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Teatro

- Publicada em 26 de Outubro de 2018 às 01:00

Inesquecível reencontro com O rei da vela

Teatro do Sesi recebeu a peça no fim de semana passado

Teatro do Sesi recebeu a peça no fim de semana passado


JENNIFER GLASS/DIVULGAÇÃO/JC
Escrito em 1933, publicado em 1937 e apenas encenado em 1968, O rei da vela, de Oswald de Andrade, é um precioso documento do Modernismo brasileiro, não apenas por terem sido escassas suas contribuições à dramaturgia, quanto pelo fato de este ser um texto que, à semelhança de um bom vinho, ganhou em sentido à medida em que o tempo passa.
Escrito em 1933, publicado em 1937 e apenas encenado em 1968, O rei da vela, de Oswald de Andrade, é um precioso documento do Modernismo brasileiro, não apenas por terem sido escassas suas contribuições à dramaturgia, quanto pelo fato de este ser um texto que, à semelhança de um bom vinho, ganhou em sentido à medida em que o tempo passa.
Tive a oportunidade de assistir à primeira montagem de naquele final da década de 1960, como já escrevi recentemente nesta coluna. Aliás, assisti à produção num teatro do Rio de Janeiro, numa fileira não muito distante da poltrona ocupada por Nelson Rodrigues que, em determinado momento, levantou-se e, injuriado, passou a gritar impropérios para o elenco, que revidou, incontinente, sendo que Ítala Nandi chegou à boca de cena e desancou o dramaturgo recifense. O ato terminou ali mesmo e, no ato seguinte, a poltrona de Nelson estava vazia. Até hoje não sei se aquilo foi uma rusga mesmo ou alguma coisa combinada. Afinal, tanto Nelson Rodrigues quanto José Celso Martinez Corrêa sempre gostaram de uma encenação: basta ver o modo pelo qual o diretor, com mais de 80 anos de idade, entrou, ao fim do espetáculo, após curta temporada em Porto Alegre.
O rei da vela não foi só profético em relação ao contexto imediato de sua criação. Antecipou o golpe de 1968, através do AI-5 e, quando desta comemoração de 50 anos de existência, acaba se revelando novamente profético ao trazer à ribalta a figura de Perdigotto, um jogador e bêbado contumaz que, não obstante, quer se tornar chefe de grupos exterminadores de operários e trabalhadores rurais, vestindo um vistoso figurino verde-amarelo, cuja coincidência cromática com certo personagem de nossa política do momento evidentemente não é nada casual.
Foi difícil, para mim, ater-me ao espetáculo a que assisti, sem lembrar das interpretações absolutamente soberbas de Renato Borghi (como Abelardo I) ou Ítala Nandi (como Heloísa de Lesbos). Mas procurei me prender mais ao texto e acompanhar as soluções cênicas que esta nova montagem propõe. Fica evidente, a partir do primeiro ato, que tem duração de quase hora e meia, que a peça apresenta tanto alguns aspectos de envelhecimento quanto outros de permanência. Onde se encontra o envelhecimento? Eu diria que repousa, sobretudo, na tendência discursiva e conceitual que as falas de Abelardo I apresentam. O que sustentou melhor a primeira montagem era o élan dos intérpretes, coisa que aqui nem sempre ocorreu, com interpretações às vezes apenas burocráticas.
O segundo ato, já na concepção de Oswald de Andrade, é uma espécie de interlúdio - que serve, ao mesmo tempo, de ilustração do que seria o mundo capitalista brasileiro - como dizia Oswald, feudal e profundamente atrasado. A cena se passa numa ilha e ali o dramaturgo dá vazão às suas criações mais fantásticas, Assistimos então a um desfile de pretensos desvios sexuais e morais que se cruzam com os desvios ideológicos e éticos, sobretudo se considerarmos a figura do Americano e sua relação com Abelardo I e Heloísa de Lesbos. É também o momento alto da interpretação de Tulio Starling, que vive, no primeiro e terceiro atos, Abelardo II, mas, neste segundo ato incorpora Totó Fruta-do-Conde, que se encontra em depressão por ter perdido seu companheiro e se diz "uma fracassada". A cena de Starling leva toda a ação ao paroxismo que o público aplaude em cena aberta, reconhecendo a perfeita interpretação do ator. É este, do ponto de vista dramático, o melhor momento de todo o trabalho.
