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reportagem especial

- Publicada em 31 de Outubro de 2021 às 14:00

Riqueza produzida pela lã ajudou a construir a ovinocultura do Rio Grande do Sul

Rebanho ovino, que chegou a 14 milhões de cabeças, atualmente está abaixo de 3 milhões de ovinos

Rebanho ovino, que chegou a 14 milhões de cabeças, atualmente está abaixo de 3 milhões de ovinos


DANIELA BARCELLOS/PALÁCIO PIRATINI/JC
Veteranos da ovinocultura, com pelo menos 30 anos de vivência no ramo, gostam de lembrar que o Rio Grande do Sul possuía boa reputação no mercado internacional de lã, mas as coisas desandaram com a difusão das fibras artificiais no final do século XX.
Veteranos da ovinocultura, com pelo menos 30 anos de vivência no ramo, gostam de lembrar que o Rio Grande do Sul possuía boa reputação no mercado internacional de lã, mas as coisas desandaram com a difusão das fibras artificiais no final do século XX.
Desde então, se inverteu na gangorra do mercado a posição dos principais produtos ovinos. Começando no final da primavera e se prolongando até o auge do verão, a esquila já não enche de dinheiro os bolsos dos criadores, nem estufa as bolsas de lã entregues a barracas particulares e às três cooperativas (de Jaguarão, Quaraí e São Gabriel - todas fundadas em 1952) remanescentes da época boa em que 25 dessas instituições associativas recebiam, lavavam, cardavam e penteavam os fios vendidos depois a indústrias nos mercados interno e externo.

O declínio da produção de lã, que caiu de 40 mil toneladas anuais para 10 mil no Estado, é um reflexo da redução do rebanho ovino gaúcho de 14 milhões de cabeças paras 3 milhões. "A cadeia da lã está no auge da crise que se apresentou há vários anos e foi muito agravada pela pandemia", explica o economista e ovinocultor Edison Yunes Ferreira, 65 anos, presidente da Cooperativa Mauá, de Jaguarão. Ele esclarece: "Com a pandemia, parte da produção do ano passado não foi escoada, pois as indústrias quase não compraram, as lojas de vestuário estiveram fechadas e os consumidores se retraíram".
Em linguajar gaúcho, a crise emergencial montou na garupa da crise estrutural deflagrada pelo baratilho das fibras sintéticas. Totalmente embretada, a face lanígera da ovinocultura é das poucas atividades do agronegócio gaúcho a se manter em crise.
Prima-pobre da pecuária, talvez seja a última a sair do buraco, do qual vêm escapando os adeptos da produção de cordeiros para o mercado da carne. Atualmente, o quilo do cordeiro vivo produzido no Rio Grande está valendo em torno de R$ 10,00, mas a maior parte da demanda do mercado é suprida pelo Uruguai. Em consequência da desvalorização da lã, o RS perdeu a liderança numérica na ovinocultura: atualmente, o maior rebanho é o da Bahia, que cria 5 milhões de ovelhas deslanadas.
Com sua toada levemente saudosista, os veteranos lembram que, ao longo da maior parte do século XX, a lã valia até seis vezes mais do que a carne ovina, consumida basicamente nas fazendas, em festas rurais e em churrascarias. Atualmente, um quilo de lã corriedale, a mais comum, vale R$ 3,00. A única lã realmente valiosa, cotada em torno de R$ 20 o quilo, é a proveniente das raças merino e ideal, mas essas representam menos de 10% do volume de produção gaúcha. Um beco quase sem saída: "Acredito que a lã vai voltar a ter bons momentos graças à revalorização das fibras naturais", diz o presidente da Mauá, "mas tudo indica que o processo de recuperação vai ser lento". Se a ovinocultura não dá saltos, mais devagar caminha o mercado de artigos de lã natural.

