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Reportagem especial

- Publicada em 20 de Abril de 2020 às 03:00

Indústria calçadista do Vale do Sinos vê retomada lenta das vendas do setor

Fábricas retornam parcialmente as atividades, mas cenário ainda preocupa mais de 800 empresas de calçados da região

Fábricas retornam parcialmente as atividades, mas cenário ainda preocupa mais de 800 empresas de calçados da região


felipe faleiro/divulgação/jc
Felipe Faleiro, de Novo Hamburgo
Felipe Faleiro, de Novo Hamburgo
Em 24 de julho de 1824, desembarcou em solo gaúcho o primeiro grupo de imigrantes alemães, composto por 39 pessoas. Inicialmente, eles se estabeleceram na então Real Feitoria do Linho-Cânhamo, hoje município de São Leopoldo. Alguns meses mais tarde, segundo a historiadora Claudia Schemes, chegaram à área onde, atualmente, é Novo Hamburgo.
Mais famílias vieram nos anos seguintes, estabelecendo vilas e conexões entre elas. "Os primeiros imigrantes encontraram uma terra que praticamente não tinha estrutura de sociedade. Não tinha estradas, escolas, igrejas, então tiveram de iniciar tudo do zero. Mas eles tinham a bagagem de artesãos - entre eles, sapateiros, ferreiros, marceneiros. As dificuldades encontradas pelos primeiros colonizadores foram muito grandes", conta o jornalista, escritor e vereador de Novo Hamburgo Felipe Kuhn Braun.
Entre as indústrias então existentes na região estavam curtumes para beneficiamento do couro, já relevante no Período Imperial, além de fábricas que confeccionavam arreios de montaria, que ganharam força com a Guerra do Paraguai (1864-1870). Após o conflito, houve a necessidade de ampliar o mercado comprador, de arreios e calçados. Surgiram, então, alguns curtumes e a fabricação de máquinas, eliminando a necessidade maior de uma produção artesanal.
Na região, os colonos trabalhavam nas roças, ofício que exigia o uso dos calçados que não eram comercializados em lojas, segundo as pesquisas de Claudia. "O imigrante alemão trouxe o hábito de andar calçado", explica ela. A sobra do couro não utilizada para a fabricação dos arreios serviu, então, para a montagem dos calçados, especialmente tamancos, chinelos, solas e saltos.
Braun conta, em uma de suas obras - Alemães no Brasil: 1824-1945 -, a respeito de outra inovação surgida no Vale do Sinos pouco depois da Guerra do Paraguai: a chegada da primeira estrada de ferro, que ligava Novo Hamburgo à capital Porto Alegre em 1871, com a estação em solo hamburguense aberta cinco anos mais tarde.
"Os imigrantes italianos, que vinham com suas mulas carregadas de seus produtos, vendiam-nos no armazém Schmitt, hoje Casa Schmitt-Presser, e ali deixavam os animais. Pegavam o trem para Porto Alegre e, na volta, compravam os sapatos que sobravam na família dos alemães, levando-os para vender na Serra", afirma a professora Ida Helena Thön, coordenadora do Museu Nacional do Calçado (MNC), mantido pela Universidade Feevale.
Ao longo do século XIX, as colônias foram expandidas para as regiões das futuras cidades de Estância Velha, Sapiranga, Taquara, Rolante, Parobé e outras. Eventualmente, a produção de calçados avançou para praticamente todos os municípios do Vale do Rio dos Sinos e, mais tarde, no século XX, para os vales dos rios Caí, Taquari, além da região da Serra e de outras do Estado.

