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Reportagem Especial

- Publicada em 27 de Setembro de 2020 às 20:37

Curtumes: uma história em constante construção

O Rio Grande do Sul detém 31% do total de indústrias brasileiras que fazem o curtimento da matéria-prima

O Rio Grande do Sul detém 31% do total de indústrias brasileiras que fazem o curtimento da matéria-prima


/grupo minuano/divulgação/jc
Há bastante tempo, o Rio Grande do Sul tem uma relação próxima com a produção de couro. Do Estado, saem muitos dos produtos, beneficiados ou não, que abastecem mercados dentro e fora do País, a uma proporção que o coloca na liderança brasileira do segmento. Também lidera as exportações coureiras no Brasil, graças a uma veia empreendedora que teria iniciado há praticamente dois séculos, segundo é aceito pela maioria dos historiadores, e cuja trajetória se mescla com a de outros importantes produtos feitos aqui e de referência inquestionável.
Há bastante tempo, o Rio Grande do Sul tem uma relação próxima com a produção de couro. Do Estado, saem muitos dos produtos, beneficiados ou não, que abastecem mercados dentro e fora do País, a uma proporção que o coloca na liderança brasileira do segmento. Também lidera as exportações coureiras no Brasil, graças a uma veia empreendedora que teria iniciado há praticamente dois séculos, segundo é aceito pela maioria dos historiadores, e cuja trajetória se mescla com a de outros importantes produtos feitos aqui e de referência inquestionável.
Os curtumes têm importância fundamental nesse sentido, pois não apenas são os locais de produção e beneficiamento do couro, mas lugares onde uma virtuosa parte da história da economia gaúcha foi escrita, e o são até hoje, onde puderam prosperar pelas mais diversas razões. Em sua maioria imponentes pela estrutura, fazem parte do imaginário de muitos profissionais e moradores dos entornos, além de ser o alicerce econômico de cidades e regiões inteiras.
Conforme o relatório de julho de 2020 do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), naquele mês havia exatamente 7.558 trabalhadores na indústria coureira gaúcha. O mais recente levantamento setorial desenvolvido pelo Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB) mostrou que, em 2018, o Rio Grande do Sul contava com 76 unidades produtivas em operação, uma queda em relação aos anos de 2016, quando eram 81, e 2012, com 116. Pouco mais de 31% de todos os curtumes brasileiros estavam localizados no Estado em 2018.
"O Rio Grande do Sul, no contexto nacional, tem uma tradição ímpar na indústria curtidora", destaca o presidente executivo do CICB, José Fernando Bello. De acordo com ele, o Estado também possui o maior parque industrial para fabricação do produto acabado, o último estágio de beneficiamento do couro. Dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia mostram que os gaúchos lideram as exportações do produto com folga, somando, entre janeiro e julho de 2020, US$ 144,7 milhões em receita, 28% da participação nacional no setor. São Paulo está em segundo lugar, com 14,6% do total.
De janeiro a julho do ano corrente, o couro representou 1,7% das exportações do Rio Grande do Sul, mais ou menos o mesmo valor do que foi exportado no período em peças e acessórios de veículos automotivos pelo Estado. Considerando apenas a indústria de transformação, o número sobe para 2,5% do total. As vendas externas gaúchas de couro também tiveram um recuo considerável, com 23,4% de queda no período em relação aos mesmos meses de 2019 e 29,3% sobre janeiro a julho de 2018.
Atualmente, 80% do couro gaúcho é exportado, e apenas 20% permanece no mercado interno. Por isso, o setor acompanha de forma atenta o que está acontecendo além dos limites brasileiros. Ações como o Brazilian Leather, desenvolvida pela CICB, em parceria com a Apex-Brasil, promovem a internacionalização do couro por meio da parceria entre empresas. Hoje, mais de 120 companhias integram o projeto. Em 2019, as exportações brasileiras do produto alcançaram US$ 1,15 bilhão, 51% a mais do que em 2000, quando o primeiro convênio foi assinado. Outra importante medida é a Lei do Couro, mais antiga, de 1965, que padroniza a própria convenção do que é o produto e proíbe chamar de "couro" o material que não seja exclusivamente produzido com pele animal.
O mercado, em si, reconhece a crise existente, especialmente considerando a pandemia, mas observa que o pior pode já ter passado. "Todo o planejamento do setor para o ano de 2020 foi considerado a partir de fevereiro, quando os primeiros sinais de queda no mercado consumidor se fizeram sentir", comenta o presidente executivo da Associação das Indústrias de Curtumes do Rio Grande do Sul (AICSul), Moacir Berger de Souza. De fato, a Covid-19 representou um impacto significativo na maioria dos setores, e não foi diferente na indústria coureira, já que o couro é matéria-prima para outros itens industrializados.
"Fábricas de calçados, artefatos, móveis e, principalmente, a indústria automobilística, pela sua representatividade, acusaram decréscimo nas produções com redução no consumo de matéria-prima", comenta Souza. Os curtumes perceberam a crise antecipadamente em função do movimento no exterior, e puderam readequar os níveis de produção. Desde março, as unidades operam com um nível de ociosidade que diminui aos poucos. "É muito provável que o volume de produção de 2020, considerando mercados interno e externo, não seja muito inferior ao produzido em 2019", projeta Souza.

