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Reportagem especial

- Publicada em 19 de Dezembro de 2021 às 14:00

As donas da noite: empresárias abrem espaço no comando de bares

Cecília Capovilla é dona do Osvaldo, bar que chama atenção pela intensa movimentação no bairro Bom Fim

Cecília Capovilla é dona do Osvaldo, bar que chama atenção pela intensa movimentação no bairro Bom Fim


ANDRESSA PUFAL/JC
Uma mulher está à frente da retomada da vocação histórica da boemia do Bom Fim, principal reduto da noite de Porto Alegre nas últimas décadas do século passado. É Cecília Capovilla, dona do Osvaldo, bar que chama atenção pela intensa movimentação que vem provocando na calçada da Osvaldo Aranha (principal avenida do bairro) quase na esquina com a Rua Santo Antônio.
Uma mulher está à frente da retomada da vocação histórica da boemia do Bom Fim, principal reduto da noite de Porto Alegre nas últimas décadas do século passado. É Cecília Capovilla, dona do Osvaldo, bar que chama atenção pela intensa movimentação que vem provocando na calçada da Osvaldo Aranha (principal avenida do bairro) quase na esquina com a Rua Santo Antônio.
O sucesso do empreendimento não é casual. Cecília tem um largo currículo de serviços prestados à noite de Porto Alegre, atuando como empresária desde 1997, quando assumiu o controle (em parceria com Antonio Morosini, com quem estava casada à época) do Elo Perdido, bar que ocupou um antigo sobrado de porta estreita, janelas de venezianas e um jardinzinho em frente, na Rua Garibaldi. Na segunda metade da década de 1990, o casarão virou ponto de encontro de um público descolado que circulava pela madrugada no Bom Fim. No interior do prédio, luminárias dos anos 1960 e um antigo televisor de válvulas serviam para dar um ar retrô ao ambiente. No andar de cima, ficava a pista de dança, que preservava o tanto quanto possível a atmosfera doméstica – assim, as pessoas podiam dançar como se estivessem em casa.

"Cecília tem a manha de criar um astral legal para receber as pessoas. É um talento para guiar ambiente de bar”, elogia a radialista Katia Suman. Quando os sócios do Elo Perdido deixaram de ser um casal, a parceria do bar também perdeu o sentido e ela partiu para novos rumos. Abriu a danceteria Electra, na Avenida Cristóvão Colombo, em 2001. A exemplo do Elo Perdido, a ideia era atrair um público alternativo, que buscava opções incomuns de lazer à noite, mas a casa abandonava o clima de brechó para ganhar feições futuristas graças ao visual criado pelo designer Marcelo Bohrer.
Em 2003, Cecília se sentiu atraída pela ideia de um revival do Elo Perdido, que, a essa altura, ainda sob controle de Morosini, havia se mudado para a Avenida Carlos Gomes. Desta vez, a parceria durou menos de um ano: “Se tem algo que aprendi com 27 anos de noite é que não adianta repetir experiências do passado. Bares bem-sucedidos ficam na memória, podem até receber homenagens, mas é impossível trazê-los de volta. Não caio mais nessa”.