Pedro Adams filho, o pioneiro do calçado

Empresário abriu a primeira fábrica da região

Empresário abriu a primeira fábrica da região


/ACERVO FELIPE KUHN BRAUN/DIVULGAÇÃO/JC
De volta ao Vale do Sinos, surge, então, a figura de Pedro Adams Filho, filho de imigrantes e pioneiro na fabricação calçadista na região. Sapateiro de ofício, Adams soube enxergar a oportunidade vinda com a ferrovia, bem como a demanda da população da época. Assim, no início de 1900, ele fundou, na futura Novo Hamburgo - que, à época, ainda era distrito de São Leopoldo -, a primeira fábrica de calçados do Brasil, a Calçados Adams, apenas fabricando modelos masculinos.
"Anos mais tarde, seus funcionários queriam ter suas próprias fábricas, mas, para não 'magoar' o antigo patrão, todas elas eram de calçados femininos, por isso, Novo Hamburgo é considerada a 'Capital Nacional do Calçado Feminino'", relembra a professora Ida Thön. A Fábrica de Calçados Sul Rio-­Grandense, que comercializava para dentro e fora da região, tinha mais de 100 empregados. A partir daí, houve um salto considerável. Conforme as pesquisas de Claudia Schemes, o censo industrial de 1907 registrava 699 fábricas de calçados na região de Porto Alegre e do Vale do Sinos.
Depois, houve a implantação das máquinas a vapor, e, mais tarde, o automóvel substituiu a carroça na logística do produto. Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), houve dificuldades nas importações, embora a região já exportasse couro e calçado para outros locais, e, por isso, esse setor não sofreu tanto com os efeitos do conflito. Com o auxílio de Adams e outros industriais, Novo Hamburgo foi emancipada em abril de 1927.
A Revolução de 1930 e a criação da primeira legislação trabalhista pelo governo Getúlio Vargas regulamentaram diversos aspectos. O governo via o operário alemão como ordeiro, especialmente porque não queria conflitos com um povo que buscava manter sua identidade própria, ainda que isso entrasse em choque com o espírito nacionalista brasileiro da época. Adams se afastou de seus negócios em 1933 e morreu dois anos depois.
 

O baque da Segunda Guerra e o início das exportações

Com a Segunda Guerra Mundial (1938-1945), os alemães tiveram seus pequenos negócios arrasados, e o estado passou a produzir apenas coturnos para os Exércitos brasileiro e venezuelano. No ano de 1946, foi inaugurada, em Novo Hamburgo, a Escola Técnica Senai Ildefonso Simões Lopes, especializada em tecnologia do calçado. Na década de 1950, com o presidente Juscelino Kubitschek, veio também mais atenção ao setor industrial, o que potencializou a economia do Vale. Na década seguinte, houve a necessidade de ampliar a comercialização de calçados para fora do País.
Em 1963, Novo Hamburgo sediou a 1ª edição da Feira Nacional do Calçado (Fenac), nos pavilhões de mesmo nome. Em 1968, o Grupo Strassburger, de Campo Bom, exportou à British Shoes Corporation, da Inglaterra, a primeira leva de calçados em larga escala. Foram embarcados 18 mil pares de sandálias da marca Franciscano, entregues nos Estados Unidos. Conforme a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), a produção nacional, naquela época, era de 80 milhões de pares anuais.
Em outra dissertação, Claudia Schemes e os também professores Cleber Prodanov - hoje, reitor da Universidade Feevale -, Rodrigo Perla Martins e Luiz Antonio Maroneze escrevem que a exportação, ao longo das décadas de 1960 a 1980, fez parte de uma estratégia da ditadura militar para alavancar a internacionalização econômica do País.
A mão de obra mais em conta oferecida pelo Brasil também fez a diferença nesta época. "Houve um período, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, em que a Itália deixou de ser grande produtora de calçados, dando lugar à nossa região. A indústria calçadista sempre vai atrás da mão de obra mais em conta, e assim voltaram suas atenções para o Brasil", explica o jornalista, escritor e vereador de Novo Hamburgo Felipe Kuhn Braun.
A partir daquela primeira encomenda, houve tratativas para a criação da primeira empresa exportadora de calçados da região, primeiramente para a Europa, depois, para o Canadá, os Estados Unidos e outros mercados. Essa mudança também chamou a atenção dos empresários para a tecnologia empregada no calçado, de forma que o mesmo se tornasse ainda mais competitivo lá fora.
 

