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Reportagem especial

- Publicada em 20 de Junho de 2021 às 19:47

Ciclo do charque ainda se reflete na economia de Pelotas

Charqueada Santa Rita é um dos pontos turísticos que faz parte do roteiro histórico e cultural

Charqueada Santa Rita é um dos pontos turísticos que faz parte do roteiro histórico e cultural


CAMILA DOMINGUES/PALÁCIO PIRATINI/DIVULGAÇÃO/JC
Nem sempre comércio e serviços sustentaram a economia de Pelotas, na zona Sul do Estado, como ocorre hoje. Foi na produção do charque, o alimento de escravos libertos "embarcados" e famílias pobres do Brasil imperial que o município viveu seu apogeu econômico, principalmente pelos atores envolvidos - charqueadores e uma numerosa mão de obra escravizada.
Nem sempre comércio e serviços sustentaram a economia de Pelotas, na zona Sul do Estado, como ocorre hoje. Foi na produção do charque, o alimento de escravos libertos "embarcados" e famílias pobres do Brasil imperial que o município viveu seu apogeu econômico, principalmente pelos atores envolvidos - charqueadores e uma numerosa mão de obra escravizada.
"Pelotas não inventou o charque, mas o charque e a escravidão inventaram Pelotas", costuma dizer o livreiro e pesquisador Adão Monquelat, autor de vários títulos sobre a história do município. Dentre eles, em parceria com Valdinei Marcolla, Desfazendo mitos (Livraria Mundial, 2ª edição), publicado em maio de 2012, às vésperas da celebração dos 200 anos em que o então povoado se elevou à condição de freguesia - Freguesia de São Francisco de Paula, em 7 de julho de 1812.
Faz tempo. E tempo maior ainda faz que existiam charqueadas com força de trabalho escrava no espaço onde a cidade se erigiu. O pioneirismo que até o trabalho da dupla Monquelat e Marcolla era atribuído ao português José Pinto Martins é, com provas documentais, um dos mitos desfeitos.
Hoje, o Ciclo do Charque ainda tem participação na economia, mas de uma forma diferente. A Rota das Charqueadas, um roteiro desenvolvido por propriedades remanescentes da época, atrai turistas gaúchos, de fora do Estado e também de outros países por seu patrimônio histórico, cultural e arquitetônico.

Economia e turismo de Pelotas vivem a história das charqueadas

 A dança dos orixás, da Companhia Afro Daniel Amaro, ocorre em frente às antigas senzalas

A dança dos orixás, da Companhia Afro Daniel Amaro, ocorre em frente às antigas senzalas


Leandro Barbosa/divulgação/jc
Pelo menos quatro charqueadas permanecem de pé na margem direita do arroio Pelotas. E há pelo menos 20 anos essas edificações se voltam às atividades de turismo, eventos (bastante forte em Pelotas) e hospedaria.
Marcelo Mazza Terra, proprietário da Charqueada São João aposta na visitação turística. A propriedade já serviu de locação para produções audiovisuais de época, como a minissérie A casa das sete mulheres e o filme e minissérie O tempo e o vento, de Jayme Monjardim.
Bem-vindas produções, essas. Com elas, as visitações "explodiram", segundo o empresário. "Absorver a história é um produto diferenciado do turismo da Zona Sul do Estado", afirma. Otimista, aposta que a demanda reprimida provocada pela pandemia vai superaquecer o setor após a crise sanitária.
Por isso não vê a hora de tirar do papel os projetos que têm para o local - erguido pelo charqueador Antônio José Gonçalves Chaves em 1810. Até a pandemia, na São João se ofereciam visitas guiadas (recebia excursões de alunos do Ensino Fundamental e Médio de todas as regiões do Rio Grande do Sul), passeios de barco pelo arroio Pelotas e canal São Gonçalo para até 30 pessoas e alimentação - além de locação para fotos para formandos, escavações em parceria com o curso de Arqueologia da niversidade Federal de Pelotas(UFPel) e apresentações do espetáculo A dança dos orixás, da Companhia de Dança Afro Daniel Amaro - realizado em frente às antigas senzalas. Para o além Covid, pretende oferecer acomodações que façam da Charqueada São João também uma pousada ecológica.
A São João tem como vizinhas outras três charqueadas: Santa Rita, Boa Vista e Costa do Abolengo. Todas contam com planos de expansão que possam atrair mais turistas para a região. A Santa Rita oferece pousada e espaço para eventos. Enquanto a Boa Vista e a Costa do Abolengo, ambas da mesma família, abrem para eventos - cancelados desde o início da pandemia, em março de 2020.
A Costa do Abolengo também serviu de locação para o cinema. Nela, foi filmado o longa Domingo, de Fellipe Barbosa e Clara Linhart. O filme está disponível no canal de TV por assinatura Telecine e estreou internacionalmente na mostra paralela da competição oficial do Festival de Veneza de 2018. Mostra o almoço de Ano-Novo de uma família burguesa decadente em Pelotas, que tem como pano de fundo para o enredo principal a posse do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003.

