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Reportagem cultural

- Publicada em 24 de Maio de 2018 às 22:37

O ano em que Renato Borghetti se tornou conhecido no mundo

Primeiro show de Borghetti no Free Jazz foi sucesso nacional

Primeiro show de Borghetti no Free Jazz foi sucesso nacional


THIAGO DECONTO VIEIRA/DIVULGAÇÃO/JC
Fenômeno musical desde o primeiro semestre de 1984, Renato Borghetti trilhava uma das carreiras mais rápidas e sólidas da música instrumental brasileira. O primeiro disco havia sido lançado em maio daquele ano, com tiragem inicial exagerada de 10 mil exemplares. Parecia um delírio - acabou sendo uma avaliação modesta. Gaita-Ponto venderia pelo menos 10 vezes mais - 60 mil cópias em apenas três semanas, 100 mil em quatro meses, primeiro disco de ouro na história da música instrumental no Brasil.
Fenômeno musical desde o primeiro semestre de 1984, Renato Borghetti trilhava uma das carreiras mais rápidas e sólidas da música instrumental brasileira. O primeiro disco havia sido lançado em maio daquele ano, com tiragem inicial exagerada de 10 mil exemplares. Parecia um delírio - acabou sendo uma avaliação modesta. Gaita-Ponto venderia pelo menos 10 vezes mais - 60 mil cópias em apenas três semanas, 100 mil em quatro meses, primeiro disco de ouro na história da música instrumental no Brasil.
E mais: no Rio Grande do Sul, naquele período, o disco do gaiteiro venderia mais do que o fenômeno Thriller (até hoje, e dificilmente superável, o disco mais vendido da história fonográfica mundial, com mais de 105 milhões de cópias), de Michael Jackson, o que chegou a fazer com que alguns brincassem chamando-o de Borghettinho Jackson. O mesmo personagem iria inspirar o crítico musical Tárik de Souza a escrever o seguinte comentário no Jornal do Brasil, em setembro de 1984: "Ele não canta nem utiliza instrumentos eletrônicos. Mas aposto que Michael Jackson, se viesse ao Brasil, ficaria muito mais impressionado com o gauchesco Renato Borghetti do que com as centenas ou milhares de imitadores breakers brasileiros".
Renato Borghetti era então um popstar. Pelos próximos quatro anos, Borghetti manteria essa curva ascendente, encarnando o novo sentimento gauchista (o orgulho pela bombacha, o apreço pelo churrasco e pelo chimarrão, a exaltação às virtudes do tradicionalismo, o respeito a ícones como Paixão Côrtes), mostrando uma desenvoltura até então incompatível com sua imagem de jovem tímido e retraído. Seria capa de todos os jornais da região, figura constante nos mais variados programas televisivos, presença decisiva na programação musical de rádios em quase todos os estilos e, principalmente, gravaria novos discos.
Assim, com menos de cinco anos de carreira discográfica, quatro trabalhos lançados e um currículo muito vinculado a festivais - basicamente os nativistas -, Renato Borghetti chegava ao primeiro semestre de 1988 preparado para desbravar novos caminhos musicais.
No próximo dia 3 de setembro, comemoram-se as três décadas da primeira apresentação de Renato Borghetti no Free Jazz - na época, o mais importante festival no estilo do Brasil e também um dos mais respeitados no mundo. Desde então, Borghettinho se consolidou como um dos mais destacados artistas brasileiros, com uma sólida carreira no Brasil e no exterior (são cada vez mais comuns suas turnês pelos circuitos da música instrumental na Itália, França, Finlândia, Alemanha, Áustria...), e com uma extensa discografia, além de livros, documentários e DVDs.
Trinta anos depois daquela noite de 1988, é importante lembrar como aquele festival de jazz acabou sendo fundamental para um músico que não tinha vínculos tão fortes com o gênero.

