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Reportagem especial

- Publicada em 11 de Junho de 2021 às 18:10

Ambiente de pandemia expõe problemas na cadeia do leite

Descontada a inflação do período, aumento no valor alcançou 11,42%

Descontada a inflação do período, aumento no valor alcançou 11,42%


CAMILA DOMINGUES/PALÁCIO PIRATINI/JC
 
 

A cadeia gaúcha do leite foi responsável, em 2020, por um valor bruto de produção de R$ 4,20 bilhões, distribuído entre os 50,6 mil produtores vinculados à indústria. O problema é que, agora, com o ambiente de pandemia, a pressão da taxa de câmbio sobre os custos e a concorrência dos importados, o abandono da atividade volta a assombrar a cadeia de laticínios no Estado - a principal do País.
A realidade não chega a ser uma novidade para o setor que, em 2015, contava com 84.199 produtores, mas chegou a 2019 com apenas 50.664, numa retração drástica de 39,8% do efetivo em quatro anos. Boa parte das 33.535 desistências passa por estes tipos de dificuldades. Além disso, em dois anos, o número de municípios com alguma atividade leiteira caiu de 467, em 2017, para 457, em 2019.
A quantidade de cidades ainda envolvidas com a produção também denota que a atividade é um importante instrumento de desenvolvimento regional. Por aqui, no Rio Grande Sul, os pequenos e médios produtores, ou seja, aqueles com produção entre 50 litros e 200 litros diários, representam quase a metade da cadeia produtiva.
Juntos, somam 47,29% das propriedades e respondem por mais de um terço - 32,48% - das vendas para a indústria de laticínios. Já os grandes, com produção entre 300 litros e mil litros de leite/dia são 22,07% dos produtores e abocanham 38% das vendas para a indústria. Em 2015, para se ter uma ideia, a proporção era diferente. Os grandes detinham 24,72% das vendas à indústria, enquanto pequenos e médios respondiam por 49,99%, isto é, a metade do mercado.
A comparação - extraída em análise do Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite no Rio Grande do Sul, em 2019, produzindo pelo Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (SindilatRS) e pela Emater-RS - não revela apenas o quanto à qualificação é capaz de influenciar positivamente os índices de produtividade, mas sim, a relevância dos volumes e da escala para obter os melhores retornos de precificação.
"Percebe-se que aqueles que já têm escala estão aumentando. A produtividade por propriedade rural e por animal também cresce, a despeito da redução do número de produtores. O ideal seria reduzir a quantidade de abandonos e proporcionar que os que hoje têm uma escala menor, aumentem", resume o secretário-executivo do Sindilat-RS, Darlan Palharini.
Mercado para isso existe. O Estado é autossuficiente e cerca de 40% dos 4,55 bilhões de litros produzidos anualmente ficam por aqui. Os 60% restantes são vendidos para outras unidades da federação. No entanto, o desafio é atingir um patamar de custos que deixe margem de retorno satisfatória para ampliar a competitividade. Isso ocorre no setor de aves e suínos, por exemplo, segmento em que o Brasil se destaca interna e externamente. E, é justamente aqui nasce o problema.


 


 