O turismo em números

O turismo em números


diagramação/jc
 

Período do Ciclo do Charque se reflete na arquitetura pelotense

Conhecida também pelos "prédios históricos", Pelotas deve ao Ciclo do Charque esse legado. Foi no fim dos anos 1870 que o conjunto de palacetes do entorno da hoje praça Coronel Pedro Osório foi edificado, se constituindo como um dos mais importantes exemplares da arquitetura eclética do País.
Os casarões 2, 6 e 8 foram levantados (o 2 passou por ampla reforma em 1880 para se adequar à "linguagem" dos vizinhos) para residência, respectivamente, dos charqueadores José Vieira Viana e dos irmãos Leopoldo Antunes Maciel (Barão de São Luís) e Francisco Antunes Maciel (Barão de Cacequi).
A ligação charqueada-arquitetura, diz a professora aposentada da Faculdade de Arquitetura da UFPel e doutora em História pela Pucrs Esther Gutierrez, começa pelas olarias localizadas quase no limite dos terrenos das charqueadas. Eram nelas que os senhores empregavam contingente de seus escravos durante a entressafra do charque, para produção de telhas e tijolos.
Esse dado histórico, presente em sua dissertação de mestrado, que mais tarde se tornou livro (Negros, Charqueadas e Olarias: um estudo sobre o espaço pelotense), foi ignorado por outro pesquisador que esteve na zona Sul do Rio Grande do Sul no fim dos anos 1950 para escrever A escravidão no Brasil meridional - sua tese de doutorado em Sociologia pela USP.
Nela, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reforçava a ideia de que a escravidão era dispendiosa para produção de carne salgada porque era sazonal (novembro a abril). Nos demais meses do ano, registrou Fernando Henrique, esta mão de obra no núcleo charqueador-escravista pelotense ficava ociosa.
"Não ficava", rebate Esther. Primeiro, porque a atividade econômica do baronato saladeiril não se limitava à produção da carne salgada. Prossegue: "Eram também agiotas, especuladores imobiliários, empresários da construção civil, investiam em empresas e companhias para execução de obras públicas, alugavam escravos na entressafra do charque e também tinham fazendas".
Depois, continua a professora, porque foi graças ao material manufaturado nas olarias que se pode erguer casas em alvenaria ao longo do século XIX em Pelotas, enquanto no Vale do Paraíba os casarões dos barões do café eram levantados com paredes em taipa de pilão. Com alvenaria. foi possível ornamentar o casario pelotense com a arte decorativa característica da Arquitetura eclética - o que conferiu à cidade um conjunto único no estilo.
Já em seu segundo livro, Barro e sangue, mão de obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas, produzido inicialmente para tese de doutorado, Esther Gutierrez apresenta a divisão étnica no canteiro de obras na Pelotas oitocentista, entre edificações públicas e particulares.
Se pintores eram buscados na colonização italiana, marceneiros entre os alemães e carpinteiros na descendência portuguesa, cabia aos escravizados o trabalho mais duro, de pedreiros e oleiros. Nesse ponto, o núcleo charqueador pelotense reproduziu a escravidão como sempre foi. Diz Esther: "Trabalho na olaria é duro, destinado a escravos, sempre foi assim, desde o Império Romano."

O polo charqueador se consolida

Pioneirismos à parte, o fato é que uma realidade se impõe: poucas décadas depois das primeiras charqueadas, a então Freguesia de São Francisco de Paula se consolidava como o principal núcleo charqueador no Continente de São Pedro.
Em 1830, em torno de quatro décadas após o começo da atividade nos limites geográficos do município, Pelotas contava com 35 charqueadas entre as margens do canal São Gonçalo e do arroio Pelotas. "Uma série de fatores contribuíram para isso", diz o professor de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Jonas Vargas.
Autor de Os barões do charque e suas fortunas (editora Oikos), concebido como tese de doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele aponta a localização privilegiada como um dos principais.
A Freguesia, se a Sudoeste ficava próxima das propriedades rurais da região da Campanha, ao Sul tinha o Norte uruguaio, também a curta distância. Duas regiões até hoje ricas em qualidade e quantidade de cabeças de gado, matéria-prima tão fundamental quanto o sal na indústria saladeiril.
 