A união do setor calçadista

Mercado interno virou foco da produção local

Mercado interno virou foco da produção local


JOÃO MATTOS/ARQUIVO/JC
Em junho de 1972, o Senai absorveu a Fundação Escola Técnica do Calçado, também de Novo Hamburgo, com a primeira turma do novo Curso Técnico em Calçados. Quatro meses mais tarde, surgiu o Instituto Brasileiro do Couro, Calçados e Afins (IBCCA), apoiado pelo governo federal. Em abril de 1973, a unidade do Senai passou a se chamar Escola do Calçado Senai Ildefonso Simões Lopes.
Um ano depois, nasceu a Feira Internacional de Couros, Produtos Químicos, Componentes, Máquinas e Equipamentos para Calçados e Curtumes (Fimec), com a participação de 138 indústrias de 12 países. Ao longo dos anos, ela se expandiu e é realizada, até os dias de hoje, no complexo da Fenac. Em 1976, o IBCCA se tornou independente e mudou de nome para Centro Tecnológico do Couro, Calçados e Afins (CTCCA). Três anos mais tarde, foi inaugurado, em Novo Hamburgo, o Monumento ao Sapateiro, criado pelo artista Flávio Scholles como forma de homenagem aos operários das fábricas de calçados.
No ano de 1983, foi fundada, também em Novo Hamburgo, a Associação das Indústrias de Componentes de Calçados (Assintecal), que, atualmente, tem mais de 300 empresas associadas em 10 estados. A situação do setor começou a mudar no início da década de 1990, ao mesmo tempo em que houve a abertura comercial e o aumento da concorrência internacional. O Brasil havia se especializado na produção de modelos com qualidade e baixo valor agregado. Contudo, países como China, Indonésia e Tailândia começaram a produzir com baixíssimo custo de mão de obra, o que encarecia o produto brasileiro, fazendo-o perder competitividade.
Aliado a isso, houve um período de instabilidade da macroeconomia no País, potencializada pela política de estabilização do Plano Real, em 1994. A valorização do câmbio e a elevação dos juros acarretaram em uma profunda crise. O Rio Grande do Sul, já com situação fiscal desfavorável, começou a ver diversas calçadistas rumarem para destinos como o Nordeste brasileiro, cujos estados tinham menos déficit de caixa e, com incentivos, passaram a se destacar também como exportadores do produto.
Nesse período, houve uma mudança de paradigma no setor na região do Vale do Sinos, que passou a voltar sua atenção mais para o mercado interno e na busca por melhorar seus próprios processos, com foco na inovação e no design. Ainda hoje, a alcunha de Capital Nacional do Calçado dada a Novo Hamburgo é sustentada por projetos como o MNC, que tem, em seu acervo, por volta de 25 mil peças, desde sandálias gregas antigas e calçados diversos desde o século XII, além de realizar mostras temporárias e permanentes.
 