No terceiro ato, quando se retorna ao espaço do escritório do usurário Abelardo I, teremos outro bom momento da encenação, graças a Sylvia Prado, que interpreta Heloísa de Lesbos, quando a mesma se depara com Abelardo I, depois que este descobriu ter sido traído e roubado por seu assessor, que agora tornar-se-á seu sucessor, Abelardo II, herdando, por isso mesmo, Heloísa. Todo este terceiro ato, o mais curto, evidencia um aumento da paródia e do ironia, culminando na frase final de Abelardo II: "Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!", evidente referência aos amantes Abelardo e Heloísa, personagens da Idade Média que, proibidos em seu amor, assim mesmo quebraram tais regras e, sobretudo ela, pagaram caro tal desobediência.
No caso de Oswald de Andrade, ele também sofreu problemas em especial quanto a seu relacionamento com Pagu (Patrícia Galvão), com quem casou logo após separar-se de Tarsila do Amaral, sendo que a jovem tinha não mais de 18 anos e em seguida evidenciou-se sua gravidez. Pagu era militante do Partido Comunista, levando Oswald de Andrade para esta mesma militância. A peça O rei da vela sofre evidente influência deste período, mesclando, contudo, outras perspectivas do escritor, dentre as quais a psicanálise de Freud. Daí a dupla, mas complementar leitura que o texto dramático nos apresenta: de um lado, a verbosidade entre séria e jocosa do militante comunista e, de outro, a sátira irreverente sobre usos e costumes brasileiros, sobretudo os sexuais. De um lado, assim, um discurso que, até certo ponto, envelheceu; de outro, a desbragada irreverência do dramaturgo para com as diferentes tendências sexuais. Oswald não se peja de utilizar símbolos sexuais que se transformam, ao mesmo tempo, em representações políticas: é o caso da vela e a alusão a Abelardo I ser "o rei da vela". A vela é o último desejo de todo o ser humano (incluindo o próprio Abelardo I). Mas não se pode esquecer a expressão "ficar com a vela na mão", que alude à perda de todos os bens e à miséria.
Aliás, neste terceiro ato, há duas passagens que, de certo modo, resumem o pensamento do escritor, naquele momento. Uma delas é, justamente, o discurso sobre a vela: "O rei da vela miserável dos agonizantes. O rei da vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores (indica o mostruário). Para o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite, para a hora do estudo das crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!". Este discurso é atualizado, ao final da peça: "Aberlardo II - Mas que houve? Que foi? O que é isso? Meu Deus (Aperta o botão da luz). Curto-circuito! - Abelardo I - Não. Foi você que quebrou. Ladrão de primeira viagem. Fez bem! Pouparemos luz elétrica. A conta do mês passado foi alta demais! Acenda todas as velas! Economia em regressão. As grandes empresas estão voltando à tração animal! Estamos ficando um país modesto. De carroça e vela! Também, já hipotecamos tudo ao estrangeiro, até a paisagem!"
O leitor não deve se enganar. Esta passagem não se refere a 2018, é texto de 1937, mesmo. E por isso a peça continua atual e se comunica com o público.
A segunda passagem a que aludi mais acima é a história do cachorro Jujuba, um cão vira-lata adotado por alguns soldados num quartel e que começa a trazer outros cachorros a comerem com ele junto aos militares. Quando os animais são todos expulsos, ele se nega a continuar com as regalias e vai morrer de miséria nas ruas. A fábula contrasta com o comportamento da burguesia, na visão de Oswald de Andrade, o que se consubstancia nas figuras de Abelardo I e Abelardo II, na medida em que, como reconhece o primeiro, morre um e surge o outro, mas a riqueza não troca de classe, o que se concretiza com a passagem de propriedade de Heloísa.
Porto Alegre viveu um momento muito especial de sua história: quem assistiu pela primeira vez a este espetáculo - 99,9% daquele público presente ao Teatro do Sesi - certamente se entusiasmou e extasiou com a montagem, cujos cenários originais de Hélio Eichbauer foram reconstituídos com fidelidade. Quem teve a ocasião de assistir à encenação anterior, como eu, certamente viveu uma espécie de celebração.
O rei da vela, de qualquer modo, mostrou sua triste atualidade, inclusive quanto aos mais recentes acontecimentos político-eleitorais. Para se ver como a arte, e em especial o teatro, são capazes de bem compreender a vida e bem interpretá-la, quando não, melhor antecipá-la.
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