Interesse econômico da Coroa

Arroio Pelotas, ao desembocar no canal São Gonçalo, era o principal meio de transporte de escravos

Arroio Pelotas, ao desembocar no canal São Gonçalo, era o principal meio de transporte de escravos


Superintendência PortosRS/divulgação/jc
Charquear no território sul-rio-grandense não era novidade no final do século XVIII, quando se instalaram as primeiras unidades naquele que seria o principal núcleo charqueador do Continente de São Pedro.
Segundo Monquelat, os primeiros registros indicam que, desde 1680, se charqueava por estas paragens. Tarefa que cabia aos moradores de Laguna (SC) e da Colônia do Sacramento. Tanto um grupo quanto o outro invadiam o território para prear gado. Aqui, abatiam os animais e produziam o charque.
Entre as provas, o historiador cita a correspondência enviada pelo brigadeiro Silva Pais, de 12 de março de 1737, pouco menos de um mês após sua chegada ao hoje município do Rio Grande, separado dos então "campos das pelotas" pelo canal São Gonçalo - que liga a Lagoa Mirim à Lagoa dos Patos. Na carta ao vice-rei Gomes Freire de Andrade, o fundador da cidade mais antiga do Estado se queixa das traças e dos enxames de moscas: "uma insanidade. Tudo nascido do charque que aqui faziam".
Embora insalubre, a atividade não era mal vista pela Coroa portuguesa. A compra da mercadoria para abastecer sua armada, assim como ocorria com a rival Espanha, junto aos irlandeses, que dominavam a técnica de produção de "carne embarricada" pelo processo de salmoura, sangrava os cofres lusitanos.
Produzir o próprio charque no além-mar contava com a simpatia do poder colonial não apenas para prover sua Marinha, mas também o tráfico transatlântico de africanos escravizados, tanto para consumo quanto para escambo.

Produção só aumentava nos anos 1800

Em 1830, a ainda Freguesia de São Francisco de Paula (alçada à condição de Vila dois anos mais tarde) contabilizava em seus limites 35 charqueadas, fazendo com que o charque produzido na região já ocupasse espaço importante na economia do Continente de São Pedro. Em 1790, com a abertura dos mercados de Pernambuco e Bahia, o mercado para o produto se torna ainda mais atrativo.
Conforme historiadores, de 1806 a 1820, as exportações de carne salgada para o Rio de Janeiro, capital do Império, representavam entre 15% a 36% do total escoado pelos portos sul-rio-grandenses.
Já entre 1813 e 1822, o charque correspondia a mais de 55% das exportações do continente. O núcleo charqueador instalado em Pelotas respondia por 75% a 90% desta produção.

Falta documentação sobre primeiras charqueadas

Para Monquelat, primeiras charqueadas tiveram por local as margens do arroio Santa Bárbara

Para Monquelat, primeiras charqueadas tiveram por local as margens do arroio Santa Bárbara


QZ7 Produções/divulgação/jc
A primeira unidade para fins de fabricação de charque em grande quantidade, atestam documentos de época, coube ao militar João Cardoso da Silva - que inspirou o personagem do conto O mate do João Cardoso, do pelotense João Simões Lopes Neto (Contos gauchescos, 1912).
Em petições a autoridades da época para resolução de um litígio envolvendo suas terras, encaminhado a Manuel Marques de Souza, Conde de Porto Alegre, João Cardoso é identificado como "o primeiro a estabelecer aqui a fábrica de charques, trazendo, para isso, mestres à sua custa, no ano de 1780". Tal fábrica ficava na beira do rio Piratini, junto às ruínas do Forte do São Gonçalo, hoje município do Arroio Grande, também na zona Sul do Estado, em direção a Jaguarão.
Em 1780, as margens do arroio Pelotas estavam despovoadas, mas não despercebidas. Naquele ano, em que João Cardoso começa a produzir charque em escala industrial, se iniciam negociações com a então autoridade máxima do Continente do Rio Grande de São Pedro, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, para assentar no local famílias açorianas que haviam retornado da região de Maldonado, Uruguai, para Rio Grande - cujo domínio havia sido recuperado pelas forças portuguesas em 1776 após 13 anos de ocupação espanhola.
A presença dos retornados, pouco mais de 40 famílias, "inchou" a Vila, chegando a provocar desabastecimento. Por volta de 1781 cerca de 20 delas foram assentadas nas datas (porção de sesmaria) do Monte Bonito (atual área urbana do município, delimitado à Leste pelo arroio Pelotas) para trabalharem com agropastoreio.
Quanto às primeiras charqueadas junto ao arroio, onde, nos anos que se seguiram, se instalaram às dezenas, não há documentação disponível. "Provavelmente no fim do século XVIII, mais tardar no início do XIX, em áreas onde foram assentados os açorianos retornados", reforça o historiador Adão Monquelat. Para ele, a hipótese mais provável é que as primeiras charqueadas tiveram por local as margens do arroio Santa Bárbara, na zona Oeste da cidade - então terras do capitão Ignácio Antonio da Silveira Cazado. Conforme o historiador, documentos comprovam que, em 1799, o tenente Balthazar Gomes Vianna se estabeleceu ali com "fábrica de charquear e olaria".
E quanto a José Pinto Martins, nome de rua, e a quem durante quase um século a história oficial atribuiu a primazia de dar início à indústria saladeiril em Pelotas? "Um charqueador como tantos", resume Monquelat, que continua: "Não há uma prova documental, por menor que seja, que ateste que ele foi e fez o que não foi e não fez", insiste.
Para Monquelat, por volta de 1780, quando o mercado da produção de charque na região de Pelotas dá mostras de que vai vingar, era mais provável que Pinto Martins estivesse embarcado no eixo Mossoró-Aracati-Recife transportando sal, charque e outras mercadorias. "A não ser que tivesse o dom da onipresença", ironiza.
De acordo com seus levantamentos, a primeira vez que José Pinto Martins aparece no Continente de São Pedro é em representação de 1º de outubro de 1796, como um dos signatários que reivindicavam sal "a Sua Majestade" para que pudessem praticar suas charqueações.
 

