Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Jornal da Lei

- Publicada em 04 de Setembro de 2018 às 01:00

Para Zaffaroni, privatizar prisões não é solução para o sistema penal

Jurista chama cadeias deterioradas de 'campos de concentração'

Jurista chama cadeias deterioradas de 'campos de concentração'


/MARCO QUINTANA/JC
Laura Franco
Eugênio Raúl Zaffaroni é reconhecido por seu trabalho dentro do Direito Penal, sendo um dos nomes mais importantes da área na América Latina. Em entrevista ao Jornal da Lei, o ex-ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal comenta as principais diferenças entre o Brasil e o restante da América Latina no que se refere ao Direito Penal e indica possíveis soluções ao cenário que se tem hoje no País.
Eugênio Raúl Zaffaroni é reconhecido por seu trabalho dentro do Direito Penal, sendo um dos nomes mais importantes da área na América Latina. Em entrevista ao Jornal da Lei, o ex-ministro da Suprema Corte Argentina de 2003 a 2014, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal comenta as principais diferenças entre o Brasil e o restante da América Latina no que se refere ao Direito Penal e indica possíveis soluções ao cenário que se tem hoje no País.
Jornal da Lei - A partir de sua experiência na Corte Interamericana de Direitos Humanos e de sua participação em obras sobre o Direito Penal brasileiro, é possível identificar as diferenças entre a área no Brasil e no restante da América Latina?
Eugênio Raúl Zaffaroni - Temos a mesma cultura jurídica, então vou falar sobre as diferenças técnicas. Acredito que estamos sofrendo, de alguma maneira, a mesma onda de punitivismo, isso em toda a América Latina, só que nossas realidades são diferentes. No Brasil, vocês estão vivendo uma situação muito mais preocupante. Estamos em um momento de regressão de Direitos Humanos por culpa de uma pulsão do capitalismo financeiro, uma pulsão totalitária, no fundo. Esse capitalismo financeiro quer ocupar o lugar da política. Isso acontece aqui, na Europa, no mundo todo. Acontece que, uma coisa são aqueles países onde essas corporações transnacionais estão sediadas, outra coisa são os países periféricos do capitalismo mundial. O enfraquecimento dos estados é funcional para esses capitalismo financeiro, e a violência, os conflitos nas nossas sociedades são completamente funcionais também e enfraquecem o Estado. A situação do Brasil é particularmente preocupante. Aqui faço uma análise criminológica, de política criminal, sem mexer na política brasileira em si, já que não é um fenômeno produzido por um governo ou outro, mas é um fenômeno que aconteceu durante um longo período de tempo e agora apresenta esse cenário. Se tem 700 mil presos, como em outros lugares do mundo, são muitas pessoas, mas uma coisa que existe somente no Brasil é o número de 600 mil ordens de detenção não cumpridas. Existem cadeias gravemente deterioradas, eu diria que são campos de concentração, na verdade. A assistência médica é insuficiente, não há uma proporção equilibrada entre o número de presos e agentes penitenciários e esses detentos acabam, então, controlando as cadeias que estão superlotadas. Como toda a cadeia, ela é deteriorante, mas cadeias nessas condições são ainda piores. As pessoas que saem desses locais dificilmente não viram reincidentes em crimes ainda piores. Ou seja, nesse sentido, está se produzindo criminosos, reproduzindo. Outra questão interessante sobre o Brasil é a quantidade de pessoas processadas, em cumprimento ou não de pena. A questão é que a população está percebendo a coisa penal como se fosse normal, como um "fui para o hospital", porque ouve falar, porque leva comida para um preso, porque vai a uma vara criminal, busca um advogado de defesa. Isso só pode ser um aparelho de reprodução de violência, é um problema de segurança nacional extremamente preocupante. O número de presos não tem relação com a frequência criminal, não é verdade. Todos os países do mundo tem um pequeno número de psicopatas, assassinos que estão na cadeia, devem estar e ninguém duvida, mas são uma minoria. Depois existe o que chamamos de colchão de criminalidade, que são aqueles crimes de leve e média gravidade. O que é feito com essa criminalidade? Não há regras. Isso depende de decisões políticas. Existem países que possuem uma política diferenciada para esse tipo de criminalidade. A mídia está criando a ideia de que todos os criminosos são patibulários, o que não é verdade. Deve chegar um momento de reação frente a isso, pensar o que será feito. Em países como a Argentina, onde se tem índices baixos de homicídio, Uruguai, Chile e Peru também, o que faz a mídia? Cria, inventa uma criminalidade que não existe. O homicídio do dia é repetido 20 vezes, se torna 20 homicídios. Se há requintes de crueldade, há uma exposição ainda maior. Onde não existe, cria, onde existe, normaliza. Vocês não podem continuar com essa situação que estão, deve se chegar a um acordo, que os partidos sigam brigando, mas que, ao menos nisso, se chegue a um acordo para trazer melhorias.
JL - Cada vez mais está se buscando um novo modelo de gestão dos presídios através de parcerias público privadas. Essa é uma saída possível?
Zaffaroni - No fundo, acaba sendo muito mais caro que a administração pública de uma cadeia. Isso não exime que algum serviço específico possa ser privatizado, eventualmente pode se privatizar a alimentação, a assistência médica, a educação dentro desses locais. Nos Estados Unidos, o serviço penitenciário federal sempre rejeitou a privatização das cadeiras, só são privatizadas algumas cadeias estaduais. No final das contas, é um negócio. Aliás, a prisão privatizada tem um número determinado de presos, então ficam ainda mais lotada as prisões públicas, e paga-se mais nas privatizadas. A saúde, a educação, a segurança, tudo quer se privatizar, acontece que aí vai ter quem pode pagar.
JL - Quais são as soluções possível dentro do sistema penal para se diminuir os problemas existentes hoje?
Zaffaroni - Primeira coisa que eu teria de dizer, no caso do Brasil e a partir do que eu observo, é que todo o sistema penal tem segmentos: a polícia, o Ministério Público, os juízes, penitenciários. Cada um desses segmentos é compartimentalizado, tem-se a ideia do "eu faço meu trabalho e pronto". Todo o sistema penal é assim, não há uma unidade, cada um tem seu próprio controle de qualidade. A prova é a questão das ordens de detenção, não se importam com o que acontece na cadeia, a capacidade. A polícia pensa uma coisa, o MP outra, os agentes penitenciários outra. A primeira coisa é tentar harmonizar um pouco, unir esses setores e pensar em estratégias para melhorias, que possibilidades existem de diminuir esses danos. Não é fácil desmontar algo que foi produzido ao longo de muitos anos, da negligência de tantos governos. Não há uma fórmula mágica. É um debate político, mas não é partidário. Achar alternativas que não sejam deteriorantes para esse colchão de crime pode ser uma saída, que não crie no sujeito uma estigmatização, que faz com que ele não consiga um trabalho. Não é simples, mas é possível.
Conteúdo Publicitário
Leia também
Comentários CORRIGIR TEXTO