Custo da tosquia elevado supera preço pago pela lã

A safra 2021/22 começou em 1º de outubro sem a emoção cantada pelo gaiteiro Telmo de Lima Freitas, que ficou famoso ao ganhar em 1979 o festival nativista de Uruguaiana com o clássico Esquilador ("Quando é tempo de tosquia/já clareia o dia com outro sabor").
Segundo relatou ao Jornal do Comércio o veterinário José Galdino Dias, presidente da Cooperativa de Lãs Tejupá, de São Gabriel, as comparsas de esquila estão cobrando R$ 10,00 por cabeça tosquiada, o que significa que quase toda a lã produzida por uma ovelha comum - 4 kg, em média - mal custeia esse serviço especializado, quase sempre bem pago. Composta por seis pessoas, uma comparsa treinada é capaz de tosar 100 ovelhas numa jornada.
Mesmo com a desistência de alguns criadores e a migração de outros para as raças carneiras, a esquila não é opcional: uma vez por ano, é preciso tosquiar os animais. Em fazendas que reduziram drasticamente seus rebanhos, a tosa virou tarefa dos peões mensalistas ou de vizinhos camaradas, como também acontece em cabanhas especializadas na venda de matrizes e reprodutores - ainda o filé da atividade. Em outras fazendas, vingou em anos recentes o costume de dar a lã como pagamento do serviço, já que alguns esquiladores mais escolados passaram a atuar também como compradores do produto.
Seja qual for a classificação dos fios nas cooperativas e nas barracas particulares, é certo que a maior parte da safra em andamento vai abarrotar galpões que já acumulam lã colhida em 2020/21.
Na cooperativa de São Gabriel, que recebeu 410 mil quilos de lã entre outubro do ano passado e março último, restam armazenadas 100 toneladas de lãs comuns, sem mercado atualmente; nas outras cooperativas e em barracas particulares, também são grandes os estoques.
Num contexto em que somente as raras lãs finas (de merino e ideal) são sempre procuradas, a retomada do mercado laneiro depende, basicamente, da movimentação dos mercados chinês e europeu, ambos "parados", segundo a voz resignada dos mercadores. A Tejupá já está recebendo lã de alguns dos seus 4400 associados, mas ainda sem fechar negócios de venda. Como já viu de tudo nesse mercado, o presidente Galdino mantém um fio de esperança de que as coisas vão melhorar após a doma da pandemia.
 

Com os negócios parados, indústria opera com ociosidade

Com a cadeia de negócios travada, desperta algum otimismo a atividade de duas fiações paulistas - Lanobrasil e Paramount - no recebimento e beneficiamento primário da incipiente safra de lã no Estado. Alegando estar operando com uma ociosidade de 70% na unidade de Uruguaiana, onde explorava as instalações de uma cooperativa desativada, a Paramount passou a atuar apenas em Bagé, onde já vem recebendo lã. Já o uruguaio Raul Oliveri, gerente de compras da Lanobrasil, com instalações em Guaíba, disse que o mercado está travado também no Uruguai, o grande comprador da produção gaúcha nos últimos anos - e lá os estoques também se acumularam com a pandemia. A paradeira atinge mais ainda os pequenos estabelecimentos. "Não está fácil", reconhece Fabio Ely, sócio-diretor da Fiolã, de Taquara. Se o segundo semestre do ano passado já havia sido "mediano", o atual está "quase insuportável", pois praticamente não houve reposição de estoques de lojistas e demais usuários da lã, especialmente artesãos e decoradores, o maior contingente de clientes da Fiolã. Felizmente, não precisou dispensar empregados; na firma, trabalham apenas ele e a esposa Ellen.
 

