrinos para descansar, comer ou tomar um banho, recuperando-se da longa caminhada. Agora não é época da peregrinação, por causa do inverno, mas isso não impede de cruzarmos por alguns peregrinos que chegaram à cidade.
Vagabundeamos pela cidade, enquanto o sol vai caindo e a temperatura descamba fortemente. Fizéramos toda a visita apenas com a camisa de flanela, mas agora já é preciso colocar o casaco. Voltamos pelas ruazinhas, admirando os gradis centenários, os prédios estufados e que parecem que a qualquer momento vão explodir, admirando o cuidado de que todas as ruas possuem um escoadouro das águas da chuva no meio de seu piso, de modo a não formar poças. Há silêncio. Milenar.
Fico pensando que viver num lugar assim, definitivamente, era escolher a invisibilidade. Por outro lado, ficar uns dois dias numa cidade como esta, hoje em dia, mesmo que sem todas as comodidades mais evidentes do século XXI, deve ser uma experiência inesquecível, sobretudo depois que a luz do dia desaparece e parcas lâmpadas nas ruas nos ajudam a guiar: alguns lampiões bruxuleiam, lâmpadas elétricas de pequeno teor aparecem pelas vidraças. Saint Guilhem-le-Désert se recolhe a sua grandiosa mas silenciosa tradição, como que a sugerir que é hora do visitante se retirar. Ela volta a ser aquela aldeia que os frades beneditinos souberam criar e os camponeses e comerciantes do século X souberam construir, mantendo e desenvolvendo ao longo dos séculos, de certo modo escondendo-a aos olhos barulhentos da grande metrópole.
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