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reportagem especial

- Publicada em 11 de Julho de 2021 às 22:23

Milho: de esteio das roças a commodity global

Por anos, produção nacional foi utilizada como ração barata de suínos, aves e gado leiteiro

Por anos, produção nacional foi utilizada como ração barata de suínos, aves e gado leiteiro


FERNANDO DIAS/SEAPDR/DIVULGAÇÃO/JC
O milho já não é a mais caipira das lavouras e deixou de ser o esteio das roças da agricultura familiar para se tornar mais uma commodity agrícola global, ao lado da soja, do trigo e do arroz, os principais alimentos do planeta, seja para os animais ou seres humanos.
O milho já não é a mais caipira das lavouras e deixou de ser o esteio das roças da agricultura familiar para se tornar mais uma commodity agrícola global, ao lado da soja, do trigo e do arroz, os principais alimentos do planeta, seja para os animais ou seres humanos.
Por muito tempo a produção brasileira de milho garantiu-se sobretudo como ração barata de suínos, aves e vacas leiteiras, mas o status dessa lavoura se modificou bastante nas últimas duas décadas graças ao aumento do rendimento, da área plantada e da produção - e até da exportação, o mais recente fator de valorização do grão.
Ainda que seu papel mais importante seja como ração animal, em combinação com o farelo da soja, o milho possui um lugar de destaque como matéria-prima embutida em uma centena de diversos outros produtos.
Pode parecer estranho, mas o subproduto amido de milho, por exemplo, é utilizado de diversas formas: desde ingrediente para sobremesas e misturas para panificação até na produção de papelão ondulado, na mineração e na confecção de cosméticos, giz e mesmo na confecção de explosivos.
Já os amigos modificados são encontrados em balas de goma, alimentos infantis, fitas gomadas e em peças de tecelagem. Outro derivado, a dextrina, tem aplicação em lixas, adesivos e na mineração, por exemplo. E a lista é enorme: os subprodutos de milho são utilizados em cerca de 150 diferentes produtos industriais, segundo informações da Associação Brasileira da Indústria do Milho (Abimilho).
Tem muita história por trás do cereal. Na ponta mais primitiva da cultura do milho, ligada aos primórdios da agricultura nas Américas, estão os chamados milhos crioulos, cultivados por agricultores que produzem para consumo próprio e guardam sementes para replantio ou trocas com outros sitiantes. Eles são prestigiados por cientistas e técnicos como guardiães de variedades que, mesmo tendo baixa produtividade, merecem ser preservados por seu valor genético.
Há 100 anos, foram criados nos Estados Unidos os milhos híbridos, resultantes do cruzamento das mesmas linhagens. Graças à alta produtividade, eles se tornaram dominantes.
Desde meados da última década do século XX, prosperam os milhos transgênicos, cultivados por agricultores mecanizados e dependentes de fornecedores de insumos (sementes, fertilizantes, remédios contra doenças e venenos para pragas).
Os três tipos de milho têm defensores entre agricultores, técnicos de campo e profissionais empenhados em diversas atividades ligadas à agricultura. Eles se opõem quanto aos conceitos de rentabilidade econômica e sustentabilidade ambiental.

