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Entrevista especial

- Publicada em 18 de Dezembro de 2017 às 00:55

Para Nunes, Clínicas do Testemunho é dever de Estado

Clínicas do Testemunho atendem vítimas da ditadura militar e descendentes

Clínicas do Testemunho atendem vítimas da ditadura militar e descendentes


LUIZA PRADO/JC
A conclusão da segunda fase do projeto Clínicas do Testemunho, iniciativa do Estado brasileiro voltada ao tratamento psicológico a vítimas da ditadura militar e seus descendentes, prevista para 29 de dezembro, está sem perspectiva de renovação. O coordenador do projeto no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o psicanalista Otávio Augusto Winck Nunes, alerta que as constantes mudanças na presidência e na composição da Comissão de Anistia, promovidas pelo governo do presidente Michel Temer (PMDB), deixou "explícito que não haverá continuidade nem vontade política do governo de poder relançar um edital, e muito menos de conseguir fazer política pública".
A conclusão da segunda fase do projeto Clínicas do Testemunho, iniciativa do Estado brasileiro voltada ao tratamento psicológico a vítimas da ditadura militar e seus descendentes, prevista para 29 de dezembro, está sem perspectiva de renovação. O coordenador do projeto no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o psicanalista Otávio Augusto Winck Nunes, alerta que as constantes mudanças na presidência e na composição da Comissão de Anistia, promovidas pelo governo do presidente Michel Temer (PMDB), deixou "explícito que não haverá continuidade nem vontade política do governo de poder relançar um edital, e muito menos de conseguir fazer política pública".
Originado por uma condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que obrigou o País a desenvolver o projeto, o Clínicas do Testemunho, para além de uma ação pontual, sustenta Nunes, deveria ser uma política pública constante. "Faz muita diferença quando é o Estado quem propõe", diz, pois está "reconhecendo (o dano que provocou) e se reparando".
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o psicanalista, além de tecer críticas à falta de disposição governamental - que segundo ele não se restringe à gestão Temer - em promover políticas de memória, verdade e justiça, chama atenção para as consequências da negação do passado de terror estatal. "Se a gente não tem uma forma de elaborar algo que é violento, traumático, isso retorna. O processo civilizatório fica comprometido", anuncia.
Jornal do Comércio - Como está a questão da renovação do projeto Clínicas do Testemunho?
Otávio Augusto Winck Nunes - Desde que houve o golpe que levou Michel Temer (PMDB) ao poder, todos os trabalhos de sustentação política que vinham ocorrendo se retraíram. O diálogo com a Comissão de Anistia se interrompeu faz muito tempo, e uma das medidas do Temer foi de substituir o presidente da comissão, trocar vários dos conselheiros (por outros) que não tinham uma história e uma trajetória política de direitos humanos. Isso modificou muito a estrutura da Comissão de Anistia. O terceiro presidente (depois da posse de Temer), que nos recebeu em junho, foi muito sensível à proposta de poder haver uma continuidade e uma prorrogação do projeto, e o relançamento de edital. Ocorre que, no final de setembro, ele então publicou uma carta de demissão, dizendo que as decisões que a Comissão de Anistia estava tomando em relação ao processo dos anistiados, pedidos de reparação pecuniária ou moral, e reparação cívica, estavam sofrendo interferência da AGU (Advocacia-Geral da União). Quando houve esse pedido de demissão, ficou mais explícito que não haverá continuidade, nem vontade política do governo de poder relançar um edital, e muito menos de conseguir fazer política pública. Porque a ideia do projeto Clínicas do Testemunho tinha como horizonte que se transformasse em uma política pública.
JC - Isso está anunciado?
Nunes - O que está anunciado é a omissão, pois a Comissão de Anistia ficou então acéfala, ninguém respondeu a nossos pedidos protocolados. Mas uma coisa muito importante de deixar claro é que o projeto Clínicas do Testemunho foi criado como uma proposta do Estado brasileiro, que foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para montar um serviço que pudesse atender às pessoas afetadas pela ditadura. A partir daí que se pensou que tipo de reparações seriam viáveis. Tem a reparação pecuniária (para as pessoas) que perderam emprego, oportunidades, e precisavam ser reparadas monetariamente. Tem a reparação psíquica e a reparação moral, ou seja, um pedido de desculpa do Estado frente aos afetados. Na reparação psíquica, o Estado então se comprometia a sustentar por um tempo uma reparação simbólica, um tratamento para que as pessoas atingidas pela violência do Estado pudessem se tratar individualmente ou em grupo.