Evolução das vendas externas

De janeiro a julho deste ano, couro representou 1,7% das exportações do Rio Grande do Sul

De janeiro a julho deste ano, couro representou 1,7% das exportações do Rio Grande do Sul


reprodução/jc
 

Modernização levou à expansão para outras regiões no começo do século XX

Os curtumes se modernizaram no começo do século XX, com aberturas no distrito leopoldense de Novo Hamburgo, contribuindo para a expansão econômica e emancipação do município, em 1927. São desse período os curtume Momberger (1917) e Hamburguez, de Pedro Adams Filho, que exportava couros para a Suíça. Também houve fundações em outras localidades, como Campo Bom, com a família Vetter (1890), em Estância Velha, com o Curtume Bender (1909) e Portão, com o Krumenauer, de 1911 e existente até hoje. O foco se modifica de estruturas artesanais para empresariais, ainda que pequenas, mas relativamente organizadas.
Começou, então, uma expansão para a Serra, Planalto Médio e Vale do Taquari, a partir dos couros de suínos. Em 1917, foi fundado o Curtume Fasolo, em Bento Gonçalves, pelo imigrante italiano Guilherme Fasolo. Depois, veio o curtume Corbetta, Termignoni & Cia., mais tarde Curtume Termignoni, que encerrou as atividades em 1995. Em 1922, o Sul gaúcho volta a ganhar destaque, com a fundação do Curtume Yurgel, em Pelotas, especializado em peles de ovinos e, depois, equinos.
Novos empreendimentos surgiram na sequência e, com a chegada de Getulio Vargas ao poder, em 1940, houve maior intervenção estatal por meio de uma política que buscava a diversificação econômica nacional. Os curtumes começaram a buscar mercados externos e modernizar seu maquinário.
Nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, o couro começou a ser demandado em função de seu uso militar. Ironicamente, o Rio Grande do Sul passou a exportar para países em lados opostos do conflito, como Alemanha e Estados Unidos. Em 1941, porém, por pressão norte-americana, o Brasil cortou relações com o Eixo, passando para o lado dos Aliados no conflito.
Nesse período, o curtimento de atanados era feito da árvore chamada quebracho, que vinha da Argentina, mas que foi substituída pela acácia pela primeira vez nas Américas por um grupo de curtidores que criou a empresa Seta, em Estância Velha, em 1941. Ainda hoje, o cultivo da acácia é um segmento importante para os produtores rurais, principalmente no Vale do Sinos e Encosta da Serra gaúcha. Antes disso, por volta da década de 1930, começou a ser introduzido o cromo para o curtimento.
Assim como outras indústrias, os curtumes passam por estruturação mais acentuada na década de 1950, principalmente voltada à exportação, com a busca de novos mercados no exterior. Em 1957, surge o CICB -Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil.
Seguem-se o segundo governo de Getúlio e o de Juscelino Kubitschek, no qual a indústria nacional é fortalecida. Máquinas começam a ser importadas de nações como Alemanha e Itália, e os curtumes, em geral, iniciam a expansão para se tornar empresas com grande número de funcionários, deixando de lado de vez o método artesanal.
Na década seguinte, toma forma a Associação dos Produtores de Couro de Porco do Extremo Sul do Brasil, a primeira do tipo no Estado e que existiu até o começo dos anos1970. Fundado por empresários do setor de curtimento do couro suíno, congregava Planalto Médio, parte das Missões e Vale do Taquari. Essa produção específica teve um declínio no final dos anos 1970, e o couro transferido para a indústria alimentícia. Em maio de 1965, surge a Escola de Curtimento, em Estância Velha, por iniciativa dos curtumes. Depois, a unidade se tornou o Instituto Senai de Tecnologia do Couro e Meio Ambiente (IST), dirigida pelo Senai.
Entre 1960 e 1970, há uma mescla entre os setores coureiro e calçadista. Nessa época, o governo brasileiro desenvolve uma política de incentivo às exportações. Aproveitando a estrutura dos curtumes e o descobrimento do mercado brasileiro por players internacionais, o setor passa a produzir para as indústrias calçadistas. Em 1971, surge a Associação Brasileira dos Químicos e Técnicos da Indústria do Couro (Abqtic), também sediada em Estância Velha, e, em 1976, a AICSul. Dois anos depois, ocorre, em Gramado, o 1º Seminário das Indústrias de Curtume do Rio Grande do Sul.
 

