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Cinema

- Publicada em 27 de Novembro de 2020 às 03:00

O roteirista

Hélio Nascimento
O novo filme de David Fincher pode ser classificado como uma grande oportunidade perdida. Em vez de colocar na tela uma discussão sobre a importância do roteiro na elaboração de um filme, o relato se concentra nas angústias do roteirista Herman Mankiewicz, autor do argumento de Cidadão Kane, realizado por Orson Welles em 1941. Poderia ser um filme sobre a criação cinematográfica, mas termina sendo um relato sobre um autor de roteiros, o que não é a mesma coisa, até porque tangenciar um tema não é explorá-lo e desenvolvê-lo de modo a criar algo caracterizado pela profundidade e por trazer para a tela anotações sobre o processo. Tendo por base um roteio escrito por seu pai, Jack Fincher, o cineasta não hesita em transformar o roteirista em personagem mais destacado e ver em Welles uma espécie de menino prodígio temperamental e narcisista. Pessoalmente, Welles pode ter ostentado tais características, mas foi também um dos maiores cineastas de todos tempos e, ao lado de Alain Resnais, um descobridor de novos caminhos. O filme que realizou depois, Soberba, a colocação em cena de um Édipo dos tempos modernos, poderia ser ainda maior, se o estúdio produtor não o tivesse mutilado. O filme de Fincher claramente tenta aproveitar a polêmica que foi criada em torno papel do roteirista na criação do primeiro filme de Welles. Porém, dando realce à dipsomania do protagonista, não revela para a plateia a causa de tal fuga da realidade. Poderia ser o sofrimento imposto a um artista pelos métodos de produção hollywoodianos, mas isso é uma contradição diante do fato de o cinema de Los Angeles ter sido capaz de criar tantas obras-primas e permitir o desenvolvimento de filmografias importantes.
O novo filme de David Fincher pode ser classificado como uma grande oportunidade perdida. Em vez de colocar na tela uma discussão sobre a importância do roteiro na elaboração de um filme, o relato se concentra nas angústias do roteirista Herman Mankiewicz, autor do argumento de Cidadão Kane, realizado por Orson Welles em 1941. Poderia ser um filme sobre a criação cinematográfica, mas termina sendo um relato sobre um autor de roteiros, o que não é a mesma coisa, até porque tangenciar um tema não é explorá-lo e desenvolvê-lo de modo a criar algo caracterizado pela profundidade e por trazer para a tela anotações sobre o processo. Tendo por base um roteio escrito por seu pai, Jack Fincher, o cineasta não hesita em transformar o roteirista em personagem mais destacado e ver em Welles uma espécie de menino prodígio temperamental e narcisista. Pessoalmente, Welles pode ter ostentado tais características, mas foi também um dos maiores cineastas de todos tempos e, ao lado de Alain Resnais, um descobridor de novos caminhos. O filme que realizou depois, Soberba, a colocação em cena de um Édipo dos tempos modernos, poderia ser ainda maior, se o estúdio produtor não o tivesse mutilado. O filme de Fincher claramente tenta aproveitar a polêmica que foi criada em torno papel do roteirista na criação do primeiro filme de Welles. Porém, dando realce à dipsomania do protagonista, não revela para a plateia a causa de tal fuga da realidade. Poderia ser o sofrimento imposto a um artista pelos métodos de produção hollywoodianos, mas isso é uma contradição diante do fato de o cinema de Los Angeles ter sido capaz de criar tantas obras-primas e permitir o desenvolvimento de filmografias importantes.
A discussão é antiga e corre o rico de se tornar monótona. Mas é sempre interessante lembrar que o cinema, sem se afastar radicalmente da palavra, é uma arte visual. É o cenário, o olhar dos personagens, o movimento das figuras em cena e a presença do passado, através do que é visto na tela, que um cineasta deixa sua marca. Isso explica por que filmes sobre os mesmos argumentos, até por vezes copiando diálogos inteiros, não conseguem se equiparar aos originais clássicos. O que se faz presente na tela é obra de um cineasta, não de um roteirista, por mais imaginoso e inteligente que seja. Um bom exemplo, em outra forma de expressão, é a ópera, em muitos aspectos antecessora do cinema. Welles se interessava pelo gênero. A prova disso é que ele mesmo afirmou que seu Othello, filme que venceu o Festival de Cannes de 1952, foi mais inspirada na ópera de Giuseppe Verdi e Arrigo Boito, este o libretista, do que na peça de Shakespeare, uma das mais fervorosas admirações de Welles. Mankiewicz parecia ter o mesmo interesse. Na história narrada em Kane, a ópera exerce um papel importante e o diretor chegou mesmo a encarregar Bernard Hermann, o autor da música original, a encontrar uma ópera na qual um dos atos começasse com uma ária para soprano. Como não a encontrou, terminou ele próprio escrevendo uma, pessimamente cantada no filme por uma intérprete sem talento, mas que, curiosamente foi anos mais tarde gravada de forma correta por Kiri Te Kanawa. Como ninguém vai a uma casa de ópera para apenas seguir uma história e sim para ouvir como um compositor a desenvolveu, está feita a analogia. É só substituir música por imagem.
Mank não deixa de ter seus méritos, entre eles a utilização do preto-e-branco e a reconstituição de época. E se o formato retangular é um anacronismo em tal pretensão, não faltam referências, algumas irônicas, como a chamada marca do operador, que os projecionistas deixavam na película, antes de outros recursos e da época atual, na qual o cinema em DCP transformou em peça de museu seus primeiros projetores. E tudo é oferecido ao público como se este estivesse lendo um roteiro, inclusive com anotações sobre cenas do passado. Interessante, também, a forma como o filme destaca a importância de experiências pessoais, como na cena em que Welles investe contra a adega de Mankiewicz. Mas o filme aposta muitos em diálogos. Tal opção não é bem explorada por Fincher, que certamente não tem o talento de Joseph, o irmão de Herman, que também aparece na trama, para a valorização de um texto em cinema. O futuro grande cineasta é figura secundária de um filme que elege um artista da palavra como figura principal.
 
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