A saga do milho híbrido nasceu em campos mineiros

Em dezembro de 1945, o jornalista capixaba Rubem Braga publicou Um pé de milho, uma de suas crônicas mais famosas. Na sua escrita simples, isenta de rebuscamento, ele contou que no seu quintal na rua Julio de Castilhos, no bairro Copacabana, no Rio de Janeiro, nascera, por acaso, um solitário pé de milho. Os amigos que o visitavam faziam troça, dizendo que aquilo não era milho. Era sim. Quando aquele exemplar de Zea mays (nome científico do cereal) chegou a dois metros de altura, o cronista o comparou a um cavalo empinado em noite de luar; uma madrugada, parecia um galo cantando. Daí sua conclusão: "Meu pé de milho é um belo gesto da terra".
Coincidência ou não, na mesma época nascia em Viçosa (MG) a Agroceres, pequena empresa que se propunha a difundir no Brasil o milho híbrido, uma das mais recentes invenções da agrociência norte-americana. Eram cinco sócios, sendo dois americanos e três brasileiros liderados pelo agrônomo Antonio Secundino de Araujo, mineiro de Patos formado na primeira turma da Escola de Agricultura de Viçosa, fundada em 1926.
Nos anos 1930, quando era professor de genética, Araujo passou uma temporada como bolsista do estado de Iowa (EUA), onde conheceu o trabalho do geneticista Henry Wallace, criador da Pioneer, a primeira empresa americana de sementes híbridas. Depois de percorrer lavouras experimentais em diversos estados ianques, ele voltou para Minas carregando diversas linhagens do novo milho, que demorou cerca de 10 anos para se adaptar ao Hemisfério Sul.
Secundino aliara-se ao esforço ianque para ensinar aos países latino-americanos novas técnicas agrícolas mais produtivas, com a ajuda de máquinas, fertilizantes e sementes melhoradas. Era uma campanha não apenas técnico-comercial, mas ideológica, em defesa do sistema capitalista de produção, contra a propagação do comunismo. Não por acaso, o principal patrocinador dessa causa foi o magnata norte-americano Nelson Rockefeller, que criou a International Basic Economy Corporation (Ibec), fundo que por mais de 30 anos deteve o controle acionário da inicialmente carente Agroceres. A Ibec também patrocinou experiências de correção de solos que redundaram na conclusão de que bastaria usar calcário para abater a acidez das terras do Cerrado.
Nas primeiras pesquisas, a Agroceres utilizou o milho nativo catete, atingindo uma produtividade extraordinária para a época: 5.300 kg por hectare, mais de três vezes o rendimento médio da cultura no Brasil - em torno a 1.500 kg/ha. A partir da venda de saquinhos de apenas um quilo aos pioneiros, a Agroceres espalhou-se pelo Brasil. No Rio Grande do Sul, sua ponta de lança foi instalada em Carazinho. Em 2007, a Agroceres foi comprada pela Bayer.

Fomento e capacitação impulsionaram a lavoura

Expansão do cultivo e da agroindústria hoje resulta em grande número de parceiros, da pesquisa aos insumos

Expansão do cultivo e da agroindústria hoje resulta em grande número de parceiros, da pesquisa aos insumos


/FERNANDO DIAS/SEAPDR/DIVULGAÇÃO/JC
Um dos pilares da campanha norte-americana pela difusão do milho híbrido foi o fomento rural. Até então isolados e praticando técnicas rudimentares, os agricultores passaram a ser orientados por técnicos contratados por associações de crédito e extensão rural, precursoras das atuais Emater. A primeira dessas associações nasceu justamente em Minas. Sua missão era difundir o saber trazido dos EUA por bolsistas brasileiros.
Assim como o fundador da Agroceres, muitos agrônomos brasileiros fizeram mestrado e doutorado em universidades americanas, tendo contato direto com cientistas, agricultores e agroindústrias dos principais estados produtores de grãos. Essa espécie de integração acadêmica vai completar um século e é praticada em todas as escolas brasileiras de agronomia. Evidentemente, é um tipo de cooperação com um irresistível viés econômico. Se demorou a vingar com o milho, foi bem mais rápida com a soja, cuja difusão foi iniciada nas primeiras décadas do século XX.
Nos anos 1920, um dos primeiros técnicos brasileiros a buscar aprendizado nos EUA foi o agrônomo paulista Henrique Löbbe, que passou anos testando variedades de soja na estação experimental do Ministério da Agricultura em São Simão, no cerrado do nordeste paulista, região em que a leguminosa chinesa arrancou rumo ao Brasil Central nos anos 1980.
Nesse caso, a parceria de técnicos oficiais com indústrias de óleos vegetais deu aos agricultores a convicção de que valeria a pena apostar no futuro da soja. Veio a reboque a indústria de farelo para ração animal que ajudou a viabilizar a agroindústria de carnes, um dos sustentáculos da economia dos estados do sul. Foi nessa onda que pegou carona a cultura de milho.

A atual expansão da lavoura e da agroindústria do milho tem muito mais parceiros, a começar pela Embrapa, que passou a trabalhar em conjunto com a indústria de insumos. Junto a esse aparato técnico, estabeleceu-se no Brasil uma máquina de propaganda segundo a qual não há nada melhor para o agricultor brasileiro do que operar segundo o sistema agrícola
americano.