Formação de preços busca dar transparência para o setor

Valor de referência é praticado no Rio Grande do Sul desde 2006

Valor de referência é praticado no Rio Grande do Sul desde 2006


Racool_studio/freepik/divulgação/jc
O valor de referência do leite, projetado para maio com base nos primeiros dez dias do mês, é de R$ 1,52, no Rio Grande do Sul. O indicador foi divulgado no dia 25 passado, durante reunião virtual do Conseleite (Conselho Paritário Produtores/Indústrias de Leite do Estado do Rio Grande do Sul) e já foi calculado com base nos novos parâmetros de custo aprovados pela Câmara Técnica.
O professor da Universidade de Passo Fundo Marco Antonio Montoya explica que o preço de referência é praticado no Estado desde 2006. Foi pensado, porque os produtos agrícolas, especialmente, leite e carne, pertencem ao que se denomina “mercados imperfeitos”. Isso ocorre em razão do oligopólio das indústrias (frigoríficos, fábricas de laticínios). Ou seja, poucas indústrias e muitos volumes processados. Nestes casos, por óbvio, a Lei da oferta e da demanda, que tende a reger o mercado, acaba não sendo o balizador mais justo.
Ao longo da história, comenta Montoya, surgiram várias técnicas para contemplar a formação ou regulação de preços. Nos últimos anos, emergiu a ideia do preço de referência. “Cria-se um conselho entre produtores e indústria, com igual número de votos. Este conselho paritário se reúne para minimizar as desconfianças na formação dos preços”, explica.
A universidade e Montoya fazem o cálculo, com base no custo de produção para todo o Rio Grande do Sul. Segundo Montoya, ninguém é obrigado a segui-lo, mas é algo que baliza. “Melhor assim do que no grito. E, no fundo, quem dá a fé pública é a universidade, pois ela não tem interesse em beneficiar a indústria ou aos produtores, tem interesse, sim, em beneficiar a cadeia com um todo”, resume.
Ele revela que os dados são sigilosos, pois envolvem acesso aos custos de produção das indústrias. Há ainda um contrato com cláusulas de responsabilidade. “Fazemos isso. Pegamos as negociações dos primeiros dez dias de cada mês, para fazer a previsão, e depois o fechamento do mês, para o resultado consolidado”, conclui.

Importados influenciam no preço pago aos produtores

Queijos estão entre principais produtos nacionais ameaçados pela entrada dos estrangeiros

Queijos estão entre principais produtos nacionais ameaçados pela entrada dos estrangeiros


Racool_studio/freepik/divulgação/jc
O setor do leite convive com mudanças drásticas em curtos espaços de tempo. De março de 2020 até hoje, por exemplo, as incertezas foram inúmeras. Depois de absorver o primeiro impacto da pandemia na formação de estoques, foi possível assimilar o momento.
Houve então uma reversão nos preços, na demanda e também no consumo. A bonança durou até setembro, quando as importações entram em campo e turbinaram a oferta no mercado interno, principalmente no leite em pó e nos queijos.
Inicialmente, comenta o secretário-executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios e Produtos Derivados (Sindilat-RS), Darlan Palharini, a conjuntura, diminuiu o ímpeto de aumento de preços ao consumidor, o que, por consequência, deu um breve fôlego ao produtor. O problema é que, nos primeiros quatro meses deste ano, de janeiro a abril, o ajuste não chegou e as importações seguiram a todo vapor.
No período, o déficit na balança comercial de laticínios já soma 40,6 mil toneladas. Leite em pó integral, leite em pó desnatado, queijos e soro de leite são os principais produtos nacionais ameaçados pela entrada dos estrangeiros. Alguns, como é o caso do soro de leite, por falta de produção. Outros, a exemplo de queijos e leite em pó, por critérios de concorrência e qualidade.
O produtor Alencar Zanluchi, de Serafina Corrêa, sente na pele as consequências. "Isso nos afeta demais. A gente vê a produção de leite diminuindo e o número de produtores caindo. Os importados jogam muito produto no mercado e acabam reduzindo demais o valor para o produtor depois", explica.
Darlan Palharini, por sua vez, explica que, no caso do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, as exportações são para outras unidades da federação. De toda a produção nacional, as vendas externas não chegam a 2%. "O Estado é autossuficiente, mas o país é deficitário. Percebemos que há potencial de crescimento justamente por isso, porque, se importamos, é porque falta produto, ou os preços não são competitivos em razão dos nossos estarem muito elevados para concorrer", diz.
Atualmente, as importações representam de 5% a 7% (cerca de 1,75 bilhão de litros/ano) da produção gaúcha industrial inspecionada. Isso equivale a 25 bilhões de litros ano. Em leite em pó, queijos e soro em pó, representariam, em média, 2 bilhões de litros em derivados, ou o equivalente a toda produção do estado de Santa Catarina, por exemplo.
"A queixa generalizada é que os picos de importações acontecem em períodos de safra. A questão é que os produtos entrantes, como leite em pó, acabam abastecendo outras indústrias, como as de chocolate, sorvetes e grandes panificadoras", comenta Palharini.
Deste modo, ao passo em que ameaçam a produção nacional, as importações também cumprem a função de regular os preços ao consumidor final. E é exatamente por isso que os governos que se sucedem não criam entraves ou bloqueios. Afinal, medidas desta natureza traiam efeitos significativos para a inflação nacional, devido ao peso dos lácteos para a aferição dos indicadores oficiais.