A chegada dos curtumes no Rio Grande do Sul

Imigrantes supriram a falta de mão-de-obra local no início das indústrias

Imigrantes supriram a falta de mão-de-obra local no início das indústrias


ACERVO FELIPE KUHN BRAUN /DIVULGAÇÃO/JC
Muitos artigos e obras literárias escritos ao longo das décadas contam a história dos curtumes no Estado, como o livro Couro Gaúcho, do historiador Rodrigo Luis dos Santos e do jornalista Alisson Coelho. Não se sabe exatamente qual a real origem dessas indústrias no Rio Grande do Sul, porém, existe razoável certeza de que o pioneiro foi José Egídio Álvares de Almeida.
Nascido em Santo Amaro, na Bahia, em 1767, estudou na Europa e ficou próximo da família real portuguesa, tornando-se inclusive ministro das Relações Exteriores, ocupando embaixadas em Londres e Paris. Foi nomeado barão de Santo Amaro, depois visconde e, por fim, marquês. Passou pelo Rio Grande do Sul, onde teria estabelecido um curtume na Fazenda da Boa Vista, hoje parte de Viamão.
O registro foi feito, em 1820, por ninguém menos do que August de Saint-Hilaire, botânico francês que esteve no Brasil entre 1816 e 1822. O barão, contudo, não administrava diretamente o empreendimento, mas um grupo de técnicos da França trazidos por ele o fazia. Entre eles, um curtidor de Paris recebeu Saint-Hilaire pessoalmente.
O Rio Grande do Sul tinha já uma relativa tradição na criação de gado, que havia iniciado bem antes, por volta de 1780, quando as primeiras charqueadas foram instaladas, primeiramente na região de Pelotas. Inclusive, a história registra que a povoação que deu origem ao município cresceu por conta do charque.
Por conta desse êxito, não demorou muito e foram fundados os curtumes, que também utilizavam o couro como matéria-prima. Com as charqueadas, o abate do gado passou a ser feito no Rio Grande do Sul, e os animais não eram mais encaminhados vivos ao Sudeste do Brasil.
A falta de mão de obra foi suprida com a chegada dos imigrantes europeus, a partir do começo do século XIX, como os alemães e os italianos, que já praticavam trabalhos artesanais em seu continente de origem, baseados quase sempre no couro. Daí passou-se pouco tempo até a criação de novos curtumes, bem como fábricas de artefatos derivados dele, caso de botas e selas.
Há duas versões sobre quem teria sido o primeiro curtidor do Vale do Sinos: Nicolau Becker ou Luiz Rau, ambos imigrantes. A vinda de Becker também rende duas histórias distintas. Na primeira, ele teria chegado à região em 1797, ou seja, ainda antes da primeira leva de desbravadores alemães, que aportou em São Leopoldo em 1824. A segunda versão aponta que o ano seria 1829, e que Becker teria fundado um curtume e uma selaria na atual região de Novo Hamburgo então distrito de São Leopoldo em 1830.
Já Luiz Rau haveria montado um empreendimento em 1829. Há quem acredite que a futura Novo Hamburgo teria sido o local de realização das primeiras experiências de curtimento ainda na década de 1820, antes mesmo daqueles criados em Pelotas. De qualquer forma, em 1854, há registros históricos de uma "Rua dos Curtumes" em São Leopoldo. O município tinha, em 1858, 32 empreendimentos do tipo, porém ainda eram negócios incipientes, para a subsistência das famílias, e aproveitando a experiência dos imigrantes.