Apresentação no Free Jazz

Junto a Almir Sater, músico gaúcho era a atração mais surpreendente do festival

Junto a Almir Sater, músico gaúcho era a atração mais surpreendente do festival


DIVULGA/JC
Num primeiro momento, Renato Borghetti pode ter causado estranheza ao ser selecionado para a programação do Free Jazz de 1988. Em matéria de exotismo para os públicos mais ligados ao jazz tradicional, Borghetti e o violeiro sul-matogrossense Almir Sater eram as duas atrações mais surpreendentes.
Todos os demais nomes que passaram pelos palcos do extinto Hotel Nacional, no Rio de Janeiro, e pelo do Palácio das Convenções, em São Paulo, eram mais previsíveis - como o saxofonista Michael Brecker, o contrabaixista Ron Carter, o violinista francês Stephane Grapelli, o baterista Tony Williams, o Modern Jazz Quartet e a cantora Nina Simone -; e também respeitados artistas brasileiros, como Nico Assumpção, Sebastião Tapajós e o violonista Oscar Castro Neves, pioneiro da bossa nova e radicado nos Estados Unidos desde os anos 1960.
A edição de 1988 era ainda para ser o Free Jazz de Miles Davis. O trompetista norte-americano, figura fundamental na evolução da música do século XX, estava confirmado. Contudo problemas de saúde acabaram cancelando sua participação. Mesmo quase sendo um estranho, Borghettinho teve uma boa recepção e - posteriormente - uma boa acolhida. O catálogo de apresentação, entregue aos espectadores na entrada, errava a grafia do nome (colocando "Borguettinho" com um "u" inexistente), mas dedicava duas páginas ao músico, com palavras elogiosas: "(...) lançou o progressivo sulista, projeto ampliado com a fusão de escolas (...)" e ainda "(...) misturou milonga com samba"; encerrando com "um dos valores deste autodidata está em expandir as possibilidades sonoras de um instrumento difícil e limitado".
Chegar à programação do Free Jazz parecia ser um caminho natural na carreira de Borghetti. O convite não causou surpresa ao músico. Era mais um entre tantos shows na sua extensa agenda. Marcos Borghetti, irmão e, já na época, desempenhando a função de empresário, que até hoje se responsabiliza pela agenda e pelos contratos de Borghettinho, lembra que recebeu um telefonema do escritório das irmãs Sylvia e Monique Gardenberg, proprietárias da produtora que organizava o festival, com a proposta.
Os detalhes burocráticos foram acertados rapidamente. O cachê não tinha nada de mais, tanto que não ficou na memória de nenhum dos dois irmãos. Não era muito mais alto nem muito mais baixo do que eles já estavam acostumados a receber em outras apresentações. No final, o valor mediano não importava tanto assim. Maior valor era ter sido convidado para tocar para novas plateias.

Dois meses de ensaios e bombacha renovada

Borghetti acreditava que o grupo deveria se apresentar com elegância e manter um padrão

Borghetti acreditava que o grupo deveria se apresentar com elegância e manter um padrão


JOÃO MATTOS/ARQUIVO/JC
Para essa temporada única, Renato Borghetti pensou inicialmente em resolver três problemas. O primeiro era adaptar mais rapidamente o percussionista Kako Pacheco ao grupo, já que ele havia entrado há pouco, substituindo o uruguaio Carlos Perez. A solução mais imediata encontrada por Borghetti foi colocar um baterista, no caso Taba, reforçando a parte rítmica da banda. O segundo problema, um pouco mais complexo, eram os ensaios. O repertório já estava definido (contemplando músicas retiradas dos discos já gravados), e o show não seria longo (teria pouco menos de uma hora, como era de praxe, abrindo para as outras duas atrações internacionais que viriam a seguir), porém era preciso deixar tudo alinhavado. Assim, para ficar tudo bem resolvido, o grupo se dedicou a dois meses de encontros diários na casa de Taba que, por coincidência, morava numa rua atrás do 35 CTG, local onde Borghettinho havia começado sua carreira.
Por fim, a preocupação maior: as bombachas. Borghetti acreditava que o grupo deveria se apresentar com elegância e manter um padrão. Era preciso inovar, mas a tradição deveria ser mantida. Por isso, ele encomendou a Ana Alchiere, uma senhora que há muito tempo já cuidava de suas bombachas, que fizesse um modelo mais elaborado para que todos músicos entrassem iguais. No final, o modelo acabou sendo uma bombacha branca que afunilava do joelho à canela, folgada na parte de cima e justa até quase as alpargatas. O produtor musical Ayrton dos Anjos, o Patineti, que acompanhou o grupo na turnê, só viu o resultado quando eles subiram ao palco. Patineti não disfarçou a decepção. O impacto na hora que eles apareceram juntos dava a impressão de que se tratava de um conjunto de baile. Mas, depois que a primeira nota musical fora emitida, tudo ficou desimportante diante da qualidade sonora. E o público, aparentemente, nem reparou nesse detalhe quase irrelevante.
Acompanhado dos já citados Kako e Taba, mais Paulo Tomada e Veco Marques (violões) e Ronaldo Saggionato, o Gringo, no baixo, Borghetti subiu ao palco do teatro do Hotel Nacional no dia 3 de setembro, abrindo a noite para o trio de Ron Carter e Tony Williams, com o pianista Mulgrew Miller, e para Stéphane Grappelli.

