A bancada evangélica está crescendo em representação no Congresso. De acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a partir da última eleição, serão 91 parlamentares ligados à frente. Em entrevista ao Jornal da Lei, o professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRB-USP) na área de Teoria e Filosofia do Direito, Nuno Coelho, fala sobre o possível conflito entre a laicidade do Estado e a ascensão dos parlamentares ligados à religião.
Jornal da Lei - No artigo 4º, a Constituição estabelece que o Estado é laico. Na prática, o que isso quer dizer?
Nuno Coelho - A laicidade significa que o Estado não pode privilegiar nenhuma religião, não pode adotar ele mesmo nenhuma religião e tampouco perseguir qualquer religião. Ou seja, a postura deve ser de absoluta indiferença a todos os credos. O Estado pode apenas estabelecer, com as diferentes igrejas, parcerias que possam promover a cidadania e a realização da própria Constituição. Mas ele próprio não pode abraçar nenhuma fé.
JL - Considerando os valores da bancada evangélica, o que esse crescimento representa?
Coelho - Esse aumento é importante e implica uma alteração no funcionamento do Parlamento. O sistema político brasileiro é organizado a partir de partidos. Não temos um sistema político construído através de perspectivas religiosas. Mas, na prática, o sistema não funciona de acordo com sua estrutura ou lógica partidária, mas conforme outros interesses que organizam a opinião pública - especialmente a perspectiva religiosa. Isso traz certa distorção do ponto de vista da representação e da opinião nacional no Congresso. Esse é um problema: não temos um regime político funcionando como prevê a Constituição, porque não são efetivamente os partidos que funcionam e conseguem representar as pessoas, mas as igrejas ou outras perspectivas. Neste momento, a casa legislativa passará a funcionar influenciada por uma perspectiva religiosa que não apresenta necessariamente a opinião pública. Uma igreja é uma coligação de pessoas que visam ao bem dos outros e da humanidade. As igrejas cristãs têm esse fundamento. Essa vontade de decência acaba por ser manipulada por líderes políticos. Esse engano é feito através da manipulação da boa vontade das pessoas.
JL - Em um momento de partidos desacreditados, é possível que os políticos prefiram exaltar seus trabalhos junto a frentes religiosas a defender os partidos?
Coelho - Os atores do sistema político, procurando atingir seus objetivos, manipulam as ferramentas que pareçam assertivas para atingir suas finalidades. Há, novamente, uma absorção do sistema político e das igrejas, pois as lideranças religiosas fazem acordos e manipulam suas comunidades para transferir votos para lideranças políticas. Ou, o que se torna cada vez mais comum, as próprias lideranças religiosas se tornam políticas. Há uma dificuldade da justiça eleitoral em identificar e reprimir o que chamamos de abuso do poder religioso. Há muito o que caminhar para evitar que lideranças religiosas possam ameaçar as pessoas e influenciá-las de maneira ilegítima. Assim como o diretor de uma escola e o chefe de uma empresa não podem aproveitar-se da hierarquia para interferir nas eleições, líderes religiosos também não podem. Mas, infelizmente, estamos tendo pouco sucesso na repressão desse tipo de desvio.
JL - A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, declarou que "o Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã". É possível governar dessa forma, considerando a Constituição?
Coelho - O Estado ser laico não significa que as pessoas que ocupam cargos no Estado não podem ter suas crenças. Elas podem, e é comum que tenham. A laicidade do Estado impede que elas imponham às políticas públicas suas perspectivas religiosas particulares. O Estado, desde a modernidade, não assume perspectiva religiosa. O sistema público de educação, por exemplo, tem que ser fundado em postulados científicos e filosóficos, verificação e possibilidade de crítica. Nos ministérios, deve ser da mesma forma. O artigo 37 da Constituição, que fala de eficiência e transparência nas políticas públicas, mostra que elas devem ser guiadas por melhores resultados, independentemente do pensamento dos governantes. Damares, portanto, tem todo o direito de defender as ideias que quiser. Na igreja, em casa, com a educação dos filhos. Mas não tem direito de impor suas convicções nas políticas públicas do ministério.