Do Elo Perdido, ícone dos anos 1990, aos dias atuais

Depois de se afastar da noite por um longo período – neste tempo, estudou gastronomia e morou em Camboriú (SC) – Cecília retornou à cena boêmia porto-alegrense em 2013, quando produziu, junto com Tais Scherer e Alex Hoff, uma festa que homenageava o Elo Perdido, no bar Ocidente, com pista lotada em meia dúzia de edições.
Em 2014, junto com Eduardo Etchepare (atual sócio do bar Osvaldo), ela voltou a empreender ao abrir o Mini Bar, barzinho de 30 m² na Rua João Telles, defronte ao Ocidente. Ali dentro, mal cabiam dez pessoas. Foi justamente o formato pocket que chamou atenção do público aglutinado do lado de fora, em frente à porta, ávido por consumir drinques e petiscos ao som da trilha sonora do DJ. Essa inusitada mistura de boteco minúsculo com ambiente sofisticado ajudou a reconfigurar (ao lado de bares como Odessa e Josephyna's) a esquina da João Telles com a Osvaldo Aranha, de resto, endereço já consagrado por abrigar o Ocidente, uma legenda da boemia de Porto Alegre, que completou neste mês 41 anos de atividades.
Para Cecília, o Mini Bar foi uma experiência inédita – pela primeira vez, ela tinha um bar de calçada. Até aí, havia investido em casas noturnas, que não dialogavam com o vai-e-vem da via pública. “O projeto do Mini Bar foi uma escola não só para mim, mas também para os movimentos de festas de rua, que apareceram logo em seguida”, afirma. Só que o espírito aventureiro da empreendedora falou mais alto e ela começou a pensar na próxima parada: o Osvaldo (outro bar de calçada, mas bem mais espaçoso e confortável), que Cecília abriu em novembro de 2020. “Bar de rua é o que precisamos neste momento, em função da pandemia. Não tem que se enfurnar em lugar fechado”, sentencia o publicitário Miltinho Talaveira, que se proclama “embaixador” do Osvaldo.
Além de cervejas e drinques, preparados pelo bartender Cris Magrinho, o atual empreendimento de Cecília conta com a participação de DJs como Luciano Benites, Fabrício Milkshake, Ricktocadisco (Ricardo Pont) e Manoel Canepa. A partir de janeiro, ela reservará uma noite exclusiva durante a semana para DJs do sexo feminino, como Taís Scherer, Paula Posada, Kika e Nina Sodré. É uma forma de marcar posição em favor da ampliação do espaço das mulheres na vida noturna.
Não que ela, pessoalmente, sinta-se acuada na profissão que escolheu, até porque desenvolveu anticorpos para combater preconceitos e discriminações. Mas reconhece que, muitas vezes, as manifestações machistas vêm de onde menos se espera: “Fico pensando que, por ter um componente cultural, o machismo se manifesta em pessoas que nos cercam – aquele amigo, parente ou sócio que se acha no direito de dar palpite errado ou mesmo te jogar para baixo. Já os que não têm intimidade comigo, os que estão no balcão e me veem como dona do bar, esses nem chegam perto. Eu não dou chance”, afirma.

A garota sangue bom da Cidade Baixa

Natural de Belford Roxo (RJ), Joicy Gama lidera o Porto Carioca, tradicional bar na Rua da República

Natural de Belford Roxo (RJ), Joicy Gama lidera o Porto Carioca, tradicional bar na Rua da República