Estância Velha, a capital nacional do couro

Município deixou de ser cidade-dormitório, avalia Rudi Sérgio Muller

Município deixou de ser cidade-dormitório, avalia Rudi Sérgio Muller


prefeitura estância velha/divulgacao/jc
Em 2011, os deputados estaduais aprovaram, por unanimidade, o título de Capital Nacional do Couro para Estância Velha, município de pouco mais de 50 mil habitantes também no Vale do Sinos. Na época, o projeto havia sido encaminhado pelo então parlamentar estadual hamburguense Lucas Redecker (PSDB), hoje deputado federal.
"Muito do desenvolvimento dessa cidade está ligado aos curtumes, assim como a sua própria emancipação política, em 1959", afirma o historiador e doutorando em História pela Unisinos Rodrigo Luis dos Santos, coautor do livro Couro Gaúcho - Uma História de Lutas e Conquistas junto com o jornalista Alisson Coelho, doutor em Comunicação pela mesma universidade.
Dados do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Curtimento de Couros e Peles de Estância Velha (Sintracouros-EV) apontam que, apenas no município, estão ativas 41 empresas do gênero, que empregam por volta de 950 pessoas. "Este número está gradativamente aumentando com a retomada aos poucos da economia. A previsão é que possamos atingir em meados de 2021 o número mais próximo de 1,2 mil vagas que tínhamos antes da pandemia, em janeiro e fevereiro", comenta o presidente do sindicato, Roberto Alfredo Hansen.
Na visão de Hansen, para haver esta retomada ativa, também é importante que o poder público consiga fomentar novamente os curtumes. "Nós temos aqui muita mão-de-obra especializada. Vejo que em outros lugares há mais incentivo, então é preciso que nossa demanda seja vista com mais carinho. Precisamos gerar empregos na indústria de transformação. Acho que o futuro de Estância Velha pode ser transformado se houver um investimento nos curtumes e esta geração de empregos", comenta o presidente do Sintracouros-EV.
Para o secretário municipal de Indústria, Comércio e Turismo, Rudi Sérgio Muller, os curtumes são um dos grandes negócios em Estância Velha, porém vem se abrindo um novo leque de novas opções econômicas, de maneira gradativa. "Está enfraquecendo um pouco o setor, em função das outras atividades que estão vindo para cá. Estância Velha era chamada de 'cidade-dormitório', porque as pessoas moravam aqui, mas trabalhavam em outros municípios. Hoje, com esta diversificação, isto não está mais acontecendo", salienta ele.
Mesmo que outras atividades estejam se estabelecendo, os antigos curtumes ainda compõem a paisagem de Estância Velha e representam a raiz da população estanciense. Tanto que o símbolo do couro está no brasão, na bandeira e no hino do município: "Salve, salve Estância Velha / Do couro a capital / Nascida de antigas fazendas / De ouro e de lendas, de um ideal". "Os curtumes foram fundados por famílias, que foram crescendo, bem como seus negócios foram expandindo. Isso se entrelaçou no município e fundou nossa identidade", comenta Muller.
 