Ovinocultura exige dedicação e conhecimento

Parcerias busca também qualificar a produção de carne de ovelha

Parcerias busca também qualificar a produção de carne de ovelha


ARCO/DIVULGAÇÃO/JC
Como não pode deixar de ser colhida - sem tosquia, a ovelha fica menos disposta a pastar -, a lã ainda mobiliza periodicamente um exército de criadores, veterinários e trabalhadores especializados. Entretanto, dos 47 mil ovinocultores gaúchos, que se dividem entre fazendeiros da pecuária bovina, agricultores familiares, criadores sentimentais e comerciantes de genética (os cabanheiros), a maioria derivou para a criação de ovelha-carne, mas nem sempre usando critérios técnicos.
Ao cruzar raças lanígeras com raças carniceiras, geraram uma confusão desfavorável para os dois campos - a lã gaúcha piorou de qualidade, e a carne não melhorou o tanto esperado, lembra José Galdino Dias, presidente da Cooperativa de Lãs de São Gabriel. Outros criadores reduziram seus rebanhos, e muitos saíram do negócio, desgastados pelos problemas de sempre: o abigeato, as doenças, a falta de um manejo caprichado.
No recente acordo de parceria entre órgãos técnicos como a Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (Arco) e a Secretaria Estadual da Agricultura, não se busca apenas a produção de carne (de cordeiro), mediante o aprimoramento genético, mas também o melhor aproveitamento da lã pela indústria têxtil e por praticantes do artesanato.
O criador André Camozatto, coordenador da Câmara Setorial de Ovinos da Secretaria da Agricultura e da Comissão de Ovinocultura da Farsul, lembra que a Arco assumiu a responsabilidade de certificar a lã gaúcha, abrindo caminho para uma gradativa recuperação da qualidade.
Prevendo uma longa tropeada em busca de anos melhores, há mudanças em curso. Com 1500 associados militantes no registro genealógico de seus animais, a Arco já preparou um manual de certificação da lã, mas também orienta quem queira dar prioridade à produção de carne - e acolhe ainda os que criam animais de dupla aptidão. Em algumas propriedades, ovelhas já são esquiladas também em março/abril, antes da época da parição. Em outras, trata-se de mudar a época das coberturas, de modo a evitar a mortandade de cordeiros abatidos pelo frio.
Apesar do revés da pandemia, órgãos técnicos comprometidos com o desenvolvimento da pecuária no Sul acreditam na expansão da ovinocultura em pequenas e médias propriedades rurais, onde é possível manter de 10 a 20 cabeças por hectare, com manejo racional. Em sítios e fazendolas distantes dos centros urbanos, a ovelha pode ser a atividade principal ao lado de outras como a apicultura, a piscicultura, a fruticultura, a avicultura, a silvicultura e pequenas lavouras temporárias. É o que ocorre na região do Alto Camaquã.
Nas grandes propriedades, a ovinocultura perdeu muito espaço para lavouras, especialmente a soja. Galdino Dias, da cooperativa Tejupá, cita o exemplo de São Gabriel, que tinha 30 mil hectares anuais de lavouras de arroz e, em anos recentes, chegou a ter 170 mil hectares sobretudo de soja. Situação aparentemente irreversível no momento.
Segundo um estudo técnico em fase final de elaboração na Secretaria da Agricultura, o rebanho gaúcho de ovinos chegou ao fundo do poço - com 2,9 milhões de cabeças - e, daqui por diante, tende a se recuperar, mas sem o elã de outrora, quando apenas a receita da lã garantia o custeio anual das fazendas.
 

A praga do abigeato

As ovelhas são um dos alvos prediletos dos praticantes do abigeato - furto e abate noturno, no campo -, causando prejuízos até maiores do que doenças. O abigeato exaspera e desanima os criadores porque supera de longe as chamadas perdas naturais, provocadas por gaviões, lobos campestres e cães famintos.
Ao contrário do que se supõe, o abigeato não se esgota em si mesmo. Por estar intimamente ligado aos abates clandestinos e ao comércio informal de carne de ovelha, ele impede que o mercado se organize. Frigoríficos planejados refluem por falta de regularidade na oferta. No Rio Grande do Sul, "a pátria da ovinocultura brasileira", mais da metade dos abates são informais. E os preços finais da carne de ovelha seguem fora do alcance da classe média.

Programa incentiva produção de animais no interior

Trabalho de qualificação do rebanho na região de Caçapava do Sul foi prejudicado pelas interrupções ocorridas durante a pandemia

Trabalho de qualificação do rebanho na região de Caçapava do Sul foi prejudicado pelas interrupções ocorridas durante a pandemia