ANDRESSA PUFAL/JC
Um pedacinho do Rio de Janeiro na Cidade Baixa. É como Joicy Gama classifica o Porto Carioca, bar que ela administra desde 2011 na Rua da República, um dos principais núcleos de aglutinação do bairro boêmio de Porto Alegre. Faz sentido. Afinal, Joicy saiu de Belfort Roxo (onde nasceu), na Baixada Fluminense, para se afirmar como empresária na capital gaúcha. Oriunda de uma família de poucos recursos financeiros – a mãe, Tânia Maria, era empregada doméstica, e o pai, Getúlio, trabalhava como estofador de sofás –, ela foi cantora de uma banda de funk antes de se mudar para o Sul do País. “Com o passar do tempo, perdi a paciência com o universo do funk. É um ambiente machista, complicado para mulheres”, explica.
A vinda para Porto Alegre se deu após conhecer um gaúcho que passava férias no Rio e com quem se casaria logo a seguir. Os dois se encontraram durante o show dos Rolling Stones nas areias de Copacabana, em fevereiro de 2006. Aqui, Joicy trabalhou como caixa das Lojas Americanas, além de promotora de vendas e atendente de uma loja de artigos para cabeleireiros, até criar coragem para abrir o próprio negócio. “Desde cedo eu sonhava em ‘ser alguém’ e, na minha cabeça, isso queria dizer ser dona do meu próprio nariz”, assinala ela.
Para realizar o sonho, juntou as economias guardadas a duras penas para comprar um jogo de quatro mesinhas e 16 cadeiras instalado no Porto Carioca. A solução de gaps de infraestrutura se fez com improvisos e muita criatividade – a geladeira do bar, por exemplo, veio do apartamento em que morava. Já a falta de conhecimentos sobre como preparar drinques foi resolvida por meio de consultas a sites da internet. Atualmente, o Porto Carioca oferece variada opções de bebidas, com destaque para o Color Drink, combinação de vodca, energético e um licor de livre escolha do cliente.
O cardápio, por sua vez, carrega o sotaque do Rio de Janeiro nas receitas herdadas de dona Tânia Maria, mãe de Joicy, como a Panqueca da Casa, com recheio de frango, carne moída ou de panela, além de molho vermelho e orégano. Antes da pandemia, que obrigou a empresária a redimensionar as ofertas gastronômicas, havia outros pratos que lembravam o estado natal, como Garota Sangue (título de uma canção de Fernanda Abreu) e Bezerra da Silva (sambista pernambucano, que fez fama em terras cariocas). Em compensação, a coxinha da asa temperada na cerveja salpicada com pedacinhos de alho continua à disposição do público, com o nome de Quero-Quero, tido como Sentinela dos Pampas, para refletir a porção sulista do bar da “cariúcha”, como ela própria se define.
Joicy admite que, por ser carioca e negra, talvez, tenha enfrentado alguma resistência a mais do que esperava como empreendedora na boemia sulista. “As pessoas podem ser preconceituosas, mas cabe a você aceitar ou não. Às vezes, reconheço, é bem cansativo. Mas acho que meu sorriso ajuda”. Além da simpatia, ela conta com uma enorme força de vontade para superar barreiras e se aprimorar cada vez mais – no momento, está participando de um curso de chef de cozinha no Senac. Recentemente, negociou com a prefeitura a instalação de um parklet com plantas como boldo, hortelã e manjericão, em frente ao bar, para ampliar a área de atendimento na parte externa, adaptando-se aos tempos ainda sujeitos a impactos da pandemia.
A clientela predominantemente LGBTQIA+ do Porto Carioca se formou pouco tempo após a abertura do bar, no começo da década de 2010, período em que os frequentadores da Cidade Baixa, identificados com a diversidade sexual passaram a ocupar em grande quantidade o trecho da Rua da República, entre a Lima e Silva e a Avenida João Pessoa. Mas Joicy não gosta de rótulos: “O Porto Carioca não é exclusividade de um público ou de outro. Na verdade, é um bar brasileiro”, diz ela, lembrando as influências que recebeu ao longo da caminhada que fez para chegar até aqui. “E, se for o caso de me rotular, então diga aí: Joicy é uma mulher que saiu de Belfort Roxo com pouco dinheiro e montou um bar de sucesso. Além disso, ela ama o que faz”.

A volta por cima da dona do Gaudério

Luciana Almeida da Silva precisou se reinventar após perder o emprego no início da pandemia

Luciana Almeida da Silva precisou se reinventar após perder o emprego no início da pandemia