A briga com a China

O século XXI começou de forma similar à maneira como o terminou o período anterior, ou seja, com a presença massiva do calçado asiático e a busca por sobrevivência das empresas que permaneceram na região após o período de migrações. Em 2000, foi assinado convênio entre Abicalçados e Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), que dá origem ao programa Brazilian Footwear, cujo objetivo principal é realizar ações de qualificação das exportações brasileiras.
Deu certo, e o Brasil aumentou o embarque de calçados de 99 países, em 2000, para 145 em 2018, a maioria na modalidade private label, ou seja, já com a marca do cliente. A China, porém, contra-atacou, aplicando o dumping, derrubando ainda mais as tarifas de exportação e ameaçando o produto brasileiro.
A Abicalçados interferiu e, graças à pressão do setor calçadista, conseguiu, em 2010, um decreto de antidumping, taxando a importação do calçado chinês em
US$ 10,22 o par.
Em 2009, o Brasil já produzia 800 milhões de pares de calçados ao ano, número que, em 2010, portanto, após o decreto, passou a quase 900 milhões, preservando 40 mil postos de trabalho no setor, segundo a entidade. No mesmo período, os calçados chineses caíram de 70% para 18% do total de importações brasileiras.
Em 2015, o valor importado a partir da China havia caído 80% em relação ao período anterior à aplicação da sobretaxa, que, em 2016, foi ampliada a US$ 13,85 o par. Ainda em 2015, a Abicalçados estima que a produção nacional já havia caído 7,6%, devido a menor demanda no mercado doméstico.
O ano de 2020 iniciou com boas expectativas, o que é corroborado pelos dados disponíveis. De acordo com a Abicalçados, em 2019, o Vale do Sinos superou, sozinho, a marca de 90 milhões de pares produzidos, aumento de 8,6% em relação aos 83,2 milhões feitos no ano anterior, e 13% superior aos 80 milhões de 2017.
As exportações do Vale também cresceram, de US$ 286,3 milhões, em 2018, para US$ 308,1 milhões em 2019, alta de 7,6%. A participação da região gaúcha nesse indicador aumentou de 67% para 69%.
 

Menos empresas e menos empregos

Com isso, tanto os empregos na indústria calçadista quanto o número de empresas caíram. Em 2018, havia 34,9 mil pessoas empregadas no setor no Vale do Sinos, contra 34,8 mil em 2019. Redução pequena, mas que não reduz a importância de Novo Hamburgo e região na comparação estadual. No ano de 2018, a região representava 39% dos empregados no calçado gaúcho, contra 40% em 2019. Já o número de empresas, que eram 919 no ano de 2017, encolheu para 837 no ano seguinte. Em ambos, a participação do Vale do Sinos no Rio Grande do Sul foi de 41%.
O Brasil embarcou, em 2019, 114,55 milhões de pares, aumento de 0,9% em relação ao ano anterior, gerando uma receita total de US$ 967 milhões, queda de 0,9% em faturamento sobre 2018. A Abicalçados atribuiu o resultado à forte influência do câmbio no período. O dólar ficou cerca de 10% mais valorizado em 2019 do que em 2018; dessa forma, os calçadistas formaram preços mais competitivos no exterior. Com isso, a associação afirma que o crescimento do calçado na receita em reais chegou a 7%.
Mas o sentimento é de que poderia ter sido melhor. No início de 2019, a meta de crescimento do calçado no País era de 3,4%, número revisto para entre 1,1% e 1,8% no último trimestre do ano. Se o atraso na realização de reformas estruturais, como a da Previdência, frustrou um incremento maior no setor, como afirmou a associação em janeiro deste ano, 2020 era um ano de "otimismo moderado", com crescimento previsto de 2% a 2,5%.
Na ocasião, era esperado um melhor desempenho no mercado interno e uma trégua na guerra comercial então vigente entre Estados Unidos e China. Também houve influência da crise econômica argentina, cuja desvalorização do peso chegou a 30% frente ao dólar em agosto de 2019. Foi nesse cenário que se instaurou o coronavírus, primeiro, em janeiro, na China - terceiro país de onde o Brasil mais importou no ano passado, mesmo com o antidumping - e, nos meses seguintes, para o restante do mundo.
 

