A psiquiatra Carla Bicca alerta para o grande impacto potencial da liberação do consumo de drogas. "Hoje, muita gente não consome porque a droga é ilícita. Com a liberação, o uso será maior do que atualmente e haverá mais pessoas com problemas de saúde ligados ao consumo das substâncias", adverte.
A estimativa dada pela médica é que, de cada 100 pessoas que consomem cocaína, entre duas e quatro terão problemas de saúde relacionados com a droga. Para maconha, o percentual é de seis a oito pessoas a cada 100. Com o álcool, o percentual sobe para 12 a cada 100 pessoas, e com o cigarro, 24 a cada 100. "Quanto mais pessoas consumirem, mais pessoas terão ônus na sua saúde relacionados ao uso."
A tendência, segundo a psiquiatra, é que a desassistência no sistema de saúde cresça ainda mais com a liberação. Ela considera um contrassenso a liberação, uma vez que não há dinheiro para tratar todas as pessoas que tiverem problemas decorrentes do uso da droga.
Carla rechaça, ainda, a ideia de que há usuários atualmente sendo presos como traficantes. "Temos há muito tempo a Justiça Terapêutica, da qual o Judiciário gaúcho é precursor, inclusive, em que juízes são treinados para diferenciar quem tem dependência e só faz uso da substância e quem usa mas também trabalha com isso", assegura. Conforme a psiquiatra, um "aviãozinho", ou seja, aquele que presta serviço para o tráfico, costuma ser monitorado por dias pela polícia antes de efetivamente ser preso.
Segundo a pesquisadora Ana Paula Pellegrino, antes a pena de prisão para consumidores existia, mas não costumava ter aplicação. "Desde 2006, começou a haver um problema de falta de critério de o que é porte para consumo e o que é porte para tráfico. Na lei até diz para a autoridade levar em conta a conduta da pessoa e a quantidade encontrada com ela, mas não diz qual conduta e qual quantidade", explica. O resultado, conforme a estudiosa, é que há usuários sendo presos como traficantes.
Estudo feito pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro sobre as apreensões de drogas no estado carioca entre 2010 e 2016 aponta que em 50% das ocorrências de 2015, por exemplo, foram feitas apreensões de até 10 gramas de maconha, e que grande parte da droga apreendida foi recolhida em poucas ocorrências. O órgão menciona, no estudo, que 64% das ocorrências de tráfico de maconha no Rio seriam consideradas posse na Espanha, que define quantidades de até 100 gramas como para consumo próprio.
Para Ana Paula, as estatísticas demonstram que a política de combate a drogas é ineficiente no Brasil. "Se você tem uma polícia que fica horas na rua e na delegacia para fazer perícia e laudo, e o maior número de ocorrências é de posse, o problema é de saúde pública. Se é de saúde pública, a participação da polícia não é eficaz nem eficiente", avalia.
A pesquisadora defende o investimento em uma política de redução de danos, com a criação de salas de consumo seguro por parte do poder público, nas quais o dependente de drogas usará moderadamente o entorpecente e terá uma vida funcional. O modelo já existe em países como Suíça, Holanda, Alemanha, Dinamarca, Espanha, Canadá e Austrália.
O advogado criminalista César Peres avalia que a criminalização do porte, mesmo sem a previsão de prisão, gera problemas, uma vez que o indivíduo, se condenado, deixa de ser réu primário e perde a cidadania, não podendo, por exemplo, votar. "Isso é uma tragédia. A impressão que tenho é que, quando olharmos para trás, daqui a alguns anos, e virmos que puníamos criminalmente um cara porque fumava um baseado, enxergaremos como hoje enxergamos quem queimava as bruxas na inquisição", opina. Para Peres, o usuário de drogas não traz risco à saúde pública, e salienta que, neste caso, o bem jurídico protegido pretensamente seria a saúde pública.