ANDRESSA PUFAL/JC
Os efeitos da covid-19 e da crise econômica alteraram a vida de muita gente. Luciana Almeida da Silva (hoje dona do bar Gaudério, na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto), por exemplo, precisou se reinventar em março de 2020, quando perdeu o emprego no serviço de call center da NET, onde trabalhou durante 25 anos. A dispensa coincidiu com a eclosão da pandemia, o que dificultou ainda mais a situação de quem estava à mercê da instabilidade do mercado de trabalho.
Menos mal que ela já havia desenvolvido outras habilidades, em paralelo à atividade de atender por telefone os clientes da operadora de tevê a cabo. Desde que Bruno (um dos três filhos) começou a cursar Matemática na PUC/RS – atualmente, o rapaz está formado –, ela se vira obrigada a buscar uma solução para aumentar a renda da família a fim de custear as despesas universitárias. Encontrou a saída usando o talento de cozinheira de mão cheia para vender pasteis, empadas, tortas frias e docinhos aos colegas da NET.
Quando ficou desempregada, os quitutes viraram meio de sobrevivência. Assim, Luciana apostou na tele-entrega das refeições que preparava em casa. Para isso, fez um trabalho de formiguinha para divulgar o serviço, distribuindo panfletos de propaganda na caixa-postal dos prédios próximos à Rua João Alfredo, na Cidade Baixa, onde ela mora. Só que, em vez dos salgadinhos, deu prioridade ao bauru com maionese e alho batida a mão (que viria a se transformar em carro-chefe do cardápio do bar Gaudério). As vendas cresceram rapidamente, o que estimulou Luciana a procurar um local fixo para receber aos clientes.
A ideia ganhou corpo ao alugar um terreno na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, onde antes havia uma serralheria. Com algumas adaptações no galpão que servia de garagem para o serralheiro, ela abriu o Gaudério, em julho de 2021. É um autêntico “pé-sujo”, como são chamados carinhosamente os bares populares no Brasil. O bar situa-se na fronteira entre os bairros Menino Deus e Cidade Baixa, que se agita no lado oposto da Aureliano de Figueiredo Pinto. A divisão delimita também o perfil de público. “Estamos em uma avenida com bastante trânsito de automóveis e pouca circulação de pedestres. Não é o fluxo da gurizada que circula na Cidade Baixa”, explica Luciana. Com uma faixa etária predominante de 30 ou 40 anos, os frequentadores preenchem as dez mesas do botequim principalmente aos fins de semana, quando alguns aproveitam para fazer um churrasquinho na calçada.
No balcão, Luciana é obrigada, às vezes, a escutar piadas machistas. “Alguns já vêm com gracinhas e tentam levar o atendimento para outro lado. Mulher que trabalha à noite está sempre sujeita a isso”, lamenta. Nessas horas, ela dá uma “quebrada de gelo” e, se o problema persiste, chama o marido – Maximiliano – ou um dos filhos para falar com o freguês sem educação. A experiência de atendimento ao público na NET ajuda a neutralizar, com antecedência, prováveis aborrecimentos. “A gente vê até pela postura e o modo de falar da pessoa, ao fazer o pedido, se ela tem um comportamento machista. Abordagem é tudo”, assegura ela.
Nada disso atrapalha os planos futuros. Luciana está decidida a seguir em frente como empresária. “Se o Gaudério der certo, tenho projeto de abrir um restaurante. Talvez comece oferecendo almoço aqui mesmo”. Não é de duvidar. Afinal, ela deu a volta por cima ao vencer o desemprego, transformando-se em empreendedora. “Eu me sinto feliz só de ter conseguido sobreviver financeiramente à pandemia. Espero que, quando ela passar de vez, o movimento fique melhor ainda”, conclui.

I love CB - Amor ao bairro mais boêmio de Porto Alegre

Publicitária de formação, a empreendedora Letícia Silveira comanda as noites no tradicional I love CB

Publicitária de formação, a empreendedora Letícia Silveira comanda as noites no tradicional I love CB