Mercado interno e fortunas concentradas

De novembro a abril dos anos 1800, período da safra do charque, o trabalho era incessante. Levantamento indica que até 1850, a cada safra, se abatiam de 350 mil a 400 mil reses nas charqueadas pelotenses.
Em média, 80% dessa produção tinha como destino o mercado interno: Vale do Paraíba (Rio de Janeiro e São Paulo, um núcleo de produção de café), Minas Gerais (província cuja diversidade de bens e produtos mantinha sua economia aquecida mesmo depois do Ciclo do Ouro), e Nordeste, com destaque para Pernambuco e Bahia (produção de açúcar).
O restante tinha como destino o mercado externo - então dominado pela concorrência, o polo charqueador do Rio da Prata, mais barato e considerado de melhor qualidade. Nesse caso, os destinos eram Cuba, que contava com uma enorme população escravizada para trabalhar nas plantações de açúcar, e o Sul dos Estados Unidos, onde essa mão-de-obra se concentrava nas fazendas de algodão.
Lá e aqui, o charque cumpria sua função: barato, ao alcance das classes menos favorecidas, e nutritivo, capaz de manter os trabalhadores escravizados em atividade durante longas jornadas.
O negócio era bom para os donos do capital. Em Os barões do charque e suas fortunas, Jonas Vargas destaca quatro charqueadores que acumularam riqueza expressiva graças ao charque produzido em Pelotas: Joaquim de Assumpção, o Barão de Jarau; o coronel Aníbal Antunes Maciel; José Antônio Moreira, o Barão de Butuí; e João Simões Lopes Filho, o Visconde da Graça, avô do escritor João Simões Lopes Neto.
Os quatro citados tinham, entre as décadas de 1870 e 1890, fortunas compatíveis aos barões do café do Vale do Paraíba e aos dos senhores de engenho do Nordeste. Eram parte constitutiva do topo da pirâmide social do Império. "Eram os mais ricos da província, sem dúvida", afirma Vargas. "Mais que proprietários de grandes extensões de terra."
A lista de nomes de charqueadores com patrimônio acima de 50 mil libras esterlinas não se resume ao quarteto. Conta com mais oito afortunados que ostentavam, numa afirmação de poder e riqueza da sociedade monárquica da época títulos de nobreza, como os de comendadores e barões.
Além de acúmulo de capital, os "barões do sebo", assim denominados pelo poeta pelotense Lobo da Costa, ou "pataqueiros da aristocracia do sebo", na definição do líder federalista Gaspar Silveira Martins, exibiam quantidade notável de vários outros bens, entre fazendas, imóveis urbanos, escravos, dezenas de milhares de cabeças de gado, ações, apólices, embarcações, entre outros.
 

Riqueza da época gerou o Banco Pelotense

Banco foi fundado em 1906 por pecuaristas que se ressentiam da ausência de instituição financeira

Banco foi fundado em 1906 por pecuaristas que se ressentiam da ausência de instituição financeira


Acervo Guilherme P. de Almeida/divulgação/jc
O processo de acumulação de capital que se estendeu ao longo de quase todo o século XIX com o núcleo charqueador estabelecido em Pelotas rendeu frutos no século seguinte.
"Mesmo que não se possa dizer que um ou outro fundador fosse charqueador, ou tivesse sido, claro que de todo aquele capital disponível nasceu o Banco Pelotense", concorda Irajá Rodrigues, ex-deputado federal e ex-prefeito de Pelotas (1976 a 1982 e de 1993 a 1996).
Ele aborda a história da instituição e os problemas que levaram a encerrar as atividades no livro Metade Sul: 110 anos de opressão e luta (1990), no qual se dedica a contar a história de "resistência ao processo político em que a Metade Sul foi prejudicada por sucessivos governos do Rio Grande do Sul", citando as revoluções de 1893 e de 1923, iniciadas por forças políticas da região.
Fundado em 1906 por um grupo de pecuaristas que se ressentiam da ausência de uma instituição financeira que garantisse recursos às suas atividades, o Banco Pelotense acusou golpes que puseram fim a 25 anos de atividades em janeiro de 1931.
Então maior banco da província, a instituição tinha sua matriz em Pelotas, no prédio que hoje abriga a maior agência do Banrisul no município, esquina do calçadão da Andrade Neves com Marechal Floriano.
Agências, aliás, não faltavam ao Banco Pelotense - muitas delas servem ao Banrisul até hoje. De duas unidades em 1906, em Pelotas e uma filial em Rio Grande, em 1911 o banco marcava presença nas maiores cidades do Estado da época. Esse movimento de expansão acompanhou praticamente toda a trajetória. Em 1929, dois anos antes de fechar definitivamente as portas, tinha filiais no Rio de Janeiro, então capital federal, em Belo Horizonte e em Curitiba.
Dono de um patrimônio imobiliário "enorme", após a quebra da bolsa de Nova York, o Banco Pelotense começou a enfrentar problemas de liquidez - apesar do enorme patrimônio imobiliário. Situação que se agravou quando o governo do Estado retirou do BP recursos do tesouro estadual, diminuindo ainda mais as condições de liquidez.
Era 1930, a recessão continuava e, em uma situação difícil, a instituição pelotense procurou o Ministério da Fazenda a fim de solicitar aval em busca de recursos internacionais. "Faltou força política", lembra Irajá Rodrigues. "O mesmo aval negado ao Banco Pelotense foi concedido ao Banco da Província", completa.
Com os caminhos fechados, e um processo de necessidade de liquidez cada vez mais agudo, em assembleia geral os credores decidiram pelo processo de liquidação da instituição.
 