Em fevereiro, os efeitos do coronavírus

Ferreira, da Abicalçados: foram cancelados 50% dos pedidos já no início da crise

Ferreira, da Abicalçados: foram cancelados 50% dos pedidos já no início da crise


ABICALÇADOS/DIVULGAÇÃO/JC
O Vale do Sinos começou a sentir os efeitos mais imediatos do vírus já no mês de fevereiro, durante os preparativos para a realização da 44ª Fimec, em março, e que não teve a participação de expositores chineses em função do surto. A própria prefeitura de Novo Hamburgo havia tentado impedir a realização do evento, porém um plano de contingência foi feito pela organização e aprovado pela prefeitura. O evento teve mais de 500 expositores e 18 mil visitantes.
Também em fevereiro, a Abicalçados revisou para baixo a projeção de crescimento do setor, do máximo de 2,5% para 2,2%. "Os primeiros impactos visíveis na indústria calçadista, não apenas na região, mas em âmbito nacional, estão atrelados à dificuldade de abastecimento de alguns insumos importados. Todavia, os maiores emergiram do elevado volume de cancelamentos e postergação de faturamento de pedidos, seja no mercado interno ou na exportação", afirma o presidente-executivo da Abicalçados, Haroldo Ferreira.
Em março, houve, ainda, o endurecimento de medidas de quarentena, com o fechamento de comércios e indústrias, e consequentes demissões. Reportagem do Jornal do Comércio do início deste mês já apontava um panorama assustador para o calçado no período: 3 mil dispensas ocorridas no setor somente no Rio Grande do Sul, parte dos 11 mil desligamentos registrados no calçado no Brasil até então. Ferreira aponta, também, a adoção de medidas como a MP 936 - que permite a suspensão de contratos de trabalho - como um caminho possível para não haver mais demissões, porém a regra deve estar atrelada à retomada da demanda.
"Na primeira semana de percepção de efeitos da Covid-19 no setor, entre 15 e 21 de março, antes da paralisação da produção no Rio Grande do Sul, o setor brasileiro já enfrentava um cenário de cerca de 50% de cancelamento de pedidos em carteira, em média", revela Ferreira. "Acreditamos que nenhum segmento tenha vivido um cenário como o atual, e o calçadista, assim como os demais, está aprendendo a lidar com tal contexto. A doença atinge o setor já fragilizado, desde 2015, com uma demanda interna desaquecida." Também conforme a Abicalçados, no primeiro trimestre deste ano, o volume de calçados exportados pelo País caiu 8,5%, e a receita diminuiu 9,4%, na comparação com o mesmo período de 2019.
 