A bola da vez são as sementes transgênicas, que consagram a aliança entre a pesquisa, a indústria química, a indústria de máquinas, a indústria processadora de grãos e os mercados consumidores, todas embaladas num sofisticado esforço de guerra que faz parece infantil a ofensiva de décadas passadas, quando um dos instrumentos da propagação do "american way of life" foi a revista Seleções do Reader's Digest, fundada em 1922 e que passou a ser impressa em português em 1942.
Num artigo dos anos 1950, Seleções elogiou os maias por terem sido "os homens feitos de milho", mas nunca ligou para o fato de que todos os indígenas do Brasil cultivam o cereal milenar, fazem festas anuais em torno do milho e mantêm uma série de lendas e ritos associados a esse grão.

A ciranda do quarteto soja, trigo, milho e arroz

Aposta inicial do Paraná, milho safrinha se expandiu para o Centro-Oeste e hoje produção é essencial para atender à demanda de consumo

Aposta inicial do Paraná, milho safrinha se expandiu para o Centro-Oeste e hoje produção é essencial para atender à demanda de consumo


/MARCELO BELEDELI/ESPECIAL/JC
Há 50 anos, a vertiginosa expansão da lavoura de soja produz mudanças surpreendentes no panorama rural brasileiro, destacando-se a ocupação (compartilhada, na maior parte dos casos) de espaços antes pertencentes ao trigo, ao milho e ao arroz, os três principais grãos da agricultura nacional.
No final dos anos 1960, a soja começou a ser cultivada, no verão, em terras usadas no inverno pelo trigo, no Rio Grande do Sul. Era para ser bom para os dois grãos, em rendimentos agrícolas e financeiros, mas em poucos anos a oleaginosa superou o cereal e cá estamos: a soja se tornou líder do agronegócio ao se espalhar por grande parte do território nacional, enquanto a triticultura, ainda concentrada nos Sul, atende apenas a metade do consumo nacional de farinhas para massas alimentícias.
Na busca contínua por áreas férteis, os sojicultores gaúchos descobriram, nos últimos 15 anos, que poderiam plantar soja em terras baixas, originalmente drenadas para o cultivo de arrozais irrigados.
Em consequência dessa nova modalidade de substituição de culturas, grandes áreas deixadas em pousio (descanso) pelos arrozeiros voltaram a ter uso agrícola no verão, gerando para os proprietários rurais receitas maiores do que a auferida com a exploração da pecuária extensiva. A área cultivada de soja no Rio Grande do Sul só bateu o recorde de 6 milhões de hectares graças ao uso de terras baixas, numa proporção de mais de 10% do total. Antes da entrada no século XXI, o milho cultivado no verão já cedia muito espaço à soja, o mais rentável dos grãos. Em consequência dessa substituição de culturas, muitos produtores (de milho e de soja) passaram a plantar o cereal na resteva da oleaginosa colhida precocemente em fevereiro. Cresceu assim, no Paraná, o chamado milho-safrinha, que produz menos do que as lavouras normais, por causa do fotoperíodo, mas em duas décadas deu-se a grande virada: ao alastrar-se para o Centro-Oeste, o volume de produção das "safrinhas" de milho ultrapassou largamente o que antes era a safra do período ideal. Mesmo deslocadas da época mais favorável, as safrinhas representam 80% da produção de milho do Brasil.

O agricultor familiar na encruzilhada

Pequenos produtores têm mesma tecnologia que os grandes, por isso devem ganhar em eficiência, alerta Rugeri

Pequenos produtores têm mesma tecnologia que os grandes, por isso devem ganhar em eficiência, alerta Rugeri


/ALEXANDRO AULER/arquivo/JC
Para o agrônomo Alencar Rugeri, diretor técnico da Emater-RS, a agricultura familiar chegou a uma encruzilhada decisiva em relação ao que sempre foi sua especialidade - a lavoura de milho.
"Atualmente, como tem acesso à tecnologia disponível para os grandes, o agricultor familiar está na obrigação de ser mais eficiente em produtividade, já que, por falta de área, não pode ganhar na escala de produção", diz ele, lembrando que aos técnicos da Emater, comprometidos com a ajuda técnica aos pequenos, só resta um trio de alternativas expresso nos verbos "acreditar", "defender" e "apostar". Por causa do frio, o Rio Grande do Sul não dispõe da saída dos agricultores paranaenses, que plantam o milho safrinha em fevereiro, após a colheita da soja precoce; tampouco pode fazer como os produtores do Centro-Oeste, que exportam sua produção de milho e se preparam para usar o grão para produzir etanol.
Aqui, o diretor da Emater-RS vê com bons olhos a experiência de agricultores da costa do alto Uruguai, "de Santa Rosa para cima", que começaram a plantar milho em julho, para colher no final da primavera.