Consolidação da indústria da década de 1950

De forma definitiva, assim como outras indústrias, os curtumes passam por um processo de estruturação mais acentuada na década de 1950, principalmente voltada à exportação, com a busca de novos mercados no exterior. Em 1957, surge o CICB. Seguem-se o segundo governo de Getúlio e o de Juscelino Kubitschek, no qual a indústria nacional é fortalecida. Máquinas começam a ser importadas de nações como Alemanha e Itália, e os curtumes, em geral, iniciam a expansão para se tornar empresas com grande número de funcionários, deixando de lado de vez o método artesanal. O Vale do Sinos expande economicamente, apesar da crise do período no RS.
Na década seguinte, toma forma a Associação dos Produtores de Couro de Porco do Extremo Sul do Brasil, a primeira do tipo no RS, e que existiu até o começo da década de 1970. Fundado por meio de empresários do setor de curtimento do couro suíno, congregava curtumes do Planalto Médio, parte das Missões e Vale do Taquari. Esta produção específica teve um declínio no final dos anos 1970, sendo transferido o couro para a indústria alimentícia. Em maio de 1965, surgiu a Escola de Curtimento, em Estância Velha, por iniciativa dos próprios curtumes. Depois, a unidade se tornou o Instituto Senai de Tecnologia do Couro e Meio Ambiente (IST), dirigida pelo Senai. A primeira turma teve 25 alunos.
Entre as décadas de 1960 e 1970, há uma mescla entre os setores coureiro e calçadista, e um período importante de crescimento econômico nacional, ao menos até 1973. Nesta época, o governo brasileiro desenvolve uma política de incentivo às exportações, subsidiando, por exemplo, os calçados, beneficiando o Vale do Sinos. Aproveitando a estrutura existente dos curtumes e o descobrimento do mercado brasileiro pelos players internacionais, o setor passa a produzir para as indústrias calçadistas. Embora os subsídios governamentais para o couro fossem inferiores aos calçados, houve rápido crescimento, incentivado também pela mão-de-obra de baixo custo.
Em 1971, surge a Associação Brasileira dos Químicos e Técnicos da Indústria do Couro (ABQTIC), também sediada em Estância Velha, e em 1976, a AICSul. Dois anos depois, ocorre, em Gramado, o 1º Seminário das Indústrias de Curtume do Rio Grande do Sul.
 

Indústria em recuperação judicial consegue driblar reflexos da crise causada pela pandemia

Sede do grupo Minuano, em Lindolfo Collor, emprega 700 moradores da cidade

Sede do grupo Minuano, em Lindolfo Collor, emprega 700 moradores da cidade


grupo minuano/divulgação/jc
O Grupo Minuano, cuja sede fica em Lindolfo Collor, no Vale do Sinos, é um exemplo do movimento recente causado pelo coronavírus. O impacto da crise que veio junto com a Covid-19 fez com que a empresa entrasse com pedido de recuperação judicial no começo de agosto. Mesmo assim, demissões não estão nos planos. Pelo contrário: o grupo segue contratando e negocia os termos da recuperação com seus credores.
A medida foi necessária em função dos primeiros dois meses da pandemia, bastante críticos. "Houve uma paralisação generalizada. A partir do terceiro mês, aconteceu uma pequena retomada vinda da Ásia, depois da Europa, e mais tarde, recentemente, da América do Norte. Mas o curtume, como está focado em mercados diversificados, consegue trabalhar de forma equilibrada, inclusive nas contas", comenta gestor do Curtume Minuano, Mateus Leão Enzweiler,
No início do mês passado, a empresa tinha por volta de 1,3 mil funcionários em seu município de origem, mais 32 em Caçapava do Sul, 259 em Crissiumal, 98 em Capela de Santana e 693 em Alagoinhas, na Bahia, somando cerca de 2,4 mil colaboradores. Em Lindolfo Collor, estima-se que o Grupo Minuano empregue por volta de 700 moradores, cerca de 12% da população total, de pouco mais de 6 mil habitantes. Portanto, uma eventual crise mais ampla poderia significar uma perda significativa de retorno de ICMS para a cidade e um desemprego igualmente brutal na região. A recuperação judicial é vista como um esforço para manter a solidez da operação e a tranquilidade dos credores.
O Curtume Minuano, ponto inicial do grupo, foi fundado em 1972, no auge do período histórico do couro e calçado na região. Sua produção cresceu ao longo do tempo, e nos exercícios somados de 2017, 2018 e 2019, produziu mais de 11 milhões de metros quadrados de couro cru. Hoje, o grupo também é composto pela Calçados Malu e pela MTL Transporte Rodoviário de Cargas, que estão sob o guarda-chuva da holding Milu Participações Societárias. Enzweiler, comenta que os negócios em nível global foram afetados pelo coronavírus, bem como a mão de obra interna.
Embora seja fato que o Minuano figure como um dos maiores curtumes do Vale do Sinos, o presidente da AICSul explica que não há um ranking constituído dos mais imponentes do Rio Grande do Sul. Simplesmente porque, como mostra o exemplo do grupo, os empreendimentos do setor Estado geralmente estão vinculados a outras empresas, como fábricas de calçados, móveis ou frigoríficos. "Temos uma ideia sólida de quais são as maiores, mas isto não é baseado em uma classificação formal", afirma Moacir de Souza.
 