O lento retorno ao trabalho

Tânia diz que setor pedirá ajuda aos governos do Estado e federal

Tânia diz que setor pedirá ajuda aos governos do Estado e federal


Leonardo Boufleur - prefeitura de Dois Irmãos
Algumas fábricas calçadistas de Novo Hamburgo estão, aos poucos, retomando a produção. Uma delas, a Casa do Solado, no bairro Hamburgo Velho, retornou às atividades na segunda-feira passada. "Estamos com 18 funcionários, mas tivemos de dispensar outros 10, que estavam no contrato de experiência", afirma o gerente de Produção da empresa, Léo Cunha. Segundo ele, há alguns pedidos em andamento.
Outras empresas visitadas pela reportagem, especialmente no bairro Canudos, ainda estão com funcionários dispensados, e, naquelas com showrooms, apenas a loja está funcionando. Em outra empresa, que também produz solados, além de saltos e tacos, os funcionários foram convocados para uma reunião na quinta-feira, quando foram dispensados por 60 dias e tiveram o contrato suspenso, conforme a MP 936.
Presidente do Sindicato das Sapateiras e Sapateiros de Novo Hamburgo (STCNH), Jair Xavier dos Santos, aponta que pode haver mais demissões no setor, embora ainda não seja possível mensurar quanto. Ele diz que a produção de calçados emprega de 5 mil a 6 mil pessoas no município. Nos últimos dias, têm havido conversas com as empresas para buscar soluções e preservar empregos, após a adoção de medidas do governo federal pós-coronavírus, como a MP 936.
Santos comenta que recente levantamento contou mais de 300 empresas calçadistas no município, muitas delas familiares. Ele reforça que havia uma tendência de melhora prevista para 2020, principalmente no âmbito do mercado interno. "Acredito que não esperávamos a calamidade que temos hoje. Mas estamos vendo a melhor maneira de minimizar o que está acontecendo", afirma ele.
Conforme o presidente do STCNH, muitas empresas vêm contatando o sindicato a fim de obter informações a respeito da MP 936, de forma a realizar acordos justos, inclusive por meio de assembleias.
Sobre o aspecto econômico em geral, ele aponta que o calçado ainda representa uma importante força no cenário local. "Novo Hamburgo já passou por outras crises, e muitos acreditavam que o município não teria mais indústrias de calçados, mas pelo contrário. Acredito que a grande maioria das calçadistas vai se recuperar, e não tenho dúvida que 99% das empresas vão continuar funcionando", informa Santos.
No centro das decisões coletivas que afetam a região está a Associação dos Municípios do Vale do Rio dos Sinos (Amvars), fundada em 1968 e, hoje, uma das 27 associações filiadas à Federação das Associações dos Municípios do RS (Famurs). A Amvars, atualmente, engloba 11 cidades, de uma ou outra forma muito ligadas ao calçado ao longo da história. A presidência é rotativa, com duração de um ano, e, desde o começo de abril, está a cargo da prefeita de Dois Irmãos, Tânia Terezinha da Silva.
De acordo com ela, o momento após a pandemia será "muito difícil e de uma recuperação lenta", mas há esperanças de melhora. "As indústrias do setor calçadista sempre foram de extrema importância para movimentar a economia, além de ser o sustento e a engrenagem para a realização dos sonhos de muitas pessoas. Sinto um grande orgulho que somos exportadores de calçados para diversos países do mundo. Ou seja, o nosso produto calça os pés de milhões de pessoas do mundo inteiro", comenta Tânia.
Conforme a presidente da Amvars, há um futuro imediato incerto no calçado, na medida em que, assim como nos demais setores comerciais, tudo depende do avanço do coronavírus, mesmo com as medidas sanitárias em vigor. "Vamos lutar junto aos governos federal e estadual por políticas públicas para, primordialmente, proteger a vida, não deixando de lado a preocupação com a economia", argumenta a prefeita Tânia.
 