Lorena Riambau Garcia/divulgação/jc
Na região mais acidentada do Pampa, na bacia do alto Camaquã, a Embrapa de Bagé implantou há mais de dez anos um programa para produzir carne de cordeiro em áreas impróprias para a agricultura mecanizada. No início, o projeto andou lentamente porque a maioria dos produtores, vítimas de um isolamento histórico, não tinha o hábito de trocar informações técnicas. Começou a deslanchar a partir das evidências de sucesso do pastoreio rotativo em piquetes divididos por cercas elétricas.
Depois, surgiram as compras coletivas de insumos e as vendas conjuntas de cordeiros, seguindo o exemplo de um grupo de ovinocultores de Caçapava do Sul, que haviam criado a marca Cordeiros da Província - exemplo usado como referência para o lançamento do selo de qualidade da Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), fundada em 2009.
No seu melhor momento, a ADAC congregou 420 famílias reunidas em 21 associações comunitárias que, situadas em apenas 3% do território estadual, respondem por 20% da ovinocultura gaúcha. Além da carne de cordeiro, o selo da ADAC passou a ornar outros produtos típicos da agricultura familiar, como artesanato em couro e lã, fruticultura, mel, bolos e doces caseiros como a figada.
Pena que há um ano e meio, com a pandemia, os ovinocultores dessa área foram "abandonados", diz Marcos Borba, criador do programa e hoje na direção de pesquisa da Embrapa Pecuária Sul.
Nos 830 mil hectares de solos rasos e relevo acidentado no terço superior da bacia do rio que deságua na Laguna dos Patos, estima-se que vivam 40 mil habitantes rurais em contraste com os cerca de 300 mil urbanos das oito sedes municipais do projeto: Bagé, Caçapava do Sul, Canguçu, Encruzilhada do Sul, Lavras do Sul, Pinheiro Machado, Piratini e Santana da Boa Vista.
Com a pandemia sob controle, os técnicos devem voltar a circular no alto Camaquã, historicamente isolado por imensas dificuldades de comunicação geradas por uma sucessão de serras e vales semidesertos onde os laços sociais são mais fortes do que as redes virtuais.
Por suas próprias características geobotânicas, essa região ficou à margem da modernização econômica baseada na mecanização da agricultura. Assim a paisagem, a fauna, a flora e a cultura locais foram conservadas. Desde o início, os produtores do alto Camaquã foram alertados para o fato de que a paisagem regional, com sua oferta alimentícia natural, não é um obstáculo ao desenvolvimento, mas um diferencial que os torna únicos.
Graças a esse enfoque, já se reconhece que os "campos sujos" podem configurar uma vantagem nutricional em relação aos "campos limpos" homogeneizados por duas ou três forrageiras exóticas. Como diz o veterinário José Galdino Dias, presidente da Cooperativa de Lãs Tejupá, "a melhor raça de ovelha é aquela que melhor se adapta ao local onde é criada". Há regiões onde a ovelha-lã vai melhor do que a ovelha-carne. E vice-versa. O Alto Camaquã é um dos redutos da ovelha crioula, que ficou dois séculos "escondida" nos fundos de antigas sesmarias.
 

A alma do Rio Grande do Sul em fios de lã

Salvo um ou outro lance pontual, a única novidade a animar os ovinocultores na última Expointer foi a assinatura de convênios entre órgãos oficiais - Secretaria da Agricultura, Emater, Farsul, Arco (Associação dos Criadores de Ovinos) - que se comprometeram a trabalhar pela recuperação da ovinocultura e a valorização dos seus produtos. Para não ficar no binômio carne x lã, os convênios incluíram a promoção do artesanato, ofício pouco visível mas capaz de agregar valor às chamadas lãs cruas, desprezadas pela indústria de fiação e tecelagem. Não por acaso, um dos segmentos mais otimistas da cadeia da lã no momento é o de artesanato, que sempre esteve presente no cotidiano dos gaúchos, embora sem desfrutar de amplo reconhecimento.
O artesanato lanígero ganhou extraordinária visibilidade a partir de uma exposição feita em julho de 2019 no Memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. "O artesanato é a alma das nossas casas", exclama a museóloga Letícia de Cássia, organizadora da exposição. Para justificar seu entusiasmo, ela lembra que em todo lugar, principalmente em residências e galpões, há peças de lã como boinas, colchas, mantas, ponchos e meias grossas para ajudar a gauchada na travessia dos invernos. Tudo isso sem contar baixeiros e outros utensílios da vida campeira.
Dois anos depois do evento que atraiu e mobilizou profissionais e curiosos de todo o Rio Grande, a cidade de Bagé saltou na frente ao abrir em setembro último um centro de referência em artesanato de lãs, cujo exemplo está sendo repicado em outras cidades - Dom Pedrito, Piratini, Candiota, Hulha Negra e São Gabriel.
Tudo isso é fruto de uma mobilização de profissionais voltados para o estudo e a promoção do ofício que conjuga arte e trabalho com matérias-primas nativas. Como os recursos para isso provêm de editais e convênios, o andamento das coisas depende do engajamento de órgãos oficiais de municípios dispostos a ajudar na montagem de arranjos produtivos locais. Por exemplo, a prefeitura de Bagé já ofereceu uma área dentro do prédio onde funcionava a extinta cooperativa de lã.
Ali deverá funcionar provavelmente um dos núcleos regionais do futuro Museu da Lã, que busca preservar o conhecimento tradicional de artesãs que desde sempre trabalham com a lã crua, produzindo artigos que, a exemplo do que ocorre com as rendeiras do Ceará, se enquadram perfeitamente como patrimônio cultural - Letícia de Cássia e suas parceiras Eliane Simões Pacheco, da Apatur, e Evanir Argento, da Emater, reclamam no IPHAN o registro desse saber-fazer (know how) típico do RS. Depois de superada a burocracia para usar o selo do IPHAN, a meta final é definir a Rota da Lã, que já está no ar em alguns pontos do território rio-grandense.