No Rio: sem praia, com calor no palco e aplausos da plateia


RBS DISCOS/DIVULGAÇÃO/JC
Borghetti havia chegado ao Rio um dia antes. Ficou no mesmo hotel em que todos músicos estavam hospedados, não saiu do lugar, não foi à praia de São Conrado, não ensaiou e apenas foi, à tarde, ao local do show para a passagem de som. Borghetti reconhece que a única sensação estranha na hora da apresentação foi o calor, já que a produção de Grappelli havia solicitado que os condicionadores de ar fossem desligados. Afora isso, havia dado tudo certo. Eu estava lá e me lembro bem. Borghetti e grupo tocaram com grande pegada, quase que num fôlego só. O público reconheceu, aplaudiu e Renato saiu satisfeito. A performance foi curta, com os menos de 60 minutos previstos e sem bis. Relaxado, Borghetti bebeu algumas cervejas no camarim e foi comemorar a boa performance em um churrasco na casa de uns amigos gaúchos de Patineti que moravam no Rio.
Borghetti se apresentaria apenas na capital carioca, ficando de fora da etapa paulista. A repercussão não poderia ser mais positiva. "Lembro do espanto que foi a escalação dele para o festival. Ele havia recém-deixado os festivais gaúchos e, de uma hora para outra, ganhava destaque em jornais de circulação nacional", recorda o jornalista Juarez Fonseca. O próprio Patineti, depois do susto inicial causado pelo visual, reconheceria em depoimento a um jornal em 13 de setembro: "Senti hoje, depois de muitos anos, a mesma sensação de quando a Elis Regina se apresentou pela primeira vez num grande teatro em São Paulo. Estou feliz pela chance de ver esta evolução da nossa música. Com o Borghettinho pode acontecer esta projeção. Quando produzi o segundo disco dele e tentei colocá-lo com o Hermeto Pascoal e com o Sivuca em estúdio, não imaginava que tudo isso iria terminar aqui no Free Jazz".
Já Renato Borghetti manteve a mesma calma de sempre. Diz não ter ficado nervoso, não ter se atrapalhado com nada e de se sentir como se tivesse se apresentando num dos tantos palcos em que já havia tocado. "Para mim, era apenas mais um festival de música instrumental, não havia nenhuma mudança no meu repertório e no meu jeito de tocar. Eu sempre soube que 'grosso não faz jazz'."
Em 1988, o Free Jazz Festival chegava à quarta edição. A ideia havia surgido em 1984 durante uma turnê de Djavan pelos Estados Unidos. Naquela viagem, Zé Nogueira, na época com 29 anos e atuando como saxofonista do músico alagoano, mais Monique Gardenberg, empresária do cantor e, desde 1982, proprietária da produtora Duetto, ao lado da irmã Sylvia, e Paulinho Albuquerque, que trabalhava como produtor e diretor dos shows, ficaram impressionados com o Kool Festival, que era realizado anualmente no Lincoln Center, em Nova Iorque.
De volta ao Brasil, Monique foi atrás de investidores para o projeto e acabou atraindo a atenção de uma companhia produtora de cigarros que, com uma de suas marcas, emprestaria o seu nome ao evento. O festival seguiria os mesmo moldes dos que eram realizados na Europa e nos Estados Unidos: maratona de shows diários, se estendendo por quase uma semana de programação e com uma mescla de artistas nacionais com internacionais.
A Zé Nogueira e a Paulinho Albuquerque se somaria o pesquisador, escritor e crítico musical Zuza Homem de Mello, que já vinha de duas experiências semelhantes. Assim, o Free Jazz Festival cresceria rico, variado e com uma curadoria atenta aos mais diversos estilos. O festival era realizado sempre de maneira dividida entre Rio de Janeiro e São Paulo - posteriormente chegaria a ter versões reduzidas em várias capitais, Porto Alegre entre elas.
A estreia, em 1985, não poderia ter sido melhor. A abertura reuniria como homenageados especiais o gaúcho Radamés Gnattali e o pernambucano Moacir Santos. Além disso, seriam valorizados nomes de primeira linha do cenário jazzístico mundial (Chet Baker, Hubert Laws, Joe Pass, McCoy Tyner, Phil Woods, Sonny Rollins, Ernie Watts e Toots Thielemans), talentos que começavam a surgir na década de 1980 (Bobby McFerrin e Pat Metheny eram os mais destacados) e o mais importante para a música brasileira: o amplo destaque ao que era feito instrumentalmente, tanto de nomes já consagrados aqui e no exterior (Egberto Gismonti, Hélio Delmiro, Heraldo do Monte, Luis Eça, Marcio Montarroyos, Mauricio Einhorn, Orquestra Tabajara, Paulo Moura, Sivuca, Toninho Horta, Wagner Tiso e Zimbo Trio) quanto de revelações (Pau Brasil e Ricardo Silveira).