A visão dos empreendedores no calçado

Para o designer Jorge Bischoff, retomada será lenta

Para o designer Jorge Bischoff, retomada será lenta


RODRIGO FANTI/DIVULGAÇÃO/RPDOIS/JC
Quem fabrica calçado na região já sente os efeitos da queda de negócios causada pela Covid-19. O problema atinge a todos - pequenos, médios e grandes empresários. Porém há lições que o atual cenário pode trazer à economia, em um período em que há pouca produção e consumo. A designer Aline Fenker, proprietária da Nastra Shoes, de Novo Hamburgo, conta que a marca vinha em um crescimento contínuo do final de 2018 ao início de 2019, mas que 2020 havia iniciado ruim por conta dos rumos da economia.
"Nestas últimas semanas, a coisa ficou mais complicada. Estou dando alguns benefícios esporádicos e tentando colocar conteúdo novo nas redes sociais e no site. Cortei todos os gastos que podia, não estou produzindo nada. Só vendendo o estoque que já tenho e aceitando pedidos por encomenda", afirma ela. A empresa, que nasceu em 2018 incubada no Feevale Techpark com foco na sustentabilidade, produz calçados genderless, ou seja, sem diferenciação de gênero, e com amplo espectro de numeração, do 33 ao 44.
"Com certeza, acabei sentindo os efeitos devido à pandemia. As vendas diminuíram desde que tudo isso começou, mas, ao mesmo tempo, noto que as pessoas estão mais na internet, por estarem mais em casa, então também aumentaram os acessos no site. Ainda tenho certa demanda, pois acredito que o público com o qual trabalho, que são pessoas mais jovens e descoladas, têm esta consciência de ajudar os pequenos empreendedores", relata Aline.
Da mesma forma, representantes da Arezzo&Co, que tem fábrica em Campo Bom, relatam que esta crise é "sem precedentes", conforme o diretor-executivo industrial, Cisso Klaus. A companhia afirma que trabalha com dois alinhamentos claros na atual situação. "O primeiro, atuar em conjunto, mobilizar o Vale dos Sinos, buscar soluções e saídas que beneficiem a todos. Essa não é uma luta individual. O segundo, ter a inovação como premissa para todas as ações. Precisamos nos reinventar", diz Klaus.
Não é a primeira crise enfrentada pela empresa, que tem sete marcas e 759 lojas, sendo 215 de rua. "Temos um arsenal de ações em andamento para atuarmos com o máximo de segurança e muita visão de futuro", avisa um otimista Klaus, comentando que a Covid-19 trouxe, de certa forma, uma reorganização dos serviços. "Estamos bem amparados em termos de orientações sobre a saúde e a segurança dos nossos times diretos, seguindo as recomendações governamentais e as medidas de prevenção constante."
No Bischoff Group, sediada em Igrejinha, não é diferente. O CEO do grupo calçadista, Jorge Bischoff, comenta que a indústria parou a produção, o que afetou também o faturamento. "São momentos extremamente delicados, em que você precisa ter uma participação junto a seus franqueados, clientes e parceiros industriais para achar o ponto de equilíbrio, e pensando para a frente sobre como vamos agir com prejuízos que vão ficar acarretados para todo mundo dentro do mercado", analisa.
Bischoff - que comanda, além da fábrica, uma rede de 80 lojas exclusivas, três lojas-conceito e cujas marcas estão presentes em mais de 1,2 mil lojas parceiras - diz não ter dúvidas de que haverá uma crise econômica decorrente da Covid-19. A retomada, quando houver, será demorada, segundo ele. "Tenho a impressão de que o consumidor estará bastante receoso, especialmente com viagens. A crise deve ser encarada com estratégias, seja de marketing, descontos, produtos especiais, e, no fundo, deve-se ter um pouco de calma e sabedoria para saber lidar com isso tudo até que se volte ao normal."
Em carta aberta divulgada no dia 31 de março, o presidente da Calçados Beira-Rio, Roberto Argenta, destacou pontos positivos da economia brasileira e demonstrou confiança na superação da crise. "Estamos com um problema passageiro de saúde pública, porém somos um país com: agricultura fortíssima [...]; indústria dinâmica [...]; comércio e serviços criativos [...]. Mais importante: um povo forte e trabalhador", diz trecho da carta.
A companhia, com sede em Igrejinha, emprega diretamente mais de 10,5 mil pessoas e, em 2019, faturou mais de R$ 3,5 bilhões.
 

Produção anual de calçados no Vale do Sinos

Raio X - Indústria de Calçados

Raio X - Indústria de Calçados


Raio X - Indústria de Calçados
 

Futuro: inovação e evolução como palavras-chave

Laboratório de Biomecânica do IBTec investiga como tornar os modelos à venda mais confortáveis

Laboratório de Biomecânica do IBTec investiga como tornar os modelos à venda mais confortáveis


