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30 anos da constituição

- Publicada em 10 de Julho de 2018 às 01:00

Descumprimento tem raízes históricas

Os especialistas consultados pelo Jornal da Lei alinham-se com a leitura corrente entre os constitucionalistas brasileiros: o texto da Carta Magna, no que se refere aos direitos da pessoa humana, está entre os mais progressistas do mundo. "Do ponto de vista de sistema legal, tanto a Constituição quanto a Lei de Execução Penal (de 1984) são modelares, compatíveis com os melhores padrões da Europa e dos países mais civilizados", reforça Ingo
Os especialistas consultados pelo Jornal da Lei alinham-se com a leitura corrente entre os constitucionalistas brasileiros: o texto da Carta Magna, no que se refere aos direitos da pessoa humana, está entre os mais progressistas do mundo. "Do ponto de vista de sistema legal, tanto a Constituição quanto a Lei de Execução Penal (de 1984) são modelares, compatíveis com os melhores padrões da Europa e dos países mais civilizados", reforça Ingo
Wolfgang Sarlet, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs).
O problema, então, passa a ser combater os gargalos que impedem a proteção prevista na Carta de virar realidade. "O texto constitucional não é desarrazoado. Dizer que a integridade física do preso deve ser preservada e as condições de prisão precisam ser dignas não é nada demais. Celas para uma ou duas pessoas, com uma cama decente, uma pia, uma mesa para trabalhar, são coisas absolutamente normais para qualquer preso em países mais desenvolvidos. Aqui, viram privilégio, pois o naturalizado é um estado de total desumanidade", lamenta.
Para Vanessa Chiari, da Ufrgs, há várias razões para que a Constituição vire "quase uma letra morta" no que se refere aos direitos humanos. Entre elas, a advogada aponta uma tendência histórica da sociedade brasileira ao conservadorismo e à divisão da população em categorias - algo que se reforça, entre outras coisas, com o processo tardio de abolição da escravatura, sem qualquer indenização aos libertos.
A advogada lembra que, antes do 1830, quando foi implementado o primeiro código criminal brasileiro, estavam em vigor as ordenações filipinas, impostas pelo reino de Portugal e que, em alguns aspectos, foram lei no Brasil até o início do século XX. "Nelas, se admitia, por exemplo, que um marido fidalgo que surpreendesse sua esposa em flagrante adultério matasse ela e o amante, desde que ele não fosse pessoa de qualidade superior ao marido traído. Isso esteve expressamente em vigor no Brasil até 1830, e essa visão de cidadãos superiores a outros fala muito sobre como se construiu a nossa sociedade", argumenta Vanessa.
Assim, dentro de uma lógica que atribui maior gravidade aos chamados crimes de rua (roubos, furtos e, mais recentemente, o tráfico de drogas), a professora defende que o aparato de repressão à criminalidade acaba direcionado para as periferias, mais comumente envolvidas com esse tipo de delito. O resultado, segundo ela, são prisões lotadas de pessoas pobres - tratadas, historicamente, como dotadas de menos direitos em nossa sociedade.
Vitor Facchinetti tem visão semelhante, e reforça que a atual estrutura dos Três Poderes acaba não privilegiando o atendimento das garantias constitucionais, submetendo-as a outros interesses. "O Judiciário, salvo raras exceções, é refém do clamor público e, atualmente, das redes sociais, negando, peremptoriamente, direitos óbvios. Chegou-se ao absurdo de relatos de mulheres e crianças em presídios de homens, o que é flagrantemente inconstitucional", critica.
Falando detidamente sobre o inciso LIV do artigo 5º, Facchinetti reforça que o devido processo legal e a presunção de inocência são princípios "inerentes não só à democracia, mas de resguardo à dignidade humana" - e que as violações, embora sempre tenham ocorrido em cortes inferiores, parecem encontrar novo fôlego a partir da demanda social por combate à corrupção. "Nos dias atuais, até o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, vem referendar os abusos", lamenta.
A falta de investimento nas prisões, fundamental para que a dignidade dos apenados seja respeitada, é encorajada, segundo Vanessa Chiari, até mesmo pelas limitações à cidadania dos presos. "Por que vou investir nas prisões se o preso não vota?", questiona. Ela reforça que em torno de 35% da massa carcerária é de presos provisórios, que ainda não foram condenados e, em tese, têm direito a votar em eleições. "Mas alguém já viu uma urna instalada em algum presídio? Nem se cogitou essa hipótese, mesmo com todo o avanço que temos no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral. E eles (presos provisórios) têm direito, pois ainda estão sob a égide da presunção de inocência."