Indústria tem legislação ambiental rigorosa

Beneficiamento do couro exige utilização de produtos químicos

Beneficiamento do couro exige utilização de produtos químicos


grupo minuano/divulgação/jc
Além do uso da água, os curtumes trabalham com produtos químicos específicos para o beneficiamento do couro. A mistura de ambos, quando não há o tratamento correto, pode causar desequilíbrio no ecossistema. Contudo, novos processos e uma preocupação latente com o meio ambiente mostram que a indústria, cada vez mais, busca se distanciar dessa associação, e vem conseguindo.
A legislação ambiental também tem endurecido com o objetivo de evitar tragédias como a que envolveu a mortandade de cerca de 90 toneladas de peixes no Rio dos Sinos, no ano de 2006. Ainda assim, há um longo caminho a ser percorrido. "Eventos marcantes chamam a atenção para deficiências de licenciamento e fiscalização, porém, essas lições traumáticas nem sempre são totalmente assimiladas e transformadas em ações concretas", aponta o professor do curso de Direito da Universidade Feevale e advogado da área ambiental, André Weyermüller.
Recursos hídricos em regiões muito populosas e industrializadas, como o Vale do Sinos, diz o professor, são muito sensíveis e precisam de constante monitoramento, No entanto, a organização do setor em entidades representativas contribuiu para que a indústria coureira sincronizasse suas demandas produtivas junto aos órgãos fiscalizatórios.
"O incremento da legislação ambiental nas últimas décadas elevou o nível de exigências para adequação das atividades. Certamente houve evolução, motivada, sobretudo, por demandas legais e mudanças profundas de mercado e concorrência", comenta.
Em 2011, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) e a Delegacia de Polícia de Proteção ao Meio Ambiente (Dema) organizaram uma força-tarefa de combate a crimes ambientais pelos curtumes e indústrias do gênero do Vale do Sinos. A ação contou com o apoio do Comando Ambiental da Brigada Militar (CABM) e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). "Uma série de irregularidades foram identificadas, culminando, inclusive, com prisões em flagrante", conta o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MPRS, Daniel Martini.
Os curtumes autuados, lembra Martini, firmaram compromissos de ajustamento de conduta para solucionar as irregularidades. "Essas ações também tiveram caráter preventivo com efeito pedagógico, e serviram como exemplo para evitar que episódios semelhantes voltassem a se repetir", destaca.
Via de regra, atualmente, todos os curtumes em funcionamento no Estado estão regularizados e licenciados de acordo com condições previstas em licenças ambientais expedidas pelos órgãos competentes. Conforme o Serviço e Licenciamento e de Monitoramento de Indústrias (Selmi) da Fepam, nos últimos cinco anos, houve apenas um atendimento de emergência relacionado ao setor do couro, na desativação de um curtume em Portão.
O setor industrial coureiro também foi o primeiro a receber um trabalho completo de gestão de resíduos, controle de emissões atmosféricas e efluentes no Rio Grande do Sul, ainda na década de 1980. "A legislação ambiental vem evoluindo e observa-se, inclusive, que muitos empreendimentos buscam reduzir impactos ambientais ou alternativas de melhor gestão, trabalhando com reúso e reciclagem", observa a Fepam, em nota.
Hoje, a Fepam tem um regramento geral sobre a questão para todos os setores industriais, mas reconhece que o número de curtumes está reduzindo. A alternativa de diversas empresas foi a migração para o acabamento, enquanto outras encerraram suas atividades.