/IBTEC/DIVULGAÇÃO/JC
Superado o coronavírus, a inovação e a Indústria 4.0 podem ser fatores-chave para que o setor calçadista no Vale do Sinos retome a seus anos dourados? A resposta a essa pergunta pode presumir modificações da forma como o setor age atualmente, na medida em que o calçado, assim como a moda em geral, exige constantes atualizações, olhando para o passado, mas sem esquecer do futuro.
O calçado, apenas contextualizando, é pouco inovador. Segundo a Abicalçados, em 2018, o setor respondia por apenas 6% dos investimentos em inovação na Indústria de Transformação. E, conforme a Confederação Nacional da Indústria (CNI), em 2016, o conjunto calçadista estava entre os cinco que menos utilizavam tecnologias digitais no processo produtivo, sendo que apenas 29% das empresas da área pesquisada usufruía de alguma tecnologia do gênero.
Nesse contexto, é possível que o vírus também seja um "divisor de águas" nos processos produtivos do setor. "Assim que passar a pandemia, o Brasil, bem como todos os outros países, vai voltar à vida produtiva. Acredito que, como todos os segmentos da economia, o setor sofrerá perdas. Com certeza, precisaremos investir muito tempo e esforços para reconquistar nossa posição. Mas temos certeza de que vamos voltar a crescer, e retomar os projetos que tínhamos planejado", projeta o presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Tecnologia do Couro, Calçado e Artefatos (IBTeC), Paulo Griebeler.
O instituto, em Novo Hamburgo, tem foco na inovação, buscando novos materiais e processos para que o calçado made in Brazil não perca a qualidade à qual sempre prezou. Por exemplo, uma das pesquisas na área de biomecânica está relacionada à melhoria do conforto dos modelos à venda.
Segundo o IBTeC, 73% das mulheres, na média de todas as faixas etárias, sofrem incômodo com calçados desconfortáveis. Por isso, a tendência é que as novas criações possam se adaptar mais às necessidades de cada corpo humano, bem como ser mais sustentáveis e menos agressivas ao meio ambiente.
Em 2012, foi fundado, no local, o Núcleo de Criação Tecnológica (NIT), que, entre outros projetos, auxilia marcas de calçados infantis a criarem modelos que auxiliam no desenvolvimento da criança, sem prejudicar ossos e músculos. Recentemente, o IBTeC também criou o Selo Funcional, com a intenção de auxiliar as empresas a desenvolverem produtos diversos, não apenas calçados, voltados à terceira idade, de forma que haja uma chancela profissional em sua fabricação e venda. A ideia central é sensibilizar a indústria para esse público.
O Instituto Senai de Tecnologia em Calçado e Logística teve, em 2019, um total de 2.632 matrículas. São milhares de alunos que buscam uma formação técnica profissional no setor. Atualmente, a unidade capacita para diversas áreas, entre elas, controle de qualidade para componentes e artefatos, além de realizar assessoria tecnológica para outras empresas. Conforme o instituto, em 2019, foram feitas 2.382 horas de consultoria. "As mudanças nos processos industriais demandam inovações para um alinhamento às exigências da Indústria 4.0", afirma a gerente de Operações da unidade, Arlete Roncatto Accurso.
A Indústria 4.0 está relacionada diretamente a tecnologias como a Internet das Coisas (IoT), e poderá transformar a maneira com que os consumidores se relacionam com seus produtos. Por meio desse conceito, poderá ser possível ampliar a gama de dispositivos vestíveis. No lado do consumidor, com sensores acoplados aos calçados que monitoram aspectos como a qualidade da pisada e duração da atividade. Para a indústria, outros sensores poderão solucionar eventuais falhas de processo, otimizando a produção.
Também chamada de Quarta Revolução Industrial, a Indústria 4.0 foi, primeiramente, utilizada como conceito na Feira de Hannover, em 2011, e, hoje, é apoiada por diversas companhias como forma de otimizar os processos por meio da automação. Órgãos como a Finep, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, já têm iniciativas de financiamento voltadas à inovação nesse sentido. A Abicalçados também, por meio da Future Footwear (FF) Captação de Recursos, lançada em 2018.
De acordo com Arlete, o calçado também precisou acompanhar as demandas de tecnologia da informação. Porém será exigido dos futuros líderes do calçado mais do que apenas os conhecimentos técnicos. "Essas e outras mudanças exigiram que o setor se inovasse para continuar competitivo. Para atuar alinhado aos conceitos dessa nova indústria, o setor vai necessitar de um profissional que também seja criativo, entenda de gestão de pessoas, tenha capacidade de liderança, tenha pensamento crítico, boa comunicação e adaptabilidade para estar preparado para constantes mudanças", afirma ela.
Felipe Faleiro é jornalista formado pela Universidade Feevale, de Novo Hamburgo. Nascido e criado no Vale do Sinos, trabalha desde 2016 como repórter em veículos da região.