Frigoríficos optaram pela fronteira

Não faltaram tentativas de retomar o núcleo charqueador em Pelotas durante a República Velha (1889-1930). Em vão. Os investidores tinham outro perfil socioeconômico e, com a expansão da malha ferroviária e os recursos advindos da energia elétrica, essas unidades fabris, que no século XIX fizeram a fama do município e a fortuna de algumas famílias, definharam de maneira irreversível.
Nos anos 1920, por exemplo, Bagé tinha mais charqueadas que Pelotas - seis contra cinco. "Até Caxias do Sul teve charqueada nesse período", informa o historiador Jonas Vargas.
No mercado da carne bovina, a hora e a vez eram dos frigoríficos. Executivos de plantas industriais com capital inglês e norte-americano preferiram instalar seus negócios na Fronteira-Oeste em vez de em Pelotas, apesar da proximidade com o porto do Rio Grande.
Em Santana do Livramento e Uruguaiana, essas empresas ficavam próximas das propriedades rurais onde encontravam farta matéria-prima nos dois lados da fronteira. E a malha ferroviária já se estendia até a região, o que oferecia possibilidade de escoar o produto pelo porto do Rio Grande ou via Montevidéu, ao gosto do freguês.
Pelotas bem que tentou embarcar no vagão dos novos tempos. Em 1918, com capital local e regional, foi fundada a Companhia Frigorífico Rio Grande junto ao Canal São Gonçalo, onde existira uma charqueada. Durou pouco.
Em 1921, foi vendida ao The Rio Grande Meat Company - mais tarde, em 1924, Frigorífico Anglo. Acabou desativado em 1926 e retomado 16 anos depois sob o mesmo nome, quando durou décadas. Atualmente, a área de seis hectares, depois de quase 30 anos de completo abandono, é um dos principais campi da UFPel.
 

Mentalidade senhorial

Museu da Baronesa, um dos mais conhecidos e visitados pontos turísticos de Pelotas: parte da edificação tem memória apagada e já não existe mais

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Michel Corvello/divulgação/jc
Jonas Vargas acrescenta outros fatores que também contribuíram para o fim do ciclo do charque, como as condições precárias de infraestrutura na região e a ausência de instituições financeiras capazes de aportar recursos no negócio.
Mas o professor da UFPel alerta para outra questão: a mentalidade. Nesse ponto, Jonas Vargas é cuidadoso com as palavras. Para ele, os charqueadores “não foram muito habilidosos” na transição do trabalho escravo para o assalariado. Compara: saladeiros do Prata já adotavam esse modelo mais de três décadas antes da abolição da escravatura no Brasil, enquanto o núcleo charqueador pelotense se manteve majoritariamente escravista até maio de 1888.
Exceção coube ao tenente-coronel Junius Brutus Cássio de Almeida. Após um giro pelos estabelecimentos saladeiris do Uruguai e da Argentina, o filho de Domingos José de Almeida, ministro da Fazenda da República Rio-Grandense na Revolução Farroupilha, trouxe dos países vizinhos, além de novas técnicas, mão de obra especializada não escravizada – episódio que alguns historiadores definem como “tentativa de branqueamento” nas charqueadas.
A iniciativa foi aplaudida na imprensa pelotense da época. Em 7 de outubro de 1884, o jornal Echo do Sul escrevia que, quem se deparasse com o fardo de charque beneficiado na propriedade, “não deixaria de ter agradável impressão”. Dias depois foi a vez do jornal 11 de Junho tecer loas: “Havia o Sr. Brutus de Almeida se desprendido da velha rotina e à custa de enormes sacrifícios mandara vir com altos salários, pessoal habilitado, da República Oriental, aproveitando apenas como auxiliar o braço escravo.”
Os esforços do charqueador, porém, não foram suficientes para conter a crise que atingiu a maior economia que Pelotas já teve. Se o município ainda contava com 38 charqueadas em 1880, uma década mais tarde não passavam de 12.