JC - Quando o Estado para de oferecer esse reconhecimento, o que significa isso, em sua opinião?
Nunes - Assim como toda a política depois que o Temer assumiu a presidência, é o desmantelamento, uma confusão entre o que são as políticas do Estado e as políticas de governo. Uma coisa é o projeto existir como política de Estado e ter que se manter porque é o Estado que tem a política, e o governo agir como se não tivesse nada a ver com o Estado, ao desmantelar e desconstruir todos os trabalhos de cunho social que estão sendo feitos. Um projeto como esse só tem sentido quando é o Estado que sustenta. Não adiantaria uma instituição, uma entidade de organização civil, propor um projeto.
JC - Por quê?
Nunes - Muitas das pessoas que participaram do projeto ao longo da vida já tinham feito algum tipo de terapia para lidar com os efeitos causados. Faz muita diferença quando é o Estado que propõe, porque não é vetorizado só para quem foi atingido; é o Estado reconhecendo e se reparando. Tem uma formulação do Sigmund Freud, que diz que toda a psicologia individual é, antes de tudo, uma psicologia social. É nesse aspecto que o Clínicas do Testemunho representa uma instância importante de trabalho, na medida em que aquilo que se vive socialmente, se vive também na clínica. Então, a sintomatologia, o sofrimento psíquico das pessoas não está distante do que ocorre nas relações sociais. Os efeitos da violência e do terror do Estado não estão distantes dos fenômenos clínicos com os quais, como analistas, nos confrontamos diariamente.
> Confira algumas opiniões de Nunes no vídeo:
JC - O Estado também faz parte do processo terapêutico, indiretamente.
Nunes - Isso. Mudar essa ideia de que há uma vítima e um algoz, e que todos sofremos mesmo não tendo sido atingidos diretamente. O Estado sofreu com o que produziu. Só tem sentido uma reparação psíquica se é o Estado que sustenta. Não seria a mesma coisa se fosse o governo estadual ou a prefeitura, porque não é esse o foco, mas talvez pudesse, de alguma maneira, ter uma continuidade. É importante frisar que é o conjunto da sociedade brasileira que é afetado pelo terror que o Estado produz, e se não continuar isso, a gente faz essa estratégia de que é cada um por si, que é o individualismo, é a proposta neoliberal de que é cada um por si e, se você não se deu bem, a culpa é sua.
JC - Como isso é uma obrigação imposta pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as entidades que ajudam a conduzir esse projeto podem apelar para obrigar de fato o País a retomar essa política?
Nunes - Estivemos em Montevidéu para uma reunião do Comitê Interamericano de Direitos Humanos, justamente para levar essa pauta para que seja incluída, e de alguma maneira denunciar que o Estado está sendo omisso, se ausentando daquilo que se comprometeu a fazer. Isso é um passo importante, que pode não ter um resultado imediato, mas que tenha essa isenção, e também temos procurado conversar com procuradores estaduais e federais para poder, judicialmente, obrigar a dar continuidade ao trabalho. Nos mobilizamos para que essa parte da memória não se transforme em resto, porque do resto ninguém quer saber.
JC - Como considera a atuação dos governos mais recentes no Brasil em relação à questão da memória e justiça no País?
Nunes - É difícil. Mesmo no governo Dilma (Rousseff, PT), houve também um corte orçamentário na Comissão de Anistia, não é uma prerrogativa de um governo. É um problema que o Estado brasileiro tem na construção e no enfrentamento de sua memória. No governo Dilma não houve um empenho e uma luta, um trabalho mais efetivo. E nos ocupávamos de uma matéria essencial na vida brasileira, que é o abuso do poder. Isso ainda é muito difícil, que sem o reconhecimento se possa avançar nessa discussão. Acompanhamos diariamente, cada vez mais, todas essas acusações, a polarização do debate, o ódio explícito e estimulado, que faz com que aparentemente não tenha violência, e é um horror que a gente viva isso diariamente e se passa por cima, acha que isso não tem influência na vida das pessoas, e se produz mais violência.
JC - Como tem atuado o projeto, tanto na sua base piloto quanto agora? Que balanço se faz da atuação das Clínicas?
Nunes - Uma das preocupações que o primeiro projeto (o piloto, conduzido pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica) tinha era a questão do silenciamento. Tem uma diferença muito grande entre o que aconteceu aqui no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Em Santa Catarina, o trabalho era para que as pessoas pensassem ou se dessem conta que houve ditadura em Florianópolis. A interrogação que fizeram foi "isso também aconteceu aqui"? Foi um norte para nós, porque as pessoas não tinham conhecimento de que a tortura e o terror de Estado estavam presentes lá. Aqui também houve algo semelhante no primeiro projeto, que é o silenciamento sobre uma temática, que obviamente é um silenciamento dirigido, proposital, que precisou voltar a se falar, voltar a ter voz, então com isso se poder trabalhar.