Fenômeno instantâneo

Festival colocou o Brasil no roteiro do jazz mundial

Festival colocou o Brasil no roteiro do jazz mundial


REPRODUÇÃO/JC
A qualidade das atrações e a boa receptividade do público transformaram o Free Jazz Festival num fenômeno instantâneo, colocando o Brasil no roteiro do jazz mundial. Consolidado, virou grande vitrine para os artistas que se dedicavam à música instrumental. E, além dos músicos ligados ao jazz mais tradicional, os curadores estavam atentos a quem surgia nas mais variadas regiões do País. Renato Borghetti estava no radar.
Zé Nogueira lembraria: "Como estávamos atentos ao que acontecia em várias regiões brasileiras buscávamos o que havia de melhor, o nome do Borghettinho surgiu naturalmente numa de nossas reuniões. Era um artista em ascensão, seus discos vendiam bem e sua figura chamava a atenção. Era a bola da vez".
Dos três curadores, Zuza Homem de Mello era o mais familiarizado com Renato Borghetti. Zuza havia visto Borghetti em ação poucos meses antes. Ficou impressionado com o músico - pouco mais do que um garoto, mas com uma postura musical formidável e com o domínio de um instrumento difícil e limitado como a gaita ponto. "Reparei que ele tinha dedos ágeis e fortes, extraindo um som distinto. Para obter projeção como solista, Borghetti conseguia superar várias desvantagens", recorda ele.
Nem Zuza nem Zé Nogueira lembram ao certo como surgiu o nome de Borghetti para ser uma das atrações, mas os dois concordam ao afirmar que foi algo natural. O gaiteiro gaúcho estava em evidência, e era importante que a programação do festival contemplasse diferentes regiões do Brasil. A aposta acabou se confirmando. Zuza lembra que Borghetti não se intimidou. O jornalista acredita que a timidez e o fato de ser um artista que quase se escondia embaixo do chapéu ajudaram a criar uma identificação imediata com o público.
Borghettinho e o Free Jazz festival voltariam a se encontrar quase uma década depois. Em 1997, quando o festival passou a ter versões reduzidas em algumas capitais, Porto Alegre foi uma das contempladas. Ao lado do pianista Geraldo Flach, Borghetti abriu a noite de 13 de outubro.
Em 2000, com a proibição de empresas de cigarros patrocinarem eventos culturais, o Free Jazz Festival precisou se adaptar. Primeiro, passou a ser bancado por uma empresa telefônica, a partir de 2003; e, de 2008 em diante, por uma montadora. Zuza Homem de Mello e Zé Nogueira continuam como curadores, agora acompanhados por Pedro Albuquerque, filho do falecido Paulinho. Monique também permanece à frente, mas sozinha, desde que a irmã, Sylvia, morreu em 1998, aos 38 anos, vítima de câncer de pulmão.