Dez mais ricos detinham 53% da riqueza

Esposa do coronel Aníbal Antunes Maciel, Felisbina Antunes da Silva tinha juntamente com o marido em 1871, quando faleceu, uma verdadeira fortuna. Avaliado em mais de 1.893 contos de réis (moeda da época), esse patrimônio se convertia em uma charqueada, 159 escravos, imóveis urbanos, três embarcações de grande porte e cinco estâncias no Uruguai "onde pastavam 25 mil cabeças de gado".
Essa Felisbina rica é apresentada por Jonas Vargas no segundo capítulo do livro, no qual o pesquisador faz a estratificação socioeconômica de Pelotas entre 1850 a 1890, período em que se experimentou o auge e a decadência da indústria saladeiril.
Mas Jonas Vargas, professor de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), também cita o caso de outra Felisbina. Em comum, ambas tinham o nome, conviviam no mesmo espaço geográfico e eram da mesma geração. Termina aí. Do ponto de visa socioeconômico, viviam em mundos bem distintos - tal o abismo que as separava.
Felisbina Francisca Domingues, a pobre, tinha um inventário bem mais modesto: uma casa "em ruínas" perfazia todo o seu patrimônio, além de uma dívida de 246 mil réis que comprometia três quartos do único bem que dispunha. Um anel de ouro cravejado de brilhantes da xará ricaça equivalia a quase cinco vezes essa dívida.
Vargas, no entanto, alerta para não se incorrer na ingenuidade de dividir a sociedade pelotense da época entre ricos e pobres. A estratificação social da Pelotas na segunda metade do século XIX, explica ele, apresentava grau de complexidade que merece análise mais atenta.
Havia pecuaristas, agricultores, o pequeno e o grande comerciante, artesãos, entre outros. Mas a distribuição de riqueza, esta sim, era desigual, apesar da pujança econômica de determinados grupos.

Castigo e morte à beira do arroio Pelotas

Pelotas, 1884, margem direita do arroio Pelotas, charqueada de José Bento de Campos Filho. Segundo um jornalista da época, não identificado pelo blog Pelotas de Ontem (pelotasdeontem.blogspot.com), do pesquisador e livreiro Adão Monquelat, nessa unidade a força de trabalho contabilizava 80 pessoas (70 escravizadas e dez livres). O serviço, segundo o repórter, era “bem dividido, não sendo demasiadamente pesado”, acrescentando que ali, naquela propriedade, “a escravatura era bem tratada”.
No entanto, seis anos antes, em 10 de outubro de 1878, o mesmo jornalista conta o caso de um escravo octagenário enviado à cidade por ordem da esposa do charqueador para “vender quitanda”. No retorno, ao “conferir o caixa”, se constatou que faltavam “cinco patacas de menos”. Estava selada a sorte do ancião. Por ordem do charqueador, foi “mandado estaquear e surrado até exalar o último suspiro”.
Não foi o único caso. Na mesma charqueada, em 1882, outro escravo também foi açoitado até a morte. Foragido da unidade, o “pardo Vicente” havia sido visto na chamada Serra dos Tapes – hoje a zona rural de Pelotas. Capturado, foi novamente levado ao tronco de onde havia escapado. Segundo os órgãos de imprensa da época, teria sido castigado durante vários dias, recebendo “em torno de mil açoites”. Não resistiu aos ferimentos e morreu em agosto daquele ano.