Novas oportunidades de mercado exigiram especialização e condições de concorrência

Carga tributária gaúcha levou empresas a mudar parques industriais para outros estados

Carga tributária gaúcha levou empresas a mudar parques industriais para outros estados


reprodução/jc
A globalização de mercados trouxe ao setor coureiro gaúcho novas oportunidades de mercado, como a Ásia. Os profissionais dos curtumes também se especializaram para atender outras indústrias, como a moveleira e automotiva, que passaram a consumir o couro local. De olho em novos nichos no começo dos anos 2000, os curtumes gaúchos passaram a exigir melhores condições de competição em mercados concorridos, por meio de desonerações fiscais e a diminuição da carga de impostos, fato que até forçou alguns a migrar para outros estados.
A crise econômica de 2008 reflete nos próprios parques produtivos. Os curtumes deixam de ser os únicos produtores e dão lugar aos frigoríficos, que adquirem as unidades de produção do couro e passam a industrializar o produto. E é levantada a bandeira branca: as indústrias coureira e calçadista passam a trabalhar de forma conjunta. O resultado é uma qualificação sem precedentes, o que eleva o nome do produto gaúcho mundo afora até os dias atuais.
No ano passado, foi fundada em Brasília a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Setor Coureiro-Calçadista, presidida pelo deputado Lucas Redecker (PSDB-RS), hoje com 198 integrantes. Para o parlamentar, havia necessidade, dentro do Congresso, em discutir o setor e acompanhar o andamento de projetos que o beneficiem.
Houve, na opinião de Redecker, uma otimização significativa nos processos, com aumento do uso da tecnologia e consequente diminuição de mão de obra agregada. "Isso é algo que todos os setores precisam, e precisamos dar condições à qualificação da mão de obra para conseguir inseri-la em outro segmento, ou até no mesmo, realizando outras funções", afirma Redecker.

Selos de qualificação agregam valor aos produtos

Otimizações de processos e busca por componentes menos agressivos ao meio ambiente estão no radar da indústria do couro. Com isso, foram criadas selos de qualidade aos curtumes que obedecem a práticas sustentáveis. A Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB), por exemplo, desenvolveu, em 2018, a Certificação de Sustentabilidade do Couro Brasileiro (CSCB), a partir de normativas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) relacionadas ao couro. O selo é auditado pelo O Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).
"O CSCB promove e reconhece as melhores práticas dos curtumes no que tange a resultados econômicos, redução de impacto ambiental e relações com colaboradores e comunidades", informa o presidente José Fernando Bello. Pelo menos quatro indústrias têm o certificado Nível Ouro do CSCB, e todas são sediadas ou têm fábricas no Rio Grande do Sul: Courovale, com sede em Portão; Fuga Couros, de Marau; JBS Couros, com fábrica em Montenegro; e Mats Beneficiamento de Couros, de Campo Bom. Outros 19 curtumes gaúchos, de um total de 27 brasileiros, integram o selo.
Uma importante parceria da indústria com o universo acadêmico desenvolve novas formas de manipular o couro de forma a reduzir resíduos contaminantes finais. A Universidade Feevale desenvolve pesquisas que vão ao encontro dessas demandas. Por estar localizada no grande polo coureiro do Vale do Sinos, sua importância em termos de testes práticos é estratégica. Dois desses projetos são liderados pela professora do curso de Engenharia Química Patrice Monteiro de Aquim.
"A parceria possibilita resolver problemas concretos utilizando método científico, que vislumbre o desenvolvimento do setor produtivo e a agilidade para que ensaios realizados em laboratório possam ser testados em escala industrial", afirma. Entre as pesquisas da Feevale, estão o uso de curtimentos alternativos ao cromo. Esta substância, em sua forma trivalente, é largamente utilizada pelos curtumes para converter a pele do animal em couro utilizável pela indústria. Porém Patrice ressalta que o pH, calor, umidade e presença de agentes oxidantes podem transformá-lo na forma hexavalente, que é tóxica.
 

Futuro passa pela capacitação e reinvenção

Maquinário moderno é destaque no Instituto Senai de Tecnologia do Couro e Meio Ambiente

Maquinário moderno é destaque no Instituto Senai de Tecnologia do Couro e Meio Ambiente