ANDRESSA PUFAL/JC
Dona do I Love CB, barzinho cult da Cidade Baixa situado em uma das extremidades da Rua da República, próximo ao Pão dos Pobres, a publicitária Letícia Silveira se vale da experiência profissional anterior, em agências de propaganda ou como responsável pelo marketing de restaurantes, para concluir que machismo não é exclusividade da boemia. “Sempre precisei me posicionar para ter voz ativa, por ser a única mulher nas reuniões. Eu tinha que demonstrar segurança e mostrar que sabia do que estava falando para ser escutada. Ambiente machista existe em todos os setores”, constata ela.
O nome do bar é uma homenagem ao lugar em que ela mora e onde sempre se divertiu à noite. Em meados dos anos 2010, participou da criação da Cidade Baixa em Alta, associação que reunia proprietários e frequentadores de bares em defesa da tradição boêmia do bairro (reduto, aliás, de Lupicinio Rodrigues, principal compositor de música popular do Estado, no século XX). Em uma das reuniões da entidade, sugeriu que se adotasse o nome I Love CB, mas foi voto vencido. A associação não foi adiante, mas a frase em inglês não saiu da cabeça da publicitária, que registou a marca. Em uma atitude que define como “intervenção um tanto nonsense”, chegou a espalhar cartazes com a declaração de amor ao bairro em postes e paredes de prédios, sem ter muita ideia do que ia mesmo fazer.
A princípio, Letícia criou um rótulo de cerveja artesanal produzida pela Abadessa, além de imprimir a logomarca em ecobags e camisetas, que vendia em feiras de rua. Finalmente, quando decidiu abrir um ponto fixo, em abril de 2016, buscou um espaço pequeno não só para economizar aluguel e, com isso, ter recursos de sobra para investir em cervejas de qualidade a preços acessíveis, mas também para criar um clima de intimidade e aconchego. Não por acaso, a proprietária do boteco sabe o nome de quase todos os clientes e também um pouquinho da vida de cada um, ao mesmo tempo que eles, igualmente, conhecem boa parte da história dela.
Como mãe (o filho Téo faz sete anos em janeiro de 2022) e dona de bar, ela diz perceber menos manifestações de machismo no expediente noturno do que na escola do menino ou mesmo entre vizinhos de apartamento, que veem uma mulher tatuada e bem arrumada sair todo final de tarde. “O olhar deles parece perguntar: “De onde será que ela tira dinheiro?’”, relata Letícia. Já nos arredores do I Love CB, quando ela promove festivais de cerveja e música ao ar livre, o único morador com o qual se incomoda é do sexo masculino. “Esse senhor jamais me dirigiu a palavra, embora eu o tenha procurado várias vezes para conversar. Prefere falar com o segurança contratado e evita contato comigo, certamente, por eu ser mulher”.
Em compensação, ela conta com a cumplicidade do público que aderiu ao I Love CB. “Tenho minhas regras, a galera sabe e cumpre”, diz Letícia, com autoridade. Uma delas é sempre devolver a garrafa da cerveja ao balcão, já que o boteco não tem garçom. Outra é respeitar a hora de recolher o violão que circula entre os músicos habitués do bar para não atrapalhar o sossego da vizinhança. Há também a obrigação de usar máscaras para ir até o banheiro no espaço interno (com a pandemia da covid-19, o movimento do bar passou a se concentrar na calçada).
Em nome da preservação desse ambiente de paz, há um pelotão de segurança formado pelos próprios frequentadores. “Quando sinto que algo de ruim pode rolar, aviso a galera e tudo se resolve”, diz Letícia. Para que tudo funcione bem, a microempresária dispõe principalmente da ajuda das clientes, sempre atentas à presença de homens com histórico de mal comportamento. “Elas alertam quando aparece alguém que teve uma atitude machista com alguma amiga ou conhecida, e já ficamos de olho”. No auge da pandemia, que atingiu em cheio o segmento noturno, época em que até cogitou desistir do negócio, o suporte das frequentadoras foi essencial para que o bar não fechasse. “Recebi não só boas energias e palavras de apoio, mas até propostas de ajuda financeira. Isso é resultado de um processo de construção de convivência, do qual muito me orgulho”, afirma.
Mesmo após abrir o I Love CB, Letícia continuou boêmia. Não é raro deixar o estabelecimento aos cuidados de funcionário ou funcionária para se divertir em outros lugares. Mas, ultimamente, com frequência, cedo da noite acaba retornando para o próprio bar a fim de conversar com os clientes. “Aqui me sinto em casa. Quarta-feira é o dia que mais gosto. Como é mais tranquilo do que no fim de semana, dá tempo de sentar no banquinho da calçada e trocar ideias, deixando o tempo passar em um ritmo bem devagar”.

A verdadeira dona da noite

Junto com Lupicinio Rodrigues na imagem, Adelaide Dias fez história com o Chão de Estrelas e o Adelaide's

Junto com Lupicinio Rodrigues na imagem, Adelaide Dias fez história com o Chão de Estrelas e o Adelaide's