Com braço escravo até a abolição

Al-Alam éprofessor de História da Unipampa

Al-Alam éprofessor de História da Unipampa


/Caiuá Al-Alam/arquivo pessoal/jc
Abril de 1882, reta final da safra do charque, e o viajante norte-americano Herbert Smith, de dentro de uma embarcação que deslizava sobre as águas do canal São Gonçalo em direção a Pelotas, se impressiona com as densas nuvens negras de urubus que pairavam sobre as margens. Enquanto o barco se aproximava, seu olfato foi ferido com um cheiro podre "que lhe causou certa repugnância". Mais adiante descobriu a origem daquele odor: vinha das mantas de carne seca estendidas ao sol misturado às carcaças de bovinos atiradas no mato.
A história é verdadeira. Abre a introdução do livro Os barões do charque. Era nesse ambiente que dezenas ou até milhares de escravizados eram forçados a trabalhar para produzir a riqueza que se concentrava em algumas famílias poderosas da Pelotas do final do século XIX. Não que não houvesse trabalhadores escravizados na província até a formação do núcleo charqueador. Havia, embora não na mesma profusão. Cabe o registro: essa mão de obra estava presente em todos setores da economia brasileira de então, pelo menos até maio de 1888. Esse modelo alcançava tanto a economia de exportação como o mercado interno, e o núcleo charqueador não fugiu à regra.
Até hoje não se encontraram documentos que oferecessem com exatidão o contingente de pessoas em situação de escravidão durante as charqueadas. Estima-se que foram na casa das dezenas de milhares. As condições ajudaram: a produção de charque em escala industrial coincidiu com o franco crescimento do tráfico transatlântico, aliado à terra abundante e ao aumento expressivo da demanda por carne salgada - base da dieta diária dos escravos no maior império escravagista do Ocidente.
Especialista na área da História Social da Escravidão, o professor do curso de História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Caiua Al-Alam reconhece a dificuldade de se encontrar um número aproximado de escravos nas charqueadas pelotenses. Alguns dados, no entanto, ajudam a construir aquela realidade. O primeiro censo da Câmara da Vila de São Francisco de Paula, em 1833 (Pelotas fora alçada a essa condição no ano anterior), dá a medida. Segundo ele, de uma população de 10,8 mil pessoas, 5,6 mil eram escravizados. "Os números foram sempre expressivos, até a abolição", afirma.
Da lei imperial promulgada em 1831, que cunhou a expressão "para inglês ver" (diante da pressão britânica pelo fim do tráfico transatlântico para preservar os interesses da maior potência econômica e militar da época), até 1850, quando da Lei Eusébio de Queirós (novamente sob pressão inglesa, agora mais dura), números apontam para entrada de 750 mil africanos escravizados ilegalmente no Brasil. As charqueadas pelotenses foram um dos destinos.
Políticas emancipatórias adotadas no Império para a população escrava foram, segundo Al-Alam, manobras para tornar o fim da escravidão "mais lento e gradual". Caso da lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários, primeira de 1871 (que tornava livres todos os filhos e filhas de mulheres escravas a partir de então) e a segunda de 1885 (que concedia liberdade a escravos com mais de 60 anos).
Dentre essas, a que chama mais a atenção do professor da Unipampa é a de 1884, quando, em um acordo entre os mais ricos da Província, são tornados livres todos os escravizados. Condição: mais quatro, oito ou até dez anos de trabalho (a depender do contrato) para compensar seus senhores do investimento em comida, roupa e teto. Só em Pelotas, naquele ano, informa Al-Alam, 6,5 mil trabalhadores se encontravam nesta condição nas charqueadas.
"Assim muitos dos senhores ganharam títulos de barão, visconde, comendador", diz. Entre eles, Aníbal Antunes Maciel, o Barão de Três Serros, filho dos milionários Felisbina Antunes da Silva e Aníbal Antunes Maciel. Uma de suas propriedades, a apenas 2,9 quilômetros do centro de Pelotas, é o Museu da Baronesa, um dos mais conhecidos pontos turísticos do município, mas parte desse passado foi apagado: a edificação que servia de senzala não existe mais.
 

A revolta dos nucas raspadas


A concentração de trabalhadores escravizados era foco permanente de tensão na Pelotas da época. Casos de enfrentamentos dentro e fora das charqueadas entre escravos e capatazes e forças de segurança foram inúmeros. Não raro, terminavam em prisões, mortes e feridos.
No episódio conhecido como a Revolta dos Nucas Raspadas salvaram-se todos. Mas sobrou prisão e castigo para os envolvidos. O levante estava previsto para 30 de janeiro de 1848, depois transferido para dali a uma semana, 7 de fevereiro.
A revolta foi descoberta após três escravos, convocados a participar, denunciarem a conspiração aos senhores a quem serviam. Os delatores foram generosos em informações, logo repassadas ao delegado de polícia, José Vieira Viana. Apontaram os aliciadores, para quem eram seus senhores, quem articulava a revolta e o principal traço de identidade do grupo - as nucas raspadas.
A notícia correu entre os charqueadores. A primeira providência foi, na véspera, sábado - 6 de fevereiro, encerrar a escravaria nas senzalas. Em seguida, prisões às dezenas. Documentos da época situam entre 60 a 80 escravos detidos.
“Alarido” na cidade. Todos os negros encontrados com a nuca raspada foram presos. Os que não haviam sido capturados eram submetidos ao suplício pelos seus senhores para entregar nomes.
As principais lideranças eram negros da nação Mina. Seus mentores seriam, de acordo com fontes da diplomacia inglesa na Província, espanhóis que assediavam escravos para levá-los ao Uruguai. O país vizinho recém havia abolido a escravidão. Na Banda Oriental, o destino dos nucas raspadas seria a liberdade no exército do general Manuel Oribe.
Já entre os delatores, a historiografia conta que ao menos um foi recompensado. O “preto Procópio”, também ele da nação Mina, recebeu no dia 3 de março de 1848 carta de liberdade do seu senhor, Luiz Manoel Pinto Ribeiro, além de 97 mil réis do delegado José Vieira Vianna.