Judiciário tem dever de cumprir Carta, mas sofre pressão

Penas alternativas, como a tornozeleira eletrônica, estão sendo mais adotadas

Penas alternativas, como a tornozeleira eletrônica, estão sendo mais adotadas


/NEIVA MOTTA/SUSEPE/DIVULGAÇÃO/JC
Ao agente do Direito, o cumprimento da letra constitucional é um dever inarredável. Uma obrigação difícil de cumprir, na medida em que falta estrutura adequada e o clamor da sociedade, muitas vezes, vai em sentido oposto. Na visão de Vanessa Chiari, todo juiz precisa estar psicologicamente preparado para agir de maneira contramajoritária, justamente para preservar a Constituição acima de paixões e pressões - o que, segundo ela, não se verifica em várias situações, incluindo alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ainda assim, o Judiciário tem se mobilizado em nome de penas alternativas e outras soluções que recuperem, ao menos parcialmente, o espírito das garantias constitucionais. Em 2016, o STF editou a Súmula Vinculante nº 56, determinando que, na falta de vagas para o semiaberto, o detento não pode permanecer em regime mais gravoso do que ao que tem direito na progressão de pena. Isso abriu caminho para que presos do semiaberto passem para a prisão domiciliar com uso de tornozeleiras, o que vinha sendo questionado pelo Ministério Público até então.
Outra medida mencionada por Vanessa trata da interdição de prisões como o Presídio Central de Porto Alegre - justificada, defende ela, pelo quase completo desrespeito à integridade física e moral dos que nelas se encontram. "Mas a demanda social, reforçada pelas polícias, é de curto prazo", lamenta. "O juiz toma uma medida adequada, porque o Executivo não investiu no sistema carcerário e em novas vagas, e aí o Judiciário é colocado contra a parede, inclusive pela mídia, pedindo que sejam ainda mais violados os direitos humanos e as garantias constitucionais."
"Encaro o cenário atual com extremo pessimismo", admite Vitor Facchinetti. Em sua visão, a "adesão massiva" de promotores de Justiça e magistrados a um discurso de lei e ordem a qualquer custo faz com que as instituições encarregadas de garantir o cumprimento da Constituição e do Código Penal sejam, em várias situações, agentes desse próprio descumprimento.
Ingo Wolfgang Sarlet, do TJ-RS, vê o desconhecimento da população sobre o conteúdo da Carta como um dos elementos decisivos na erosão das garantias no País. "Não temos uma percepção introjetada do valor agregado que isso (cumprimento da Constituição) tem, além de termos uma tendência à polarização. É compreensível, na medida em que há muita violência, as pessoas têm medo. Isso gera um caldo de reação, que acaba direcionado à massa carcerária, no sentido de dizer que eles merecem (as más condições), que têm mais que apodrecer", argumenta. "O que não se percebe é que isso volta para as pessoas, porque as prisões estão tão precárias que se tornam escolas do crime, a reincidência é altíssima. A busca de uma solução violenta acaba gerando mais violência."
Uma falta de consciência que, segundo Sarlet, gera uma série de "bolsões de descumprimento", e não apenas na esfera penal. Como exemplos, ele menciona o acesso à saúde, à educação e à moradia, além da proteção ao trabalhador e a aspectos relacionados ao direito florestal.