'Artelanato' vira realidade por meio de artesãs e pesquisadoras da região de Bagé

Clara Silveira Luz Vaz e Letícia de Cássia enaltecem a importância do 'saber-fazer' da lã produzida no RS

Clara Silveira Luz Vaz e Letícia de Cássia enaltecem a importância do 'saber-fazer' da lã produzida no RS


ANDRESSA PUFAL/JC
A veterinária Clara Silveira Vaz está escrevendo suas memórias, um esforço afetivo-intelectual que deve abranger pelo menos três aspectos ou capítulos mais conhecidos de uma vida majoritariamente dedicada às ovelhas, "esses animais maravilhosos". O capítulo mais antigo gira em torno do seu apego ancestral à sesquicentenária Fazenda Santa Anália, no fundão do distrito da Palma, a 90 km da cidade de Bagé - ali ela se criou e passa a maior parte do tempo, explorando os 526 hectares que lhe couberam como herança. Já o relato tecnicamente mais denso foca o trabalho de pesquisa profissional por mais de 30 anos na Embrapa Pecuária Sul, onde fez o resgate genealógico das ovelhas crioulas, remanescentes dos primeiros animais domésticos trazidos da Península Ibérica para o Sul da América pelos colonizadores espanhóis e portugueses.
Por fim, a história mais emocionante do ponto de vista humano é provavelmente o registro do saber-fazer das artesãs rurais que passaram a vida tecendo baixeiros, cobertores, mantas e ponchos com lãs cruas rejeitadas pelas indústrias de fiação e tecelagem. São três capítulos que se juntam numa única história pessoal, da qual poderia fazer parte, ainda, o exercício do magistério em escola rural conhecida por brizoleta, onde deu aulas por cinco anos antes de entrar por concurso na nascente Embrapa.
A vida iniciada nas terras ganhas do governo imperial pelo seu tataravô, um Silveira vindo de Portugal, acabou determinando os rumos da carreira como veterinária formada em 1973 na UFSM. Na fazenda cheia de capoeiras, matas e rochas, 400 metros acima do nível do mar, criavam-se as tais ovelhas rústicas não reconhecidas nos registros genealógicos iniciados em 1942 pela recém-fundada Arco, que impôs critérios rígidos para seleção de raças internacionais - corriedale, merino, ideal, île de france, romney march, karakul, texel etc. Apesar da discriminação, as crioulas não pereceram nos fundos de campos de criação de bovinos e equinos. Pelo contrário, revelaram-se mais resistentes do que as raças famosas.
Até hoje a doutora bageense não sabe explicar como conseguiu convencer a Embrapa a custear a pesquisa sobre animais tão rústicos e que representam apenas 1% do rebanho ovino do RS. Demorou mais de vinte anos, mas a ovelha crioula conquistou um lugar no registro genealógico da Arco, que reconhece a existência de dois ecotipos - o fronteira e o serrano. A pesquisa para a salvação do germoplasma da crioula começou com a doação à Embrapa de três carneiros e 30 ovelhas por três fazendas - uma de Bagé (família Silveira, da própria pesquisadora) e duas de Uruguaiana (Maurício Costa e família Pons). Posteriormente, dando ouvidos a antigos relatos sobre ovelhas criadas nos Campos de Cima da Serra, a Embrapa incorporou à pesquisa um carneiro e sete ovelhas dados por Antoninho Camargo, fazendeiro em Lages; por fim, ganhou mais duas ovelhas "serranas" de dois fazendeiros de Vacaria.
Quanto ao levantamento do trabalho artesanal com a lã, a pesquisadora bageense reconhece que não teria chegado lá sem a parceria com os profissionais de assistência social e extensão rural da Emater. Trabalhando em conjunto, Emater e Embrapa fizeram o resgate do ofício de velhas camponesas que, na zona rural e/ou nos arrabaldes de cidades do Pampa, fabricavam peças de vestuário ou decoração aproveitando fios sem serventia para as indústrias - justo a lã das crioulas e outras ovelhas criadas ao deus-dará. Não à toa Bagé abriu, em setembro passado, um centro de referência no artesanato em lã, coordenado pela gestora cultural e museóloga Letícia de Cássia.
Foi inesquecível, para Clara Silveira, o dia em que descobriu, já morando na cidade de Pinheiro Machado, as quatro irmãs Leandro, todas solteiras, instruídas nas confecções artesanais pela mãe velhinha, já cega, mas espantosamente lúcida no trato da matéria-prima que lhe garantiu o sustento familiar. Com emoção Clara pergunta: "Acreditas que, mesmo sem ver, apenas com o tato, ela identificava a cor de cada fio de lã?" Isso foi há muitos anos, mas é um episódio que dá uma ideia da abrangência da prática do artesanato laneiro no Rio Grande do Sul.
Segundo Clara Vaz, um levantamento feito em 1996 pela Fundação Gaúcha de Artesanato identificou 2500 artesã(o)s que trabalhavam com lã, couro, chifre e feltro. Os mais numerosos, mais de 700, eram os de lã. Nesse primeiro cadastro de artesãos gaúchos, Clara recebeu a carteirinha nº 001, não por ser pesquisadora da Embrapa, mas porque desde jovem praticou o 'artelanato'. Hoje, ela estima que apenas os artesãos de lã somam mais de 3 mil, uns buscando renda, outros distração.