JC - Isso com os pacientes?
Nunes - Sim, e também nas atividades públicas. Lá pelas tantas, alguém que estava na plateia dava seu testemunho sobre o que viveu. Houve uma situação muito exemplar em São Leopoldo, em que uma senhora na plateia se levantou e contou o que sofreu na ditadura. Havia um fotógrafo da prefeitura que tinha ido tirar fotos do evento, e ao escutar o testemunho dela, disse: "meu pai não foi preso porque teu pai interferiu, porque teu pai que trabalhava no banco avisou a minha mãe". Depois de muitos anos, se reencontram (pessoas) a partir de uma conversa que se disparou em São Leopoldo, e aí a ditadura, o terror de Estado, espontaneamente começam a aparecer. As pessoas se deram conta que o sumiço do vizinho, que o desaparecimento de alguém, o silêncio que o assunto produzia, que isso tinha sido forçado, e que parecia que estava retirado da vida das pessoas. É muito impactante de ver a reação, de como cada história vai se juntando.
JC - Quantas pessoas foram atendidas ao todo?
Nunes - A gente teve uma média de 22 atendimentos individuais aqui no Rio Grande do Sul, em torno de 10 em Santa Catarina, mais os atendimentos de grupos. O que dá expressividade e grandeza é poder falar e fazer, para que pelo menos vinte ou trinta pessoas possam transmitir alguma coisa para a geração seguinte. Vamos ter essa disponibilidade porque não é fácil para as pessoas que sofreram trauma com a tortura façam isso. Quem quer expor sua vida privada? Um dos efeitos, que é importante frisar, é o restabelecimento de uma relação de confiança com os outros. O silenciamento é proposital, mas produz isso, como confiar nos outros para poder falar?
JC - Era intensa a perseguição a opositores da ditadura no Rio Grande do Sul? Isso se reflete em relação aos atendimentos?
Nunes - É um número que, talvez não tanto em Porto Alegre, mas em São Leopoldo, em Caxias do Sul, em Ijuí, em Rio Grande... em uma dessas conversas públicas e algumas atividades que fizemos em Rio Grande, houve quase 300 pessoas, em Ijuí teve quase 200 pessoas, não só interessados, mas pessoas que mantém alguma relação com o debate sobre a questão da ditadura. Em Caxias tem um número específico, mais de 100 pessoas que foram nas atividades.
JC - Como enxerga nosso contexto político atual, em relação aos traumas que a ditadura nos causou? Eles podem se repetir, se essa memória não for exposta?
Nunes - É interessante, porque quando a gente se debruça sobre a temática desse tempo, todos os elementos fazem ver que (isso) retorna. É uma repetição. Enfim, recentemente, tivemos o filme do João Moreira Salles, "No intenso agora", e a gente vê as coisas tão semelhantes, toda uma política de destruição do debate da democracia. Se a lei não funciona mais para governar, para indicar as balizas de funcionamento da sociedade, volta o horror. Então, todo o ataque que agora se faz aos fiscais públicos, aos órgãos públicos, porque é público, ou o que aconteceu na Universidade Federal de Minas Gerais, com as conduções coercitivas... Enfim, é isso: se a gente não tem uma forma de elaborar algo que é violento, que é traumático, isso retorna. É porque a gente não teve uma escalada em direção a uma civilização melhor, e não trabalhar com isso nos força a não se culpar pela questão da violência, nos torna uma civilização muito pior. Então, o processo fica comprometido se a gente não tem condições de elaborar melhor o meio em que se vive. 

Perfil

Otávio Augusto Winck Nunes nasceu em Santa Cruz do Sul, em 1965. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs, 1991), mestrado em psicose e estados limite (Diplôme d'Études Approfondies, D.E.A.) pela Universidade de Paris 7, concluído em 2002, e mestrado em Psicologia do Desenvolvimento pela Ufrgs, concluído em 1999. Também desde 1999, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). Atualmente coordena a Comissão de Publicações da instituição, integra a equipe da Revista da Appoa, além de liderar dois grupos de estudos na Instituição sobre psicose. É o coordenador, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, do projeto Clínicas do Testemunho, a cargo do Instituto Appoa de Clínica, Intervenção e Pesquisa em Psicanálise. Foi professor da faculdade de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) nos anos de 2008 e 2009. Na atuação profissional, tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Clínica.