Alta no preço do milho preocupa indústria da carne

Cereal representa atualmente cerca de 70% dos custos de produção exclusivamente com ração

Cereal representa atualmente cerca de 70% dos custos de produção exclusivamente com ração


/ANDRé netto/ARQUIVO/JC
A expansão da produção de milho está "mexendo" com a agroindústria brasileira de carnes. Em nome do segmento de carnes de frangos e suínos, a Federação da Agricultura do Estado de Santa Catarina (Faesc) vem reclamando dos preços internos do cereal, que representa 70% do volume das rações. Acomodada com os baixos preços do milho ao longo de décadas, a agroindústria catarinense cresceu vendo a principal zona de produção deslocar-se para o Mato Grosso, onde o cereal está se viabilizando, também, como insumo de biocombustível.
O crescimento da produção interna de etanol de milho indica que o Brasil tende a copiar o modelo americano. Campeões mundiais de produção, os EUA usam as sobras do cereal para fabricar o combustível renovável similar ao etanol produzido a partir da cana-de-açúcar no Brasil. O etanol americano consome 15% da safra de milho.
Atualmente, o Brasil já entrega 850 mil toneladas de milho para a produção de biocombustível, mas a tendência é que esse volume aumente com a construção de mais usinas que só produzam etanol de milho, gerando subprodutos como óleo, amido e farelo (DDG) - este, com 26% a 30% de proteína especialmente adequada para a pecuária.
Embora tenha um papel importante na alimentação de aves, suínos e bovinos, o milho ainda não alcançou o status institucional da soja. Nas estatísticas da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove), só quem brilha é a soja. É compreensível: enquanto o grão de milho tem apenas 4% de óleo, o da soja varia de 17% a 20%.

Safra do milho terá perda de 3%, prevê a Conab

Plantio do milho segunda safra fora da janela ideal deixou as lavouras mais vulneráveis ao clima

Plantio do milho segunda safra fora da janela ideal deixou as lavouras mais vulneráveis ao clima


/WENDERSON ARAUJO/CNA/DIVULGAÇÃO/JC
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) revisou para baixo a estimativa da safra de grãos este ano no País, conforme levantamento divulgado na semana passada. Segundo a companhia, as condições climáticas adversas registradas durante o cultivo da segunda safra afetaram as projeções de produtividade nas lavouras, reduzindo a previsão em 1,3 milhão de toneladas.
A Conab explicou que o plantio tardio de milho segunda safra trouxe impacto para o desenvolvimento das lavouras. Com a semeadura sendo realizada fora da janela ideal, o grão ficou mais vulnerável às condições climáticas registradas no período.
"O clima adverso em algumas regiões produtoras influenciou de maneira negativa na produtividade estimada do cereal, e a colheita da segunda safra do grão deve atingir 66,97 milhões de toneladas, queda de 10,8% se comparada com o período anterior. Na previsão de junho, a colheita com o cereal estava projetada em 69,96 milhões de toneladas. Mesmo com os problemas enfrentados, a estimativa de produção total do cereal é de 93,38 milhões de toneladas, queda de 3,1% ante 2019/20 (102,59 milhões de t), uma vez que na 1ª safra a colheita ficou em torno de 24,9 milhões de toneladas e para a 3ª é esperada uma produção de aproximadamente 1,5 milhão de toneladas. Com a atualização, a produtividade do milho 2ª safra pode atingir 4.502 quilos colhidos por hectare na atual safra - queda de 17,5% em relação à 2019/2020. A expectativa é que a produção atinja 262,13 milhões de toneladas em 2020/2021.
Geraldo Hasse é jornalista especializado em agricultura. Trabalhou por mais de 30 anos na mídia do Sudeste e escreveu uma dezena de livros.