Ovelhas crioulas, apreciadas pela rusticidade da raça

Fios mais grossos se prestam ao artesanato e à tapeçaria artística

Fios mais grossos se prestam ao artesanato e à tapeçaria artística


Keké Barcellos/Embrapa/divulgação/jc
As 30 mil ovelhas crioulas puras ou cruzadas não estão sozinhas. Ao seu lado, perfilam-se as chamadas ovelhas naturalmente coloridas que produzem lãs de fios grossos em tonalidades que variam do preto ao bege e passando pelo marrom e o cinza prateado. Todas elas saíram da marginalidade graças a uma combinação de fatores positivos. Um item decisivo para a sobrevivência das crioulas é sua rusticidade, atributo que se firmou graças à marginalização.
Mal cuidadas, sujeitas às intempéries, as crioulas ganharam resistência natural, tornando-se menos suscetíveis a doenças que afetam os rebanhos comuns, especialmente as verminoses. Uma das características do carneiro crioulo são os chifres, úteis para ataque e defesa. E seus membros são longos, sem lã, o que facilita a fuga de predadores. Com a depreciação da lã branca, esmagada pelas fibras sintéticas, a lã de ovelhas escuras ganhou novo valor pelas possibilidades de agregação de valor mediante trabalhos artesanais.
Seus fios grossos se prestam tanto a artesanatos rústicos como para tapeçarias artísticas. Com uma dezena de tons distintos, as lãs crioulas podem ser tingidas por banhos em caldas de cascas, folhas e raízes de vegetais do pampa como o alecrim, a carqueja e a chirca, entre outros que, segundo a cultura popular, devem ser colhidos de manhã cedo na lua nova.

* Geraldo Hasse é jornalista especializado em agricultura. Trabalhou por mais de 30 anos na mídia do Sudeste e escreveu uma dezena de livros