Há duas semanas, Porto Alegre recebeu Fernanda Montenegro, às vésperas dos 90 anos. Veio fazer um espetáculo solo, Nelson Rodrigues por ele mesmo, idealizado por ela junto com a irmã do dramaturgo, Sônia Rodrigues. A iniciativa coube ao Instituto de Cultura da Pucrs e, sem dúvida, foi um grande momento. O instituto organizou uma homenagem especial da universidade à atriz, concedendo-lhe o primeiro título de Mérito Cultural da instituição. Foi momento de emoção e de consagração: o Salão de Atos da Pucrs absolutamente tomado por professores, alunos, público convidado e espectadores, que puseram-se de pé e ovacionaram Fernanda mal ela adentrou o palco. E não foi sem razão. Durante pouco mais de hora e meia ela deu vida a textos de Nelson Rodrigues, que se expressa fundamentalmente por silogismos, tomados como se mandamentos fossem (e talvez o sejam, para ele mesmo).
O título do espetáculo é retirado de um dos volumes de sua autobiografia. O texto está organizado de modo cronológico, começando pelos anos de infância, depois de referências à vinda da mãe, com os filhos, desde o Recife, para o Rio de Janeiro. Fernanda Montenegro propõe uma leitura crítica: seus gestos, suas entonações, seus movimentos de sobrancelhas colocam um elemento de significação a mais sobre o texto que lê e, neste sentido, interpreta.
O público seguiu com atenção, eu diria, com reverência, a toda a leitura. Enfrentou com estoicismo alguns absurdos expressos pelo dramaturgo (em especial, sobre as mulheres), mas também descobriu alguns posicionamentos até certo ponto surpreendentes e que talvez devam ajudar a reformular alguns julgamentos sobre ele, como sua oposição radical à tortura, por exemplo, e seu posicionamento a favor da paz entre as nações.
Fernanda Montenegro considera Nelson Rodrigues o maior dramaturgo brasileiro. Conviveu com ele, encomendou e interpretou várias de suas obras. Para mim, o Brasil tem, de fato, apenas dois grandes dramaturgos: Nelson Rodrigues e Jorge Andrade, antípodas, mas talvez por isso mesmo, complementares. Acrescentemos o grupo do Teatro de Arena, com Vianinha, Guarnieri, Boal; à parte, Dias Gomes e, mais recentemente, Naum Alves de Sousa. Hoje em dia, podemos falar em talvez mais dois jovens valores que se colocam, Mário Bortolotto e Grace Passô.
O que é um dramaturgo? Não é apenas um sujeito que escreva textos dramáticos. Ele deve ter um conjunto significativo (quantitativo e qualitativo) de obras, uma visão de mundo e um conjunto de características (estilo, se quiser o leitor) que nos leve a reconhecê-lo, de imediato, antes mesmo de ler seu nome. Na verdade, em geral a literatura dramática de cada país conta com muitos poucos nomes. Veja-se os Estados Unidos: Bernard Shaw, o trio formado por Arthur Miller, Tenessee Williams e Eugene O'Neill e... o que mais? A Espanha teve seu núcleo no período do, por isso mesmo, chamado siglo de oro. Portugal tem sua melhor dramaturgia neste mesmo momento, com Gil Vicente. Na Inglaterra é o período shakespereano, que não é apenas William Shakespeare, e assim por diante. Um dramaturgo precisa ser capaz de expressar a alma de um povo, universalmente falando ou sob um determinado foco, histórico, por exemplo, mas capaz de sobreviver ao tempo. Estes dramaturgos mencionados foram/são assim.
Fernanda Montenegro passou, até aqui, 55 anos sobre um palco. Leu e interpretou boa parte destes dramaturgos. Ela pode, pois, avaliar e comentar. E se ela diz que Nelson Rodrigues é o maior dramaturgo brasileiro, temos de respeitá-la. Pessoalmente, como disse, concordo em parte com ela, pois acrescento, a esta indicação, a de Jorge Andrade. Mas não se trata de competição. Fernanda o reconhece como um cronista do País, e nisso estamos de acordo. Nelson Rodrigues foi capaz de surpreender a canalhice, a má fé e a falsidade que se encontram internalizadas no brasileiro, que se traduz nos preconceitos, nas expressões do tipo "você sabe com quem está falando?", como já indicou o antropólogo Roberto da Matta. Mas o que é importante é que Fernanda, ao ler Nelson, lê Nelson sob esta perspectiva. E assim, o texto de Nelson Rodrigues ganha uma outra dimensão e profundidade, concordemos ou não com ele.
Em resumo, foi uma noite absolutamente inesquecível, aquela vivenciada na Pucrs.