arquivo carmen dias/divulgação/jc
Empresárias que, hoje, marcam presença na noite de Porto Alegre encontram inspiração no exemplo de mulheres do passado, pioneiras na conquista de um território marcadamente masculino. Uma das mais célebres, Adelaide Dias, que atuou entre os anos 1960 e 1980, foi homenageada por Lupicinio Rodrigues na canção Dona de bar, de 1973: Eu não vou nunca mais frequentar esse bar / Porque os olhos da dona depois/ Não me deixam sair.
Discreta atrás do balcão, Adelaide preservou a história pessoal sob um manto de mistério, o que fez da morena de feições indígenas e cabelos longos e lisos uma figura enigmática e fascinante para os clientes que a acompanharam em sua trajetória. Em depoimento ao jornalista Marcello Campos, ela contou que havia saído da terra natal, Cerro Azul (PR), aos 20 anos de idade, após enviuvar, em meados da década de 1950. Desembarcou na rodoviária de Porto Alegre “sozinha, apenas com a roupa do corpo”, como descreve uma das filhas, Carmen.
Fora isso, sabe-se que, antes de abrir o bar Adelaide’s, na Rua Marechal Floriano, no Centro da capital gaúcha, em 1967, ela havia trabalhado em café, pizzaria e salão de cabeleireiro. Para virar empresária, recorreu a um empréstimo no Banco da Província, que passaria por várias fusões com outras instituições bancárias antes de ser estatizado como Banco Sul Brasileiro – atualmente, pertence ao Santander. Quem liberou o financiamento foi o jornalista Fernando Albrecht, hoje titular da coluna Começo de Conversa, do Jornal do Comércio, que à época era bancário e tinha, entre suas atribuições, analisar a concessão de empréstimos para pessoas físicas.
A princípio, o Adelaide’s se concentrava em servir almoços até que Lupicinio – que batia ponto no escritório de uma sociedade arrecadadora de direitos autorais, alguns quarteirões adiante, e almoçava ali todo dia – sugeriu: “Ô Adelaide, por que a gente não traz para cá o pessoal da música?”.
Foi o que bastou para que o bar reunisse a nata dos músicos da cidade, incluindo os violonistas Darcy Alves e Jessé Silva, o flautista Plauto Cruz e o percussionista Azeitona, além de Marino do Sax e Clio do Cavaquinho, que acompanhavam Lupicinio em suas batidas na caixa de fósforo madrugada adentro. Com a atmosfera de encantamento criado por tanta gente talentosa em volta da mesa do bar, não é de admirar que o Adelaide’s atraísse uma clientela fiel, da qual faziam parte, entre outros boêmios, jornalistas como Hamilton Chaves, Melchiades Stricher, Paulo Sant’Ana, Kenny Braga, Danilo Ucha e o próprio Albrecht, àquela altura já exercendo o ofício de repórter policial.
Com o sucesso do Adelaide’s, a empresária criou coragem para dar um salto mais ousado. Em 1971, abriu o Chão de Estrelas, casa de shows na Rua José do Patrocínio, perto da Igreja Sagrada Família, na Cidade Baixa. Ali se apresentaram grandes nomes da MPB, como Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Ângela Maria, Beth Carvalho, Jair Rodrigues, Clara Nunes, Altemar Dutra e tantos outros. “Acho que todo mundo gosta de ter um lugar aonde chegar e ser reconhecido, bem aceito. As minhas casas sempre têm funcionado assim, e eu acho que é por isso que tenho tantos amigos”, afirmou Adelaide ao jornal Terra-Gente, em dezembro de 1978, quando abriu o Clube da Saudade (último empreendimento dela), na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, também na Cidade Baixa.
Quatro anos antes, ela havia se casado com um advogado, frequentador do Chão de Estrelas. No depoimento a Marcello Campos, contou que o marido era ciumento e teria pedido a ela que rasgasse as fotografias antigas com as lembranças do Adelaide’s e do Chão de Estrelas. Em 1989, a pedido do advogado, ela encerrou a carreira de empresária da noite. “Estava apaixonada e, por isso, consentiu em tornar-se apenas uma dona-de-casa”, diz a filha. Adelaide morreu em 8 de agosto de 2009, pouco antes de completar 75 anos. “Antes de tudo, ela foi uma vencedora, porque conquistou tudo o que quis na vida”, conclui Carmen Dias.

Endereços

Bar Osvaldo – Avenida Osvaldo Aranha, 784
Porto Carioca – Rua da República, 188
I Love CB – Rua da República, 695
Bar Gaudério – Aureliano de Figueiredo Pinto, 844

*Paulo César Teixeira é jornalista, com textos publicados em IstoÉ, Veja e Folha de S.Paulo. Escreveu os livros Esquina maldita e Nega Lu – Uma dama de barba malfeita, além de editar o portal Rua da Margem (www.ruadamargem.com)