Legado da presença negra precisa ser aprofundado

Para a professora de Sociologia da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) Carla Ávila o legado da escravidão em Pelotas não é despercebido. No entanto, avalia, precisa ser aprofundado.
"O pelotense enxerga o histórico das pessoas escravizadas muito da perspectiva do sofrimento e do trabalho braçal", afirma. Tem mais: ela aponta essa presença em outros aspectos da cultura pelotense, como gastronomia, religiosidade, manifestações artísticas, futebol. A lista não é pequena.
Sobre o charque, Carla percebe que prevalece um viés ligado à riqueza, "a uma Pelotas dos ricos". Apesar de iniciativas para quebrar esse paradigma, as charqueadas que se mantém de pé às margens do arroio Pelotas, diz a professora, se tornaram ambientes elitizados, para celebração de um estrato mais elitista da população.
Apesar disso, não é cética quanto aos avanços que reivindica. Lembra que a discussão sobre políticas afirmativas tem apenas 20 anos no Brasil, somente em 2010 foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial e em 2012 se instituíram as cotas. "É uma construção nacional, ao mesmo tempo que a discussão avança a resistência a essas conquistas também", lamenta.

Quatro décadas marcam o auge e o declínio em Pelotas

Fonte das Nereidas, na Praça Coronel Pedro Osório, é uma herança da época do Ciclo do Charque

Fonte das Nereidas, na Praça Coronel Pedro Osório, é uma herança da época do Ciclo do Charque


/SECULT/DIVULGAÇÃO/JC
Apesar de se manter no topo das exportações da economia local e regional, entre 1850 a 1890 o núcleo charqueador de Pelotas viveu seu apogeu e declínio. Maior dificuldade EM obter mão de obra escravizada, perda de mercado e falta de apoio político explicam a derrocada.
A carne salgada produzida ao Sul do Continente de São Pedro competiu, em condições de igualdade, com a concorrência do Prata até 1850. Ganhou sobrevida na Guerra do Paraguai, nos anos 1860, como fornecedora para acampamentos militares do exército brasileiro, e, a partir daí, começou a perder terreno.
A pressão externa intensificada na década anterior pelo fim da escravidão tornou mais difícil repor a força de trabalho nas charqueadas, combinada à promulgação de leis emancipatórias para o contingente escravizado. Ao mesmo tempo, saladeiros uruguaios e argentinos, que ofereciam um produto considerado de melhor qualidade, começam a, enfim, prevalecer no concorrido mercado do Vale do Paraíba, obrigando o charque gaúcho a se voltar para o Nordeste - menos atrativo e mais distante, o que encarecia o frete.
Além disso, mais grave que a alta do frete, era a situação em que se encontrava o mercado açucareiro. Nos anos 1870, o principal parceiro comercial do núcleo charqueador, que adquiria nada menos que 80% da carne salgada manufaturada em Pelotas, estava em declínio. Esse fenômeno não passou despercebido. Charqueadores como Visconde da Graça e Aníbal Antunes Maciel já faziam, na época, movimento de migração do vasto capital acumulado com investimentos em ações, apólices e seguros.
E, embora economicamente poderoso e responsável pela produção de um alimento estratégico no Brasil escravagista, o baronato charqueador não tinha a mesma força política dos seus pares do café. Realidade distinta dos concorrentes platinos, que controlavam os governos de seus países.
Além de contribuir para a arrecadação, o capital acumulado na produção de charque também circulava no município. Dentre os empreendimentos que tiveram aporte de charqueadores, se destacam dois na Pelotas do século XIX: a Companhia Hidráulica Pelotense e a desobstrução da foz do canal São Gonçalo.
Com as obras da Companhia Hidráulica a população teve acesso à água potável canalizada do "ribeiro Fragata", a pouco menos de "três léguas do povoado". Os trabalhos começaram em 1871 e foram finalizados em abril de 1874.
No ano anterior à inauguração do sistema, dois terços da canalização já estavam concluídos, dois chafarizes instalados bem como uma represa no arroio Moreira.
Um terceiro chafariz, colocado em seguida aos dois primeiros, todo de bronze, na praça Dom Pedro II, atual Coronel Pedro Osório (onde está até hoje - denominado Fonte das Nereidas), foi digno de nota na imprensa da época, como mostra o blog Pelotas de Ontem: "quatro cavalos que ornam a segunda bacia atraem as vistas para sua posição, e porque sobre eles a água espadana em mil gotas, que brilham aos raios do sol".
Desobstruir a foz do canal São Gonçalo, que liga a Lagoa Mirim à Lagoa dos Patos, era sonho antigo dos charqueadores pelotenses. Em 1833 os charqueadores Domingos de Almeida e Gonçalves Chaves já haviam criado uma associação com esta finalidade.
 

*Roberto Ribeiro é natural de Pelotas e jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas. Atualmente, trabalha como repórter e assessor de comunicação freelancer.