 

Alta dos insumos desestabiliza ainda mais a cadeia

Leite ganhou escala, mas cenário é um pouco diferente em relação aos últimos dois anos

Leite ganhou escala, mas cenário é um pouco diferente em relação aos últimos dois anos


keke barcelos/divulgação/jc
O produtor Alencar Zanluchi acompanha as transformações da cadeia há pelo menos 20 anos. Há 17, passou a investir em maquinário, atrás de ganhos de escala. Saiu de 16 litros por vaca, para 33 litros por animal, numa evolução de 116% na produtividade, sem aumentar o rebanho.
A pequena propriedade familiar que mantém em Serafina Corrêa, ao lado da esposa, não é um caso isolado. No pequeno município de 17 mil habitantes, no Nordeste do Rio Grande do Sul, o efetivo do rebanho, em 2004, era de 8.970 cabeças de gado - apenas 3.570 delas destinadas à produção de lácteos, ou o equivalente a 39,7% da atividade pecuária na cidade.
Passados 16 anos e um crescimento de 115,96% no rebanho leiteiro, atualmente, das 8.112 cabeças, 7.710 são vacas ordenhadas - o que equivale a 95% dos animais. A produção dobrou, de 13,79 mil litros, em 2004, para 27,65 mil litros, em 2019, segundo dados do IBGE.
O leite ganhou escala, mas na comparação com os últimos dois anos, o cenário é um pouco diferente. Houve queda de 6,54% no rebanho, que passou de 8.250 vacas ordenhadas, para 7.710 mil em 2019. A produção também caiu, em igual escala, de 6,58%, assim como o valor bruto, que encerrou 2019 em leve baixa de 1,82% - de R$ 29.008,00, em 2017, a R$ 28.480,00, em 2019.
Os reflexos do cenário já são percebidos por Zanluchi, mesmo após ter realizado um investimento, financiado por 10 anos, com juros do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura (Pronaf), no ano passado para a construção de um novo galpão para adequar a criação às exigências das genéticas canadense e americana. "A rentabilidade melhora pela eficiência. Pois conseguimos produzir mais, balanceando a dieta da vaca com melhorias no manejo sanitário e menos problemas curativos. Eu diria que é a profissionalização da atividade que faz com que a renda melhore", aconselha.
Por outro lado, ele chama a atenção para os insumos e o preço referencial. Segundo Zanluchi, no mesmo período do ano passado, ele recebia cerca de R$ 1,50 por litro e, agora, R$ 1,95. "O leite aumentou menos de R$ 0,50 centavos e os custo quase que dobraram. Hoje, trabalhamos com uma margem muito menor do que trabalhávamos no início da pandemia", argumenta.
De acordo com o produtor, a alta dos grãos é uma 'verdadeira tragédia'. "Desestabiliza a cadeia. Eu, por exemplo, vou reduzir rebanho, porque não vale a pena manter todas as vacas, principalmente, as mais velhas que estão em um peso bom. Vale mais a pena mandar para o açougue do que arcar com o custo de alimentação", argumenta. Zanluchi pretende abater 10% do rebanho - quatro vacas, ainda produtivas, que servirão de complemento para o aperto atual nas margens.

*Rafael Vigna é formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande sul em 2009. Vencedor do Prêmio BMF&Bovespa em 2014 e 2015, atuou como repórter online e de economia no Jornal do Comércio de 2009 a 2015. Atualmente reside em São Borja.