DUDU LEAL/DIVULGAÇÃO/JC
O couro é um produto que mudou muito sua essência, pavimentou a estrutura econômica de parte considerável do Rio Grande do Sul e também fez parte de gerações de famílias. Portanto, é possível abstrair o exemplo do que foi feito no passado, e o que é realizado agora, no sentido de projetar um futuro ainda mais promissor para o couro e os curtumes? Na opinião do historiador da Unisinos Rodrigo Luis do Santos, sim.
"É uma atividade que busca se reinventar e, dentro de suas possibilidades, atender as demandas que ocorrem. Este é um momento difícil para imaginar o que pode acontecer mas, levando em conta a tradição diante de mudanças e dificuldades, creio que estão sendo buscadas alternativas", avalia.
A solução pode passar tanto pelos materiais quanto pela própria continuidade da formação de técnicos. Visto que os próprios curtumes estão se reinventando, transformando e adaptando, há que se exigir uma formação adequada para enfrentar os desafios sem abrir mão da realidade do mercado atual. O Instituto Senai de Tecnologia em Couro e Meio Ambiente (IST), de Estância Velha, por exemplo, é hoje a única escola de curtimento com estrutura completa de um curtume para formação técnica.
"Com as demandas crescentes, a atualização de instrutores é exigida dia após dia. Felizmente, temos uma excelente relação de proximidade com as indústrias químicas, de máquinas e equipamentos, de softwares e profissionais liberais na área e com todo o cluster que nos permite proporcionar um ensino de ponta e atualizado, alinhado com o mercado mundial", afirma a gerente do IST, Darlene Rodrigues.
Conforme ela, a escola tem de 200 a 250 alunos matriculados por ano, grande parte advinda da própria indústria do couro. São pessoas de toda América do Sul e Central, mas também há chineses, italianos e tunisianos. "Participamos das formaturas no instituto e nos emocionamos junto com pessoas que vêm de locais distantes, estudam e se formam aqui. É um orgulho para o município algo falado em todo o mundo, que Estância Velha tem a única escola de curtimento na América do Sul", diz o secretário municipal de Indústria, Comércio e Turismo, Rudi Sérgio Muller,
Em 2019, pela primeira vez, a Fimec, maior feira da América Latina dedicada ao setor coureiro-calçadista e realizada em Novo Hamburgo, trouxe o Curtume 4.0, iniciativa que levou aos visitantes as tendências no processo produtivo e a correta adequação de máquinas. A ideia foi de um grupo de empresários ligados à Associação Brasileira das Indústrias de Máquinas para Couro e Calçados (Abrameq).
Na visão do presidente da Abrameq, André Nodari, práticas sustentáveis, por segurança dos operários, e a necessidade de maior competitividade têm aumentado a adoção de maquinários para os curtumes mais modernos e precisos. Para um desenvolvimento ainda mais sustentável, defende o dirigente, é necessário haver um favorecimento no cenário econômico. "A indústria de máquinas e equipamentos como um todo precisa de um mercado que demande sua produção e possa pagar por isso", pontua.
Para isso, o Brasil tem de aumentar seu PIB, reduzir a taxação e ter uma melhor distribuição de renda para aumentar o consumo de bens finais de couro. "Temos alta carga tributária no Brasil e os impostos são recolhidos antes de recebermos o pagamento completo das máquinas vendidas", afirma.

Produto nobre e ainda insuperável

O jovem empreendedor Mateus Leão Enzweiler, do Curtume Minuano, comenta que pensar em crescimento na atual conjuntura ainda é arriscado, mas que o Rio Grande do Sul é exportador, especialmente de valor agregado, portanto o potencial é imenso. "O mercado será cada vez mais competitivo, e concorremos com o mundo inteiro. Temos que ser mais competitivos do que o curtume que está na China, ou na Europa. São os locais que vão consumir o produto final. Vejo oportunidades eventuais, mas nada que signifique uma pujança neste momento", diz Enzweiler.
Já a AICSul, entidade que acompanhou de perto as transformações nas últimas décadas no setor de forma geral, deposita suas esperanças futuras em características indissociáveis do couro, como sua elegância. Para o presidente executivo da entidade, não há outra forma de enxergá-lo, considerando sua importância para a economia e os negócios gaúchos. "O produto do Rio Grande do Sul encontrou o seu nicho de mercado desde muito, e dentro dele construiu um modo eficiente de trabalhar, sem deixar de atender as exigências de inovação permanente que o mercado exige. O couro continua sendo matéria nobre e insuperável", afirma Moacir Berger de Souza.
 

*Felipe Faleiro

Jornalista formado pela Universidade Feevale, de Novo Hamburgo, Felipe Faleiro é nascido e criado no Vale do Sinos. Trabalha desde 